16.2.13

A cultura e a morte (A2-2013)

Um artigo de André Singer (cientista político e professor da USP) publicado hoje na Falha de São Paulo trouxe novamente à tona o tema do "funk ostentação". Sua principal fonte de informação, possivelmente a única, e por sinal bastante elucidativa, foi este documentário postado no YouTube. Pois bem, eu gostaria de comentar algumas afirmações de Singer à luz do que eu mesmo escrevi no dia 3 de janeiro deste ano. Diz ele:

Embora se deva ter muito cuidado ao criticar as opções ostentatórias – afinal, se a velha classe média o faz, por que o novo proletariado não poderia fazê-lo? –, é mister observar que o endeusamento de rótulos comerciais representa uma extraordinária vitória ideológica do capitalismo.
Singer usa a categoria marxista de ideologia, ao passo que eu falei, o tempo todo, de desejo. O que isso quer dizer? Antes de prosseguir, notemos que Singer, logo a seguir, faz uma referência ao desejo:

Fundas contradições. Ao simbolizar o desejo imperioso e tenso de ter acesso aos bens que o mercado coloca nas vitrines, os artistas populares mostram a situação da luta de classes. Ao transformar a posse deles em razão de viver, expressam a ilusão de felicidade que a mercadoria traz consigo.
Aqui, Singer erra o alvo inteiramente. Por quê? Não é fato que os funkeiros "ostentatórios" desejam carros importados e relógios caros, correntes de ouro e roupas de marca? Ora, isso é evidente. Porém é ainda mais evidente que eles desejam todas essas coisas para atribuir a si mesmos o valor que essas coisas supostamente têm e, em função disso, serem desejados. Não se pode negar que é pela mediação das mercadorias que os funkeiros obtêm o que desejam; mas o que eles realmente desejam, muito mais do que os bens materiais, é o desejo, o desejo do outro. Mais do que qualquer outra coisa, o que os funkeiros querem é ser reconhecidos e amados.

Tudo isso acarreta várias conseqüências. Em primeiro lugar, é preciso evitar cuidadosamente a armadilha em que Singer caiu ao caracterizar a "felicidade" alheia como uma "ilusão". É claro que a palavra "felicidade" é inteiramente vaga, imprecisa, e que seria muito melhor usar o conceito de "alegria", tão bem definido por Spinoza. Mas a armadilha a que me refiro é outra, e consiste no uso da palavra "ilusão". Podemos sentir compaixão por alguém que retira suas alegrias unicamente do usufruto de bens materiais, mas isso não nos dá o direito de qualificar suas alegrias como ilusórias. Elas são as alegrias de que aquele ser é atualmente capaz, ou seja, os afetos que preenchem, aqui e agora, sua potência de agir e de pensar. E o mesmo se aplica àqueles que são movidos pelo desejo do outro, tal como se aplica, igualmente, à vaca de Heráclito que rumina o verde capim. Como poderíamos censurar uma vaca por... ser uma vaca? Nessa simples palavrinha, "ilusão", é todo o moralismo que retorna a galope. Como se o intelectual, por conhecer o sentido último, o fundo das coisas, pudesse arrogar-se o direito de dizer o que é autêntico e o que não é, o que é ilusório e o que não é, o que as pessoas podem (de maneira legítima) sentir e aquilo que elas não deveriam sentir, posto que é uma "ilusão".

Curiosamente, Singer já havia afirmado que se deve "ter muito cuidado ao criticar as opções ostentatórias". Não se pode, diz ele, negar ao novo proletariado o que concedemos à velha classe média. Por que usei a palavra "curiosamente"? Porque é curioso, de fato, que um intelectual se sinta muito à vontade para dizer que a alegria alheia (ou a felicidade alheia) é uma "ilusão", mas não se sinta capaz de fazer exatamente aquilo que se espera dele: um exame crítico das maneiras de viver e de pensar num campo social qualquer. Mas eu não quero ser rigoroso demais com André Singer. Pois o fato é que, no quadro do pensamento marxista, é praticamente impossível descobrir o fio da meada que nos levaria a uma posição afirmativa que ao mesmo tempo permita, por contraponto, estabelecer uma crítica radical e, ao mesmo tempo, bem fundamentada.

E qual é esse fio da meada? Vou repetir pela centésima vez: meu tema, nesta série de postagens intituladas "A cultura e a morte", mas também no ensaio que estou escrevendo e na tese que pretendo escrever, é a Cultura (assim mesmo, com C maiúsculo) como ação do homem sobre o homem para produzir o homem. A ação do homem sobre o homem não se dá apenas na relação entre dois ou mais homens, mas também na relação de si para si. Ou seja, o homem produz a si mesmo (sempre com a ajuda de outros), e produzindo a si mesmo, produz ou ajuda a produzir o outro. Inversamente, quando o homem se dedica a produzir o outro, ou se dedica a ajudar o outro a se produzir, ele automaticamente produz a si mesmo.

Ora, quando um homem coloca no pescoço um colar de ouro, ou quando uma mulher faz um implante de silicone, ambos estão produzindo a si mesmos. Por exemplo, quando um homem compra um carro espetacular para enchê-lo de cachorras, está produzindo a si mesmo (como um homem que possui um carro espetacular cheio de cachorras) e está, ao mesmo tempo (afinal, é esse o seu objetivo), produzindo desejo nas cachorras, sendo que ele mesmo deseja esse desejo. Está muito difícil? Creio que não.

Correntes de ouro e próteses de silicone são artifícios para capturar o desejo do outro. Mas será que isso que eu estou chamando de Cultura se esgota numa corrente de ouro ou numa prótese de silicone? Será que isso é tudo que podemos fazer por nós mesmos, será que isso é tudo que podemos fazer pela nossa vida - e, por tabela, pela vida alheia? Dito de outro modo (mais ao gosto dos marxistas): o capitalismo multiplicou as forças produtivas da humanidade num grau extremo. Produzimos bens e serviços num ritmo e numa variedade nunca imaginada. E todos nós queremos, imagino eu, que todos os homens, sem exceção, tenham igualdade de oportunidades e se beneficiem amplamente desse movimento produtivo de modo a poder produzir a si mesmos de acordo com seus desejos e aptidões.

Mas como entendemos esse "produzir a si mesmo"? Basta colocar uma corrente no pescoço e acelerar um carro importado? Basta fazer um implante de silicone e um bronzeamento artificial?

Uma das coisas mais belas nisto que eu chamo de "pensamento da cultura" é que não existe absolutamente nenhuma regra geral, nenhuma finalidade, nenhuma "essência" a ser realizada. Essa maneira de pensar nos livra de inúmeros falsos problemas (numa palavra, livra-nos do moralismo), ao mesmo tempo em que nos dá um critério - um primeiro critério, ao menos - para forjar um pensamento puramente afirmativo que é, ao mesmo tempo, um pensamento crítico. Usar um relógio de ouro e turbinar o peitinho também é produzir a si mesmo, assim como implica produzir, no outro, a visão de um homem que usa um relógio de ouro e a visão de um peitinho turbinado. E se isso é tudo que um homem (ou uma mulher) tem a me oferecer, muito bem; irei produzir-me em outra parte. A produção de si é responsabilidade exclusiva de cada um de nós. Obviamente, sempre teremos outros, muitos outros, para nos ajudar nessa tarefa. E para que nos ajudem, basta que estejamos dispostos a abrir nosso pensamento e nossa sensibilidade para eles.

O pensamento da cultura afirma, e afirma até mesmo o mais baixo (de acordo com uma das regras do eterno retorno enunciada por Deleuze). No fundo, todos estão, desde sempre, se produzindo, e não poderia ser diferente. E a dimensão crítica desse pensamento? Bem, a partir do momento em que me sinto capaz de afirmar que um homem pode produzir-se como um escravo (escravo das coisas, escravo do desejo do outro) mas também como um homem livre (como um homem que fabrica seu próprio pensamento e sua própria vida), está estabelecido o critério para discriminar (diferenciar) modos de vida totalmente distintos. Aqui, os "cuidados" que Singer invoca a respeito da "crítica das opções ostentatórias" me são totalmente estranhos, e pouco se me dá se o "ostentatório" é rico, proletário ou classe média: são todos escravos, em virtude das definições mesmas de escravo e de homem livre.

Tudo isso não nos conduziria, no entanto, a nos aproximarmos da concepção elitista da cultura? Não exatamente. Afinal, a rigor, a chamada "cultura elitista" nada mais é do que um funk ostentatório, ainda que muito mais elaborado, complexo, cheio de sutilezas. Todos eles querem, tal como os moços das periferias, ser reconhecidos e amados... A única coisa que muda é a sofisticação do jogo. Obviamente, alguém que produz a si mesmo vigorosamente termina por alcançar algum tipo de excelência, mas essa é meramente uma conseqüência de seu trabalho, e não um jogo de salão.

O resto fica pra depois.

8.2.13

As regras do bem viver

Contardo Calligaris, em texto homônimo publicado na Falha de São Paulo, escreveu o seguinte parágrafo:
"No que me toca, aprendi que a mulher deve passar sempre antes do homem, salvo na descida de uma escada, quando o homem, indo na frente, tapa a perspectiva inconveniente de quem, a partir do piso inferior, procurasse olhar por baixo da saia da mulher. Esse deve ser um preceito recente, de quando as saias se encurtaram, mas a própria regra de deixar a mulher passar primeiro tampouco é antiga."
Trata-se, sem dúvida, de uma curiosa interpretação que mistura excitantes variáveis, todas elas, aliás, muito caras à psicanálise: a sexualidade e o olhar do outro, o desejo e o voyeurismo, a providencial função repressiva do macho que pretende impedir esse olhar de outrem que, se não arranca pedaços, tira, ao menos, uma casquinha.

Por acaso, essa é uma regra que eu cumpro à risca e que me foi ensinada pelo meu pai, que no entanto a justificou de uma forma muito mais prosaica e - se me permitem dizer isso - inteligente.

Meu pai me ensinou que o homem sempre deve descer as escadas à frente da mulher (e subir atrás dela) para que, na hipótese de que ela venha a  tropeçar, o homem tenha ao menos uma chance de impedir sua queda. Já mais velho, refletindo sobre essa regra, cheguei à conclusão de que ela ainda proporciona um bônus nada desprezível: se o próprio homem se desequilibrar, não cairá sobre a mulher que o acompanha.

Na interpretação de meu pai não há nenhuma referência a saias, curtas ou compridas, nenhuma função sexual, nenhuma repressão machista, nenhuma preocupação com o olhar do outro: o que há é um puro e simples gerenciamento de riscos, em que o animal (por via de regra) mais musculoso se coloca em posição de proteger o animal (por via de regra) menos musculoso. E todo esse risk management se explica, é claro, pelo afeto, pois se eu me disponho a proteger a mulher que me acompanha é porque eu me importo com ela.

Será o filósofo (por via de regra) um animal prosaico? Talvez. Mas uma boa prosa talvez seja capaz de eliminar muitos falsos problemas e nos preparar, quem sabe, para uma poesia que realmente valha a pena.
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