24.10.14

leviatãs e levianas

Não podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da evolução política do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos maior dose de espírito público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e merecem o aplauso de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil. Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em consequência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres.
Victor Nunes Leal - Coronelismo, Enxada e Voto, 7ª edição, 2012

23.10.14

A desconstrução de Sandra Starling

Pesquisador que se preze usa, preferencialmente e tanto quanto possível, fontes primárias. Seja em bibliotecas ou na Internet, e seja qual for o tema da pesquisa, as fontes primárias são simplesmente insubstituíveis.

Vejamos um exemplo (fresquinho) do que pode acontecer quando usamos uma fonte secundária. Ontem, Sandra Starling, uma das fundadoras do PT, anunciou seu voto em Aécio Neves. Segundo a revista ISTO É, ela teria dito: “Votar em Dilma seria exercer o direito de ser idiota”.

Só que, a julgar pelo texto publicado no Diário do Poder, essa senhora disse algo inteiramente diferente:
"Ia, inclusive, usar meu direito de ser “idiota” - como diziam os atenienses - e deixar de votar. Mas não vou me abster. Vou votar no Aécio (...)"
Como se vê, Sandra Starling está se referindo a um dos sentidos da palavra "idiota" na língua grega: algo como "aquele que cuida apenas de sua vida privada e não participa da vida pública".

Em nenhum momento ela chamou os eleitores de Dilma de "idiotas". Por que a revista distorceu a declaração de Sandra Starling a ponto de transformá-la num xingamento banal? Teria ela algum interesse em atirar um testemunho como esse, tão importante e tão ponderado, à vala comum da linguagem ordinária usada nas famosas "redes sociais"?

A revista distorceu ainda outras falas da ex-deputada, como se poderá perceber numa rápida leitura dos dois documentos, que são muito curtos. E esse é apenas um caso, ocorrido algumas horas atrás. Ao que parece, a mentira está se tornando uma doença epidêmica e fora de qualquer controle. Ai de quem não tem vocação para a pesquisa...



Fontes (arquivo)
ISTO É
DIÁRIO DO PODER

8.10.14

Cultura e política


Cada indivíduo histórico foi um projeto de uma nova humanidade.¹


A palavra "política" deriva do grego pólis, que significa cidade. Política é a arte de administrar a cidade, o Estado, a coisa pública (res publica). Administrar implica tomar decisões, seja diretamente (executivo), seja aprovando leis (legislativo), seja proferindo sentenças (judiciário). Numa palavra, tomar decisões é exercer o poder. Assim, pensar a política é pensar o Poder.

Cultura, por sua vez, é a ação do homem sobre o homem para produzir o homem. Nessa definição de Cultura está incluída (analiticamente) a ação de si sobre si mesmo ou autoprodução. Mais radicalmente, a essência da Cultura é a produção de si mesmo. Assim, pensar a Cultura é pensar a produção de si mesmo e a produção do outro, entendida principalmente como a contribuição que damos ao outro para que ele produza a si mesmo.

Há uma verticalidade inevitável na política. Não é possível consultar milhões de pessoas a cada decisão. Plebiscitos fogem a esta regra, mas plebiscitos somente respondem a questões previamente formuladas, e o poder continua sendo exercido por aqueles que formulam as questões. A propósito, a criação dos chamados conselhos populares, que atualmente está na pauta da esquerda brasileira, não suprime essa verticalidade. Ela apenas adiciona alguns grupos aos grupos já legitimados pelas eleições. Decisões continuarão sendo tomadas, e elas continuarão sendo tomadas por uns poucos.

A Cultura, por sua vez, é horizontal por excelência. Mais do que horizontal, ela é rizomática. Pode-se objetar que crianças são dependentes, em alto grau, de pais e educadores, e que não é possível suprimir inteiramente a verticalidade na Cultura. De acordo. Mas é possível (e desejável), por outro lado, ensinar às crianças o que é Cultura, e ir transferindo a elas, aos poucos, a responsabilidade que lhes cabe na produção de si mesmas.

A política é o reino das doutrinas e dos programas. Socialismo, conservadorismo e outros tantos "ismos" travam autênticas guerras ideológicas para estabelecer os critérios de acordo com os quais o poder deverá ser exercido, sobre muitos, por alguns poucos.

A Cultura, por sua vez, é o reino da Diferença. Produzir a si mesmo implica em reformular incessantemente a si mesmo, em diferenciar-se de si mesmo (e, por conseqüência, em diferenciar-se dos demais). Ora, na medida em que eu me diferencio, tenho algo de novo a oferecer aos demais. Minha diferença é do interesse de todos, e a diferença de cada um é do meu interesse. Quanto mais radical é o processo de diferenciação de cada um, maior é o benefício de todos. A diferença se alimenta da diferença. Ao produzir-me, eu estou, direta ou indiretamente, contribuindo para a autoprodução de todos os outros. Ao se produzirem, os outros estão, direta ou indiretamente, contribuindo para a minha autoprodução. Uma vez que nos colocamos do ponto de vista da Cultura, desaparece a falsa oposição entre o indivíduo e a coletividade, entre o privado e o público, entre o "egoísmo" e o "altruísmo" .

As linhas acima são apenas um rascunho, um esboço, uma blogada, e não dão conta da complexidade do tema. Ainda assim, espero que sejam suficientes para dar a perceber que a política deve subordinar-se inteiramente à Cultura. Aliás, boa parte da confusão atual, a meu ver, deriva do fato de que queremos pensar a política sem entender o que é Cultura. Queremos estabelecer fórmulas ou programas de ação sem sequer termos compreendido onde está o problema.

Inversamente, uma vez que tenhamos compreendido a primazia do problema da Cultura sobre todos os demais problemas, e que esteja claro que a Cultura, nela mesma, é a grande política, a política superior, qual deve ser nossa orientação política no sentido tradicional? Não há, no cenário político atual, uma resposta pronta a essa pergunta. Mas há alguns pontos óbvios que podem ser destacados.

1. Defesa intransigente da liberdade de expressão

Não podemos nos produzir sem dar ouvidos aos outros. Quanto mais ouvimos, mais estaremos em condições de estabelecer nossos próprios problemas e de inventar nosso próprio caminho. Se o meu direito de dar ouvidos a um outro, ou o direito do outro a me dar ouvidos, for suprimido ou mesmo dificultado, o processo de autoprodução de cada um será empobrecido. Inversamente, e este é um ponto ainda mal compreendido, qualquer iniciativa que suprima ou restrinja a liberdade de expressão deve ser severamente coibida. No mais, cada qual deve responder pelo que diz, como já acontece; liberdade de expressão não se confunde com liberdade de calúnia e difamação.

2. Defesa intransigente das liberdades individuais

Cabe a mim, e a mim somente, decidir de que maneira irei produzir a mim mesmo. Qualquer forma de autoritarismo que implique na supressão ou restrição do meu direito de produzir a mim mesmo deve ser coibida vigorosamente. Obviamente, minha liberdade termina onde começa a do outro.

3. Igualdade de oportunidades para todos

É no movimento da Cultura (e não na política) que se produz o chamado "bem comum". Assim, deve-se assegurar que todos os homens gozem das condições concretas que possibilitem sua autoprodução. Não é preciso ser rico para produzir-se a si mesmo; longe disso, aliás. Mas duas coisas são essenciais: condições dignas de subsistência e tempo. Nesse sentido, o movimento de redução das jornadas de trabalho é uma daquelas limitações necessárias que a Cultura precisa impor ao capitalismo para que este não degenere em barbárie ou totalitarismo. A produção de bens e serviços é necessária e muito bem-vinda, uma vez que ela promove facilidades para a autoprodução de cada um. Nesse sentido, também ela participa do movimento da Cultura. Mas se perdermos de vista que o sentido da vida é produzir a si mesmo, tudo o mais perderá sentido. Não por acaso, é exatamente isso que está ocorrendo nos dias de hoje.

* * *

O leitor, a não ser que me acompanhe há algum tempo, poderá ter estranhado o conceito de Cultura que apresentei aqui. E não é sem razão. Até aqui, esta é minha humilde contribuição à Filosofia. Por isso optei por escrever a palavra com letra maiúscula: para sublinhar o caráter universal desse conceito, por um lado, e para diferenciá-lo de suas acepções usuais (antropológica, elitista, etc.).

Esse trabalho irá prosseguir, fora da Internet, em três livros. O primeiro, a ser publicado já em 2015, será um ensaio curto e acessível. O segundo será uma tese de doutorado em Filosofia. O terceiro seria dedicado a um diagnóstico da modernidade do ponto de vista desse novo conceito de cultura. A propósito, pretendo realizar meu doutorado na UFRJ, onde fiz o mestrado, mas isso não está certo e eu ainda nem procurei o professor com quem desejaria trabalhar. Estou, portanto, aberto a convites.

* * *

Aderir a um programa qualquer sempre será mais fácil do que ouvir o outro, produzir a si mesmo e pensar por conta própria. A cada eleição, repete-se a festa da democracia: um monte de retardados disputando o poder com seus programas debaixo do braço e uma multidão de eleitores enfarados com esse espetáculo lamentável. Mas, e esse é o ponto essencial, a solução do problema político não pode ser dada no interior do sistema político. Somar retardados amadores aos retardados profissionais só poderá resultar em mais retardamento. Democratizar a democracia é uma ótima idéia, e já existe uma excelente ferramenta para isso: a Internet. Que tal um fórum de discussões para que todas as pessoas possam participar e discutir? O que eu não aprovo é que um outro pense e decida em meu lugar. Se for para isso, já temos a democracia representativa.

Mas se não há uma solução mágica do problema político no interior do sistema político, onde está a solução? Eu diria que um primeiro passo seria uma reformulação cultural do sistema de ensino. Para isso, no entanto, precisamos de um conceito de cultura que funcione. Alunos precisam saber por que estão na escola: para terem mais meios de se produzirem a si mesmos. Professores precisam saber por que estão na escola: para ensinar aos alunos, juntamente com os conteúdos curriculares, que eles estão ali para aprender a se produzir. Esse novo conceito de Cultura é muito simples. Qualquer criança entende num piscar de olhos.

Por isso votei em Marina Silva para presidente. Entre os candidatos, ela me parecia ser a única capaz de compreender o que estou dizendo. Mas não podemos esperar que a solução venha de um político isolado, de um partido salvador e nem mesmo de uma reforma do sistema político. A solução é lenta, trabalhosa, assim como cultivar uma planta é um processo lento e cheio de cuidados. No prazo de apenas uma geração, entretanto, já teríamos um país inteiramente diferente.


¹ TARDE, Gabriel. As Leis sociais. Tradução de Francisco Fuchs. Editora da UFF, Niterói, 2012, p. 104.

6.10.14

the day after

"Eu assumi um compromisso com a mudança indo apoiar o Eduardo Campos (...) O Brasil sinalizou que não concorda com esse projeto, que quer uma mudança qualificada, temos uma clareza do que representamos. Nós vamos fazer essa discussão, os partidos individualmente e depois vamos dialogar, mas estatisticamente a sociedade mostra isso, não há de tergiversar com o sentimento de 60% dos eleitores."
Marina Silva (O Globo)

Meu voto em Marina Silva não me decepcionou. Ela já deixou claro que irá continuar fazendo oposição ao atual governo. O petismo, é claro, continuará fazendo seu jogo maniqueísta, tentando recuperar para si os votos daqueles que simpatizam com a esquerda. Mas agora não há volta possível. É impressionante, mas não surpreendente, a quantidade de pessoas que, antes simpáticas ao petismo, agora o renegam com todas as forças. Vejam o depoimento deste diplomata e escritor:

"Sempre me identifiquei com o programa político do PT e cheguei a assistir às aulas do Instituto Rio Branco com estrela vermelha presa na lapela (...) Hoje, porém, acredito que fui enganado e que a necessidade de substituição da atual presidente é real. Como brasileiro, é o que sinto (...) Fui enganado uma vez. Para mim, foi o bastante."
Alexandre Vidal Porto (Folha de SP)

No mais, minha candidata a deputada estadual teve 19.336 votos e não se elegeu. Mas sete candidatos com menos votos do que ela, um deles com apenas 11.805 votos, se elegeram. A democracia brasileira é realmente um espanto. Já está na hora de inventarem cotas para os mais votados.

5.10.14

alea jacta est

Não sou analista político e não me vejo falando publicamente de política partidária ou de eleições nos próximos anos. Mas assim como foi difícil deixar de falar de futebol durante uma Copa do Mundo jogada no meu próprio país, seria difícil omitir-me diante de uma eleição tão decisiva quanto esta.

As eleições vão começar daqui a um minuto e algumas coisas já ficaram bem claras. Em primeiro lugar, Marina e Aécio estão tecnicamente empatados e qualquer um deles pode passar para o segundo turno. Em segundo lugar, dada a rejeição a Dilma, que impede seu crescimento para além de um certo limiar, os votos previstos para os dois candidatos de oposição, somados, venceriam as eleições presidenciais com facilidade (de acordo com os números do Datafolha, algo como 50% para a oposição contra 44% do petismo).

Inversamente, caso não ocorra uma migração massiva dos votos do candidato oposicionista derrotado para o candidato oposicionista vencedor, Dilma Rousseff será reeleita no segundo turno.

É claro que o eleitor não é um boneco e que a transferência dos votos não seria mecanicamente determinada pela declaração de apoio do candidato derrotado. Ainda assim, é evidente que esta eleição tem tudo para ser decidida pela manifestação inequívoca de apoio dos candidatos e partidos derrotados no primeiro turno.

E é aqui que as coisas começam a se tornar interessantes. Tudo indica que Aécio Neves, que está em viés de alta, tem grandes chances de desbancar Marina Silva e chegar ao segundo turno. Se isso acontecer, Marina terá de demonstrar grandeza e apoiar Aécio no segundo turno. Caso não o faça, insistindo na neutralidade de sua posição de "terceira via" face à "polarização" entre PT e PSDB, Marina não estará apenas reforçando a tese com a qual Aécio a combateu. Ela estará lavando as mãos em relação aos métodos políticos que o PT usou para tirá-la do segundo turno. E isso, a meu ver, comprometeria inteiramente seu futuro político.


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