14.2.15

Cultura: um centrismo descentrado?

Em 1972, período negro na história do Brasil, eu estava com dez anos de idade e meu pai (a quem eu sempre escutava atentamente) resolveu dar-me um conselho. "Filho, quando a direita está no poder, quem é de esquerda se estrepa. Quando a esquerda está no poder, quem é de direita se estrepa. Seja de centro."

Era a velha tática de assustar a criança – usando não apenas um, mas dois bichos-papões – para conquistar minha adesão. Curiosamente, houve quem usasse a mesma tática para, ao contrário, refugar a posição centrista: "ficar no meio da estrada é perigoso; os dois sentidos do tráfego irão atropelá-lo". (1)

Será? E se o centrista, por hipótese, for suficientemente coriáceo a ponto de resistir aos atropelamentos? E se ele revelar-se forte o bastante para distribuir sopapos e pernadas à direita e à esquerda?

Essa foi minha mais recente descoberta, que é também um reencontro com meu pai e com um passado de mais de 40 anos: escolher o centro (ao menos para mim) não é carecer de coragem para tomar uma posição à esquerda ou à direita; ao contrário, escolher o centro é gozar de um excesso de lucidez, coragem e independência face aos dois pólos que gostariam de ver excluída de antemão qualquer terceira possibilidade.

E assim como as porradas podem sair para qualquer lado, também as simpatias. Se desprezo o medíocre jornalista conservador que se crê melhor do que um lixeiro, simpatizo com aquele outro conservador que valoriza e defende os lixeiros. (2) Se desprezo todos os autoritarismos de esquerda viciados em dinheiro e poder, simpatizo com José Mujica, "o mais pobre dos presidentes". (3)

Obviamente, há algo ainda mais decisivo do que as porradas (instância crítica) e as simpatias. O que o centro, ou o centrismo, teria a propor? Afinal, esquerdistas, liberais e conservadores de todos os matizes têm diante deles, a guiá-los, um programa qualquer. É por isso que eles parecem, ao menos na maioria dos casos, personagens estereotipados; suas reações aos fatos são as mais previsíveis. É que cada qual tem sua própria "agenda" e pensa sempre de acordo com seu programa.

Pois bem: haveria um programa centrista? Seria a idéia de Cultura, tal como eu a entendo, uma espécie de "antiprograma", o germe de um centrismo descentrado ou rizomático?


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(1) Margaret Thatcher, apud "Centro político", artigo da Wikipédia.
(2) Gustavo Corção. Os lixeiros de minha rua, IN Melhores crônicas, São Paulo, Global, 2010.
(3) Mujica: The world's 'poorest' president (BBC). E por falar nesse admirável país (el paisito, como seus habitantes gostam de chamá-lo), uma das exigências para se obter cidadania uruguaia é esta: "Ideas democráticas: Deberá probar bajo juramento que profesa ideas democráticas y que no forma parte de organizaciones sociales o políticas que, por medio de la violencia, tiendan a destruir las bases fundamentales de la nacionalidad." Fonte: Gestión de Residencia o Ciudadanía Uruguaya.


Cabo Frio, 3 de janeiro de 1980: quem atropelou quem?


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