29.4.19

uma era de ouro

Certa vez, numa conversa com Lydio Bandeira de Mello (a quem estou devendo uma visita), eu disse que estamos vivendo, num âmbito global, uma era de ouro.

Ou seja, se pensamos que o presente é ruim, é porque ainda não vimos (ou previmos) o futuro. Ainda gozamos de uma relativa liberdade, inclusive no que diz respeito à mais importante entre as liberdades, a de expressão; nossos oceanos ainda não são imensos depósitos de lixo quase sem vida; ainda existem abelhas, florestas e reservas de água doce; os conflitos ainda são localizados e não se tornaram guerras de grandes proporções; ainda não testemunhamos ataques atômicos, químicos ou biológicos que fariam os genocídios do século XX parecer simples ensaios; a democracia liberal não foi inteiramente substituída por ditaduras populistas ou teocráticas, e ainda subsiste em alguns países; o controle total da sociedade por meio da tecnologia ainda está tomando forma; quase todos os países ainda compartilham uma única Internet; e ainda não nos tornamos (todos) inteiramente estúpidos e insensíveis, embora caminhemos para isso a passos largos.

Assim, apesar de todos os enormes problemas, alguns deles não mencionados acima, ainda há tempo para cantarmos what a wonderful world; sem esquecer, entretanto, que grandes privilégios trazem consigo grandes responsabilidades.

27.4.19

A pobre da Filosofia

Haveria algo de divertido e irônico no recente anúncio do corte de verbas nas áreas de Filosofia e Sociologia? Certamente que sim.

Em primeiríssimo lugar, diverte-me ver a Filosofia, que nasceu há milhares de anos, ser equiparada a uma disciplina como a Sociologia, que nasceu ontem (isto é, no final do século XIX) com Gabriel Tarde e Émile Durkheim.

Me diverte que ataquem justamente a Filosofia, pois, hoje, ela não tem poder algum, mesmo nos grandes centros de produção de conhecimento, e menos poder ainda num país como o nosso.

Me diverte ver a Filosofia, que é justamente o campo onde se estuda uma disciplina chamada Ética, ser desvalorizada num dos países mais corruptos do mundo.

Me diverte pensar que, ao menos na minha época, a presença do marxismo numa pós-graduação de Filosofia (UFRJ) era praticamente nula. E duvido que isso tenha mudado tanto assim. Filosofia é um universo muito vasto, de modo que existe lugar para o marxismo na Filosofia, mas jamais se poderá fazer da Filosofia um apêndice do marxismo (a não ser, é claro, num regime totalitário ou numa cabecinha muito limitada).

Me diverte (e me diverte imensamente) pensar que os mesmos que acusam as universidades de forjar imbecis em série sejam os mesmos que defendem a idéia de liberdade e de responsabilidade individual. Afinal, somos livres e responsáveis ou somos produzidos pelo "sistema" como sardinhas em lata? Fico com a impressão de que esse pessoal mal sabe do que está falando.

Me diverte pensar que alguém possa chutar o que seria um dos três pés de uma civilização que diz defender.

Só não me diverte pensar que os mais pobres terão ainda mais dificuldades para estudar Filosofia. Mas, como diria o filósofo, no Brasil pobre só se fode.

19.4.19

Confrontation: Badiou versus Finkielkraut


Este é, por enquanto, o meu livro do ano, tanto mais surpreendente nestes tempos em que os confrontos não conduzem ao diálogo, mas a sórdidos jogos de poder. Realmente esclarecedor.

Hoje (dia 19 de abril) haverá um confronto semelhante: Slavoj Zizek versus Jordan Peterson. Ainda não conheço o trabalho de Peterson e só conheço Zizek a partir de uns poucos textos, mas se a conversa render apenas metade do que rendeu o debate entre Badiou e Finkielkraut, terá valido a pena. Espero que liberem o material o quanto antes, pois não pretendo pagar apenas para assistir online...

update (20.04.2019)

O debate será oficialmente liberado no YouTube dentro de um mês, mas já estão circulando cópias não autorizadas do vídeo na plataforma. Peterson não fez justiça ao pensamento marxista, sobretudo quando mencionou as relações entre Homem e Natureza; de resto, fez as inevitáveis críticas que se espera de alguém que prefaciou um livro de Solzhenitsyn e disse coisas bastante sensatas.

Zizek, por sua vez, pareceu-me fazer críticas ao capitalismo muito mais inteligentes e nuançadas do que as de Badiou no seu debate com Finkielkraut. Apesar da dificuldade para entender o inglês macarrônico de Zizek, fica a impressão de que ele estava muito mais à vontade, o que acabou passando a impressão (errônea ou não) de que ele estava mais bem preparado, seja lá o que isso signifique.

O debate entre Badiou e Finkielkraut (curiosamente ignorado nesta matéria do jornal O Globo) foi centrado em temas atuais e específicos, o que faz dele um vigoroso estímulo ao pensamento. Já o debate entre Peterson e Zizek, centrado num tema demasiadamente geral, valeu mais pela mútua boa vontade entre os dois acadêmicos e pelos surpreendentes pontos de contato apresentados, inclusive na crítica ao politicamente correto.

Impossível terminar esta nota sem mencionar a exposição de Zizek sobre a tese de Brian Andre Victoria (Zen and Japanese Militarism). Afinal, a crítica ao que há de terrível numa tal tese só pode conduzir ao estabelecimento da responsabilidade individual como um conceito-chave incontornável. Eu até me arriscaria a dizer que esse é o centro que esquerda e direita não podem desprezar jamais.

15.4.19

Notre-Dame de Paris

Hoje, em Paris, a catedral mais famosa do mundo foi parcialmente consumida por um incêndio.

Choram crentes e ateus.

No Brasil, arde a liberdade de imprensa.

14.4.19

Surface web, Deep web e Dark web

A confusão a respeito desses temas é tão espantosa, e vem sido fomentada na mídia por nomes tão respeitáveis, que por um momento somos tentados a acreditar que tudo não passa de uma imensa campanha de desinformação.

Não creio. Em primeiro lugar, não vejo nenhum motivo plausível para a existência de uma conspiração como essa. Em segundo lugar, não vejo nenhuma razão pela qual profissionais respeitadíssimos arriscariam suas duramente estabelecidas reputações escrevendo artigos que qualquer (qualquer é mera força de expressão, bem entendido) estudante de informática poderia refutar com ótimos argumentos.

Não. A confusão é conceitual e vem se arrastando desde 2001, quando a locução deep web teria sido cunhada. E não, destrinchar esse arredio animal não é uma tarefa que "qualquer" estudante seria capaz de realizar. Por sorte, um brasileiro de apenas 20 anos chamado Natanael Antonioli, que administra o site Fábrica de Noobs e um canal homônimo no YouTube, soube trabalhar o conceito à perfeição e ganhou minha bênção filosófica. Não é que a bênção de um filósofo valha alguma coisa nos dias de hoje, mas... você entendeu.

"Desmistificando: Deep Web" é o vídeo mais recente que Antonioli produziu sobre o tema. Há muitos outros sobre o mesmo tema e sobre muitos outros temas, tudo muito bem organizado e com farto material de estudo compartilhado gratuitamente.

Não percam. O moleque é bom.


5.4.19

A diferença conceitual entre rememorar e comemorar

Lá pelos anos 90, se não me falha a memória, uma simpática escritora brasileira cujo nome não cometerei a indelicadeza de revelar disse, no programa televisivo Sem censura, que a palavra "comemorar" reunia os vocábulos "comer, morar".

Foi um choque, já que a escritora não estava descrevendo uma vista puramente poética (que seria inteiramente aceitável), mas uma suposta (e fantasiosa) etimologia da palavra.

Lembrei-me desse fato hoje, ao ler, num jornal de circulação nacional, o texto de um jornalista muito conhecido que escreveu o seguinte: a etimologia não distingue a palavra "rememorar" da palavra "comemorar".

Pode ser. O problema é que ninguém leva em conta a etimologia, por exemplo, ao chamar alguém de idiota. Conhecer a origem de uma palavra e sua etimologia é sempre (ou quase sempre) esclarecedor, como vimos na análise da origem da palavra "chiclete"; mas usar  esse conhecimento para engessar a língua e dar curso a mal disfarçadas sanhas inquisitoriais é coisa completamente distinta.

Para mim, que por acaso escrevi sobre o tema da rememoração no primeiro capítulo de minha dissertação, a coisa toda é, do ponto de vista conceitual, que não coincide necessariamente com o ponto de vista etimológico, extremamente simples.

Rememorar é um ato psicológico. Comemorar (tal como cooperar) é um ato social.

* * *
E é só isso. De minha parte, nada a comemorar.


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