O Brasil está, por assim dizer, desandando. O resto do mundo também; mas eu não vivo no resto do mundo, que só conheço por ouvir dizer; e pelo simples fato de viver aqui eu sou, como tantos outros, testemunha privilegiada do desandamento particular que é o nosso. Se eu quero fazer algo a respeito? É claro que eu quero. Mas não é comentando as bobagens do dia que eu estarei fazendo "algo a respeito". Isso já há quem faça; e eu tenho, de fato, outros planos.
O que me levou a tomar essa decisão? Mais uma bobagem, ou melhor, duas bobagens (daquelas bem bobinhas mesmo), ambas sobre o tema que foi objeto de minhas três últimas postagens.
Sou contra a proibição pela Justiça do Rio da venda, exposição e divulgação do livro “Minha luta”, de Adolf Hitler, um asqueroso manifesto de propaganda das ideias nazistas, fascistas, racistas e antissemitas, sem valor filosófico, histórico e nem mesmo biográfico, porque cheio de mentiras... Se é assim, por que então sou contra? Defesa da liberdade de expressão? Não é nem por isso, já que o livro pode ser baixado grátis pela internet por qualquer um. A principal razão é o temor do chamado “efeito paradoxal”, uma consequência oposta ao que se pretende: em vez de impedir a leitura, a medida pode estimulá-la (...)¹
Como vemos, o autor posiciona-se contra a proibição do livro de Hitler, que segundo ele carece de "valor filosófico" (concordo plenamente) mas também não possui valor "histórico e nem mesmo biográfico, porque cheio de mentiras". Mas ele não é contra a proibição porque esteja defendendo a liberdade de expressão, "já que o livro pode ser baixado grátis pela internet por qualquer um." Ele é contra porque a proibição acaba funcionando como propaganda daquilo que está sendo proibido.
Agora me digam: será que o leitor realmente precisa de mim para adverti-lo de que, muito embora a história possa ter como alvo a busca da verdade, também as mentiras possuem valor histórico e/ou biográfico? Por exemplo, para estabelecer que os personagens A ou B eram mentirosos, será preciso justamente recolher todas as suas mentiras e confrontá-las com os fatos, ou ao menos com versões mais fidedignas desses mesmos fatos. E isso se aplica tanto a genocidas boçais como Hitler quanto a falsários inofensivos como Bob Lester.
Ou será que o leitor precisa de mim para compreender que a mera circulação clandestina de um livro não elimina da sentença judicial que o proibiu seu caráter autoritário? Quem não vê que a defesa da liberdade de expressão é uma questão de direito, e nada tem a ver com a disponibilidade de fato de um texto proibido? Dizer que não é preciso defender a liberdade de expressão porque o livro pode ser obtido equivale a dizer que seria desnecessário defender a liberdade de fornicar se o sexo viesse a ser proibido, já que as pessoas sempre dariam um jeito de burlar a lei.²
E então? Vocês realmente precisam de mim para dizer a vocês essas coisas? Não, não precisam.
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¹ Zuenir Ventura. O risco do efeito contrário (O Globo, 17/02/2016)
² Vale a pena relembrar que a proibição indiscriminada acaba afetando a divulgação da única edição que vale a pena ser divulgada: a nova edição crítica alemã. Se considerarmos as coisas por esse aspecto, então a "segunda bobagem" é, na verdade, uma bobagem dupla: sim, é preciso defender a liberdade de expressão em geral, mas (pela razão particular apresentada nesta nota) também é preciso defendê-la, em especial, neste caso concreto.
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