3.10.17

A (comprovada) ineficácia do não

Ao ficar sabendo que o programa de prevenção a drogas do governo federal elevou o uso de álcool entre estudantes (é isso mesmo: elevou, ao invés de diminuir), o último sentimento que eu poderia ter experimentado é o de surpresa: venho falando desse tema há pelo menos dez anos. Quem porventura leu o texto "A ineficácia do não", de 2014, sabe a que me refiro. Voltarei ao assunto apenas para destacar alguns pontos mencionados nas fontes que consultei.

O primeiro deles diz respeito ao caráter "importado" do programa. É claro que os resultados desse tipo de iniciativa teriam de ser diferentes na Europa e no Brasil. Lá as crianças têm com que se ocupar: elas lêem, desenham, tocam instrumentos musicais. Aqui elas mal conseguem alfabetizar-se, mas isso não as impedirá de encontrar algo que preencha esse formidável vazio.(1)

Outro ponto que chama a atenção nos textos publicados pela imprensa pode ser resumido nesta declaração: "Não dá para destruir essa história sem colocar nada no lugar. O modelo original era bom. Algo aconteceu na implantação."

Onde é que eu já ouvi um argumento semelhante? Por que "não daria" para destruir uma "história" que custou (em 16 cidades) 9,4 milhões de reais e acabou aumentando em 30% o número de jovens que tomaram álcool pela primeira vez? Porque a idéia é... "boa"? Porque deu certo na Europa? Porque se mudarmos certos detalhes em sua "implantação", finalmente dará certo?

Por último, mas não menos importante, "os pesquisadores afirmam que, no Brasil, o consumo de álcool por adolescentes é considerado aceitável, porque normalmente a substância não é considerada uma droga."

Ora, esse dado, por si só, mostra que os adultos é que deveriam ser educados a respeito dos perigos do consumo de álcool por adolescentes. Afinal, se pesquisas oficiais do governo já revelaram que o álcool é que é a verdadeira "porta de entrada" da garotada para as drogas, e se a ciência revela que o consumo precoce de álcool é altamente prejudicial, que estamos esperando para fazer uma campanha dirigida para os adultos? Pois os adultos que são vítimas da guerra de desinformação (e acreditam que a maconha é a "porta de entrada" para as drogas) são os mesmos que fazem vista grossa ao consumo de álcool pelos jovens.

* * *
Diante desse quadro (a qualidade de nosso ensino é uma catástrofe, as campanhas "educativas" são contraproducentes), a proposta de proibição da publicidade de qualquer tipo de bebida alcoólica (inclusive a cerveja) é muito mais pertinente do que supõem algumas vãs filosofias. Mas eu admito que essa proibição teria de ser acompanhada, preferencialmente, por uma campanha de esclarecimento dirigida ao público adulto.

Por fim, depois de banir a propaganda dos estados alterados de consciência, poderíamos tranqüilamente liberar a maconha e aplicar os impostos arrecadados com ela em saúde e educação.

* * *
E agora, leitor? Serei eu um liberal, ou talvez um esquerdista, já que defendo a liberação da maconha? Ou serei, talvez, um antiliberal, e mesmo um conservador, já que proponho o fim da publicidade do álcool?

Na verdade, sou apenas alguém tentando equacionar um problema complexo com os dados de que disponho. Meus seis ou sete leitores neste fim de mundo virtual não precisam se preocupar: nada do que estou dizendo irá acontecer. Os lobbies do tráfico, da publicidade e da educação não permitirão.

A propósito: não sou e nunca fui "contra" sexo, drogas e música fácil. Sou simplesmente a favor de aventuras mais difíceis, mais sutis e mais perigosas.

______________

(1) Na verdade, não há vazio: há, isso sim, um formidável poder de afetar e de ser afetado que será (necessariamente) preenchido por afecções e afetos. Se não somos, nós mesmos, suficientemente artistas, filósofos e cientistas para encantar nossas crianças com as aventuras do pensamento (e da vida potente que o pensamento suscita), quem poderá condená-las por trilhar os mesmos caminhos já trilhados pelas gerações anteriores: sexo, drogas e música fácil?


Fontes

A ineficácia do não (2014)

Programa de prevenção a drogas do governo federal elevou uso de álcool entre estudantes (O Globo)

‘Não dá para apenas importar um programa’, diz Zila Sanchez (O Globo)

Programa tenta reduzir drogas entre jovens, mas consumo de álcool cresce (Folha de SP)

Programa preventivo #tamojunto e os desafios da educação no Brasil (documento PDF)

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