13.8.07

a cultura e a morte - nova série (2)

Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera.

Num grande filme cada detalhe faz sentido; é como se num filme desses fosse possível entrar por qualquer porta sem receio de cometer uma arbitrariedade. Entremos nesse, pois, pelo detalhe da caligrafia felina. Digamos que eu aceite a tese de que usar o rabo do gato como pincel foi uma crueldade. A meu ver aquilo não passou de um pequeno incômodo para o bichano, mas digamos que tenha sido uma crueldade. O que a diferencia da crueldade do menino que maltratava animais? É que esta - esta sim - era uma crueldade sem nenhum sentido: a não ser que aceitemos a tese de que o gozo de alguém basta para dar sentido à sua crueldade. O menino fez os animais sofrerem apenas para se divertir; ele extraiu seu prazer da dor alheia. Assim, o menino personificou melhor do que ninguém o Poder em estado puro. Pode-se pensá-lo como uma espécie de sobrevivente, pois permanecia de pé, com seus movimentos livres, enquanto fazia com que os animais se debatessem sob o peso das pedras. O Poder como pura arbitrariedade: o gozo com o sofrimento do outro, com a subjugação do outro. Estranho exercício da potência.

Já o mestre, ao contrário do que se disse, não era ali um agente do Poder, ele era um agente da Cultura. Aquela pedra ensinou ao menino - em caráter definitivo - a lição que ele precisava receber: aprenda a dirigir suas próprias forças, não faça de sua potência um Poder. Sim, a cultura é crueldade, mas uma crueldade absolutamente necessária, justamente o oposto da crueldade infantil que não tem outro critério senão seu próprio prazer. É por meio da primeira que se impõe limites à segunda. Sofrimento, produção de memória (do futuro), crueldade, foi assim que nos tornamos homens, e apenas assim poderemos ultrapassar o próprio homem, essa doença de pele da Terra.

Mas o trabalho de cultura ainda não havia chegado ao seu termo. O menino virou rapaz e, tomado pela paixão, reagindo aos traços de um amor que já não havia, fez o que fez. E o mestre sabia que o nosso ridículo sistema penal jamais seria capaz de ensinar ao rapaz o que ele precisava aprender: hora de baixar o cajado e de pendurar o moço, hora de fazê-lo escavar na madeira o Prajná-páramitá sutra.

Por fim, o rapaz torna-se homem e finalmente compreende que ninguém pode realizar melhor do que ele mesmo o trabalho da cultura; que ao invés de contentar-se com a mera memória (reativa) dos traços, ele deve produzir em si mesmo, mente e corpo, uma outra memória, voltada para o futuro. A um olhar distraído, esse filme pode parecer encerrado na lógica de uma cultura muito específica; mas ele na verdade está narrando à sua maneira, e a despeito de toda a sua especificidade "cultural", algo que é comum a todas as culturas e que remete à Cultura como potência, como ação do homem sobre o homem.

triagem, 15/03/2005

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

"Toda palavra é crueldade"
Orides Fontela

excelente teus comentários sobre estes dois filmes ,
grata amigo Francisco,
abraço afetuoso,
virgínia

13 de agosto de 2007 às 22:59  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Obrigado, minha amiga.

Eu fiquei, durante algumas semanas, paralisado diante de uma "folha de papel" em branco pensando em como deveria escrever o livro, e joguei fora várias tentativas.

Mas o problema era o meu próprio desejo de "sistematizar" as idéias. Agora vou seguir o caminho inverso, vou proliferar as notas e reunir as antigas, e deixar que a coisa aconteça por si mesma. O ponto de partida do pensamento é sempre confuso (um ponto cinza, caótico), e não adianta tentar "domar" a confusão. Há que trabalhar nela incessantemente e deixar que as idéias, tal como as enzimas, se encaixem por si mesmas.

Abraço afetuoso, do seu amigo
Chico

14 de agosto de 2007 às 07:59  

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