8.8.07

a cultura e a morte

A morte, definida como cessação do metabolismo de um corpo orgânico, não interrompe a corrente de ações que o atravessaram. Para pensar a cultura como potência é preciso escapar ao esquema de Freud segundo o qual a libido ora investe no eu, ora no objeto; afinal, investir o desejo na cultura é precisamente investir em fluxos intensivos para além do sujeito e do objeto. Nesse sentido, a cultura possui uma estreita relação com a morte, aqui entendida como a morte do próprio eu e de seus objetos simplesmente possíveis. A cultura é emissão de fluxos, fluxos de fala, de escrita, fluxos de sons e imagens, fluxos de signos que atravessam um campo social em todas as direções sem possuir um eu como origem ou tomar um objeto como fim. Nem causalidade nem finalidade, mas lances de dados intermináveis porque jogados numa mesa que reverbera ao infinito. A cultura, assim entendida, é a um só tempo a cura da má consciência do eu e do ressentimento face ao objeto: grande saúde que torna a pequena morte, a morte orgânica, um mero detalhe incontornável. Pode-se entender nesse sentido a afirmação de Spinoza segundo a qual podemos aumentar indefinidamente a proporção daquilo que é eterno em nossa alma, e sobretudo a de Bergson, segundo a qual a vida está no movimento que a transmite.

triagem, 05/05/2005

a cultura e a morte (2)

Pode causar espanto a idéia de que a morte orgânica, essa que apavora os passantes até nos mais ensolarados dias, seja não mais do que um pequeno acidente sem a menor importância. No entanto, desde o momento em que nos damos conta de que somos nada mais do que um lugar de passagem - quer em termos culturais, quer em termos orgânicos - esse temor imemorial perante a morte transmuta-se numa imperturbável serenidade. E talvez essa alquimia seja, em termos práticos, o propósito mais evidente da cultura: transformar um animal frágil e assustadiço em uma potência que não teme a própria morte. A finalidade da cultura não é a obra - ela mesma lugar de passagem - mas esse estranho animal que se percebe como um elo, entretanto único, insubstituível, de uma cadeia para além do orgânico. O Estado, a Religião e o Capital podem muito bem contentar-se com homens limitados, servis e bem comportados, ou ao contrário produzir seus heróis sedentos de glória; mas o produto da Cultura, o signo de seu êxito incontestável, é esse animal triunfante, vazio e radiante como a própria luz.

triagem, 06/05/2005

a cultura e a morte (3)

É o pequeno eu que teme pela sua morte e inventa para si sobrevivências morais, transmigratórias ou celestes. É ele que se compraz com o poder e o reconhecimento. É ele que mergulha nos jogos do capital para mascarar sua impotência absoluta. Mas o movimento da cultura não cessa de produzir a morte do pequeno eu. Ali onde transparece o a-fundamento e o afundamento do eu, a cultura é uma força viva; lá onde o eu triunfa, a cultura está morta ou claudicante, subjugada por forças de outra natureza. Não, a cultura não se exprime no conhecimento de nomes, formas e fórmulas, e sequer no conhecimento enquanto tal. Ao contrário, ela se exprime na conquista de uma potência que está muito além do eu e suas propriedades. Inversamente, esse homem soberano, criador, esse iluminado luminoso que é a finalidade da cultura só se torna possível se a cultura é uma força viva. Mas é isso que se apresenta no campo social capitalista? Seria o capitalismo a morte da própria cultura?

triagem, 06/05/2005

a cultura e a morte (4)

Pensar a morte da cultura é penetrar num circo de horrores virtual. Ou bem se é transportado para uma cena totalitária em que os elos da cadeia já não possuem nenhuma autonomia e em que toda ação - e o próprio pensamento como ação - é concebida como função de uma totalidade; ou bem imagina-se um cenário de dispersão desses mesmos elos, que já não agem senão em função de si mesmos e deixam de constituir um todo. Percebe-se aqui a clássica oposição entre a supressão totalitária do eu e sua exaltação no sistema capitalista. No caso totalitário a supressão do eu individual é correlata à exaltação de um eu coletivo: Estado, Raça, Classe, Povo, Nação; no outro, a exaltação do eu individual exprime a pulverização do campo social, curiosamente acompanhada por uma série de paródias (dos ideais totalitários) que funcionam como uma liga imaginária daquilo que está radicalmente desligado; a idéia de Família, por exemplo, tão explorada pela publicidade e tão venerada por aqueles que já notaram que o campo social caminha para uma dispersão absoluta e não são capazes de conceber nenhuma alternativa. Mas os exemplos de "ligas imaginárias" poderiam multiplicar-se ao infinito, pois onde reina a dispersão qualquer coisa pode funcionar como território: uma seleção ou time de futebol, um grupo de rock, um sala de bate-papo, uma comunidade no orkut...

triagem, 07/05/2005

a cultura e a morte (5)

Tal como foi descrita, a morte da cultura é um acontecimento de longa duração. Trata-se aí, no entanto, de um registro ainda muito molar, de um acontecimento de grandes proporções. Mas a vida da cultura acontece primordialmente num outro plano, microscópico, molecular, no plano das pequenas intervenções, das minúsculas ações do homem sobre o homem. A composição de uma sinfonia, a aula de geografia na escola e a palmada no traseiro de uma criança são, nesse plano, equivalentes. Nenhuma dessas ações que moldam a informe matéria humana pode ser considerada a priori como sendo mais importante do que a outra: afinal, a sinfonia em questão pode muito bem ser uma lástima, mas a aula de geografia e o corretivo podem ser essenciais na formação do sábio ou do compositor de amanhã. E tudo isso se torna ainda mais evidente se nos lembrarmos que a finalidade da cultura não é a obra mas o próprio homem (ou o além do homem). Assim, qualquer tia que dá aulas numa escola primária - e qualquer mãe - são tão importantes para o trabalho da cultura quanto um Beethoven ou um Spinoza.

triagem, 09/05/2005

a cultura e a morte (6)

Se a cultura vive nos acontecimentos mais comezinhos, é também neles que ela morre suas mil pequenas mortes. O compositor ruim, a tia entediada, mal preparada e mal paga, a mãe preocupada antes de mais nada com o seu emprego esmaecem a cultura lá onde ela deveria ser pura transmissão de vida. E este é, com efeito, um dos pontos mais essenciais no pensamento da cultura: esta não é apanágio de alguns, mas um movimento ou um trabalho pelo qual todos os homens, sem exceção, são responsáveis. Ser homem significa em primeiro lugar ser um agente da cultura. Ainda que alguns desses agentes, em função da potência de seu trabalho, irradiem suas ações mais longe no tempo e no espaço, é absurdo pensar que a cultura dependa somente deles. Ao contrário, trata-se de um emaranhado de signos em que as mais altas intensidades passam pelas mais baixas e vice-versa. Sim, só os graus extremos importam, mas isso não equivale a dizer que Nietzsche é mais importante do que uma tia, e sim que nenhuma tia deveria ignorar Nietzsche.

triagem, 09/05/2005

a cultura e a morte (7)

Obviamente, o trabalho de cultura depende acima de tudo do investimento de desejo de cada agente da cultura. Mas esse investimento se torna mais e mais penoso se esse esforço não encontra no campo social um terreno propício à cultura. Sim, a cultura morre um pouco toda vez que seu agente se apaixona por sua própria imagem e se toma como causa do movimento que o atravessa. Mas essa morte narcísica da cultura não é nada se comparada à sua morte mercantil. Quando o fluxo de signos é mediado por um fluxo de dinheiro, quando o acesso à cultura se confunde com o acesso aos bens de consumo em geral, subtrai-se a uma enorme parcela da humanidade as próprias condições de possibilidade de gozar dessa gigantesca corrente de signos. Afinal, o trabalho da cultura não termina na mãe, na tia e nem mesmo em Nietzsche. Cultura é invenção de novas possibilidades de vida, e isso se faz a partir do que se recebeu da mãe, da tia e de todo o pensamento humano ao qual somos capazes de nos abrir. Infelizmente, essa mercantilização da cultura é ainda um sintoma e mal dá uma idéia da potência de contracultura que o capitalismo exprime.

triagem, 09/05/2005

a cultura e a morte (8)

A burguesia nasceu revolucionária, negando os privilégios da aristocracia feudal. Suas palavras de ordem eram a acumulação de capital e o trabalho, o esforço produtivo: tempo é dinheiro. Mas hoje o capitalismo já está consolidado e globalizado, e o desafio é trazer para o mercado todos aqueles que, mantendo-se à margem, poderiam ameaçar o sistema. Assim, nos meios de comunicação de massa - os porta-vozes do capitalismo - a palavra de ordem é outra: viver é gozar e gozar é consumir. Ora, para consumir é preciso integrar-se ao sistema, é preciso, de um modo ou de outro, trabalhar. Mas o trabalho não pode ser absorvente demais, desgastante demais. Há que haver tempo suficiente para o gozo como consumo. O que nos primórdios era um elogio do esforço - da aplicação como investimento do desejo - tornou-se um elogio da lei do menor esforço, que encontra sua expressão mais acabada no mercado financeiro: não mais a aplicação como investimento de suor, mas a aplicação como produção de capital a partir do capital. Obviamente, um elogio não substitui o outro, e ambos coexistem no capitalismo atual (como já coexistiam desde o início): quem não tem capital investe suor. E para integrar ao sistema todos aqueles que estão à margem, o capitalismo promove uma captura de desejo que funciona em dois registros: a produção da falta - pela propaganda de mercadorias e serviços cada vez mais sofisticados - e a oferta de crédito. Como dizia Zaratustra, os últimos homens inventaram a felicidade.

triagem, 11/05/2005

a cultura e a morte (9)

Em latim, a palavra cultura remete primeiramente ao cultivo (agrícola). Em sentido figurado, ela remete ao cultivo do espírito. Por fim, ela remete ao culto no sentido de veneração. Cultivar implica esforço: preparar o terreno, selecionar as sementes, plantar e colher. Assim, se a cultura nada mais é do que a ação do homem sobre o homem, deve-se pensar essa ação como sendo um esforço (e mesmo uma crueldade) para produzir um homem capaz de esforçar-se. Um homem incapaz de esforço é incapaz de levar adiante a tarefa da cultura. Em certo sentido, ele sequer é um homem. Totalmente absorto em suas funções digestivas e sexuais, ele irá tomar o campo social como um simples meio para sua satisfação privada. Não é por uma razão moral qualquer que se deve repreender o homem que trepa com suas próprias filhas. Deve-se repreendê-lo, isso sim, porque ao invés de fazer com elas um esforço de cultura capaz de produzir os homens (as mulheres) de amanhã, ele está fazendo delas um mero objeto de seu gozo privado. Esse exemplo extremo mostra com muita clareza que o papel da cultura não é ensinar as crianças a ter prazer (algo que elas certamente aprenderão por sua própria conta), mas a esforçar-se. Ou então elas jamais aprenderão que o esforço pode proporcionar um gozo ainda mais intenso do que os prazeres digestivos e sexuais.

triagem, 11/05/2005

a cultura e a morte (10)

Não basta caracterizar a mercadoria como modificação da natureza, elaboração de uma matéria-prima. Sem dúvida a produção do objeto envolve a transformação de uma matéria qualquer, mas o que ela exprime, na verdade, é a cultura. Em outras palavras, o que as mercadorias - os objetos materiais resultantes do trabalho humano - exprimem é a ação do homem sobre o homem. Todo produto do trabalho é cultura: sangue coagulado, suor cristalizado, esforço materializado (que não seria ele mesmo concebível sem a cultura), mas também ação (virtual) sobre outro homem, trabalho da cultura e gozo latente. Quem produz um objeto age sobre si mesmo, modifica-se a si mesmo através de seu esforço. Quem consome esse objeto abre-se à ação de outro homem, e com isso também modifica-se a si mesmo. Por fim, quando produtor e consumidor coincidem, há uma ação sobre si mesmo mediada pelo objeto. Todo o esforço produtivo da humanidade - e não apenas o esforço "cultural" num sentido mais estrito - é cultura, ação do homem sobre o homem.

triagem, 17/05/2005

a cultura e a morte (11)

Assim como o amor (embora tenha nele sua verdade) não se esgota no ciúme, a conversação não se esgota nos signos mundanos. Se há uma arte da conversação como observação de regras mundanas, há também a conversação como arte, como transmissão de signos da arte. Todos os pedantes o sabem à sua maneira. Mas a cultura autêntica está menos na transmissão desses signos do que em seu embaralhamento. Não apenas o embaralhamento dos signos da arte entre si, mas sobretudo o embaralhamento destes com os signos mundanos e amorosos. Não apenas o exercício do esforço que os signos da arte exigem, mas o exercício de uma passagem contínua entre distintos graus de esforço: da maior concentração ao maior relaxamento (a gargalhada). Passar do mais sublime ao mais rasteiro, e sobretudo fazer passar um pelo outro: a conversação como arte carnavalesca. Aqui a memória perde sua função soberana: lembrar os signos da arte, e até rememorar amores e acontecimentos, sim, mas sobretudo esquecer os limites, passar as intensidades umas pelas outras, embaralhar os signos. Talvez esteja na conversação, assim entendida, a mais inocente revolução pedagógica: ao invés da rigidez dos "conteúdos" (a falta de afeto do fato), a deriva flexível e alegre da conversação como arte.

triagem, 06/06/2005

a cultura e a morte (12)

If nature has made any one thing less susceptible than all others of exclusive property, it is the action of the thinking power called an idea, which an individual may exclusively possess as long as he keeps it to himself; but the moment it is divulged, it forces itself into the possession of every one, and the receiver cannot dispossess himself of it. Its peculiar character, too, is that no one possesses the less, because every other possesses the whole of it. He who receives an idea from me, receives instruction himself without lessening mine; as he who lights his taper at mine, receives light without darkening me.

Se a natureza fez alguma coisa menos suscetível de propriedade exclusiva do que todas as outras, ela é a ação da potência pensante chamada idéia, que um indivíduo pode possuir com exclusividade desde que a guarde para si; mas a partir do momento em que ela é divulgada, converte-se na posse de cada um, e o receptor não pode despossuir-se dela. Seu caráter peculiar, além disso, é que ninguém a possui menos, pois cada outro a possui por inteiro. Aquele que recebe uma idéia de mim recebe instrução para si sem com isso diminuir a minha; tal como aquele que acende sua vela na minha recebe luz sem por isso mergulhar-me na escuridão.

Thomas Jefferson, carta a Isaac McPherson (13 de agosto de 1813).

triagem, 23/06/2005


a cultura e a morte (13)


contracultura (proibição de exibição de dvs em escolas e prisões)
triagem, 23/06/2005

a cultura e a morte (14): viva o copyright

Pensando bem, o conceito de copyleft é desnecessário. O que se tem que fazer é aprofundar a compreensão do conceito de copyright. O direito sobre a cópia, que cabe ao autor, pode (e deve) continuar proibindo a pirataria comercial ou a falsa atribuição de autoria. Mas o direito à cópia deve ser consagrado como um direito inalienável de todo homem. Se um homem fez e publicou, cada outro tem o direito de saber.

A computação e a Internet tornaram possível essa mudança conceitual. Que o copyright do autor continue valendo em relação à atribuição de autoria e à venda do seu trabalho. E que passe a valer o copyright do homem qualquer em relação aos produtos culturais. Não, as duas coisas não são inconciliáveis; ao contrário, esse esquema favorece tanto o produtor quanto o consumidor de cultura. O autor ganha divulgação, mercado latente, e os homens ganham acesso ao que é dos homens.

A meu ver, esse é o problema mais relevante dos próximos vinte anos. Se o capitalismo não mudar de natureza a ponto de absorver esse comunismo latente, continuará sendo uma potência de contracultura e morte. E essa (pequena?) revolução não depende de politicalha, ela depende, ao contrário, do inocente gesto anônimo de publicar. A internet é a ação do homem qualquer sobre o homem qualquer.

triagem, 24/06/2005


a cultura e a morte (15)

Como vimos, a palavra cultura remete ao cultivo (agrícola e do espírito) e ao culto (veneração). Cultivo e culto: essa ambigüidade do termo cultura reflete uma ambigüidade - absolutamente decisiva - do próprio devir da cultura. O autor extraordinário desperta gratidão e admiração: do esforço que ele soube realizar resultou um dom, uma dádiva, sua obra, criação por meio da qual podemos criar ou recriar a nós mesmos. Essa veneração que o autor extraordinário e sua obra atraem para si não deixa de ser benéfica ao movimento da cultura: pense-se em todos os jovens cuja respiração fica suspensa à simples menção de um desses grandes criadores e que em virtude dessa veneração irão dedicar-se com afinco ao estudo de obras que ainda são incapazes de entender plenamente. Entretanto, essa compreensão da cultura como culto é uma faca de dois gumes e possui uma contrapartida que pode ser mortal para a própria cultura. Todo culto é um culto ao passado, e ainda que esse passado seja concebido e mesmo vivido como presente, é de passado que se trata. Mesmo que esse passado acumulado seja - no sentido próprio da palavra - fundamental, não é nele que se irá encontrar seja a atividade, seja o sentido da cultura.

triagem, 24/07/2005

a cultura e a morte (16)

Se o passado é fundamento, o presente é fundação. Tudo se passa como se a cultura como culto (veneração) não passasse de um truque para atrair os jovens para o movimento da cultura. Mas esta é menos um fundamento do que uma fundação. Sem dúvida a fundação alimenta-se do passado, mas se existe algo como uma pedra de toque da cultura, ela não está no passado ou no culto ao passado. Pensar a cultura como fundação remete ao outro sentido da palavra cultura: o cultivo, ou seja, criação ou produção. Todo cultivo supõe uma realidade seminal: semente, esperma, óvulo, mundo dos não-nascidos, útero do que ainda não veio a ser. Tanto os revolucionários que pretendem abolir o passado quanto os conservadores que desejam viver nele erraram, de longe, o alvo; mas se o erro dos revolucionários é pueril, o erro dos conservadores é fatal para a cultura e para a própria vida. O culto à obra e ao autor extraordinários obscurece inteiramente o movimento da cultura (a fundação) e seu sentido: o fundado, o homem de amanhã ou o além do homem.

triagem, 27/07/2005

a cultura e a morte (17)

O homem da cultura diz: nós somos estúpidos: ainda não fomos longe o suficiente. Sequer somos homens; como ousaríamos sonhar com o além-do-homem?

O sacerdote diz: somos todos, irremediavelmente, pecadores.

Quando falta a crueldade ética da cultura, vinga a recriminação moral do sacerdote.

triagem, 22/08/2005

a cultura e a morte (18)

Segundo Bergson, há uma relação diretamente proporcional entre o movimento e a consciência. Renunciando ao movimento, os vegetais renunciaram também à consciência, que neles permanece adormecida, latente ou virtual. E algumas das mais belas páginas de Bergson são aquelas que mostram como os animais que se fecharam em carapaças ou se dedicaram ao parasitismo tiveram que pagar, pelas soluções que encontraram, o preço do adormecimento da consciência.

No entanto, é também Bergson que nos dá a pensar que uma consciência é tanto mais intensa quanto mais fluxos distintos consegue complicar em si mesma, e sobretudo, tanto mais intensa quanto mais ela consegue diferir de si mesma (a alteração puramente interna como grau máximo do movimento, "eu é um outro"). Assim, no caso dos homens, esses animais tão peculiares, pode-se conceber que alguém encerrado em sua cadeira de rodas ou prejudicado por uma doença degenerativa qualquer possa viver os mais intensos fluxos de consciência.

Ainda assim, e para além desses casos extremos que revelam o sucesso do trabalho da cultura, permanece válida a relação geral entre consciência e movimento. E talvez devêssemos nos perguntar, num mundo em que tudo é produzido para nos deixar inertes - os carros, as escadas rolantes, as televisões, todo o conforto sedentário da vida moderna - e também obesos - as massas, o açúcar, as delícias gordurosas - se não seria mais interessante inventar estratégias para fabricar um corpo movente. Não, não se trata de saúde, esse ideal moderno que substituiu a salvação. Trata-se de intensificação da consciência.

triagem, 02/09/2005

a cultura e a morte (hors numérotage)

O mundo da cultura (da ação do homem sobre o homem) supõe um delicioso paradoxo. Hoje sabemos que, ao contrário do que supunha boa parte da história da filosofia, o homem não pensa "naturalmente", e que o pensamento só pensa (só se põe em movimento) quando é forçado a pensar. Porém quanto mais o jovem se torna desconfiado e crítico em relação ao mundo da cultura, mais ele quer ter certeza de que "não será enganado" pelos seus agentes (professores, escritores, etc.) No entanto, esse jovem (por hipótese) ainda não pensa, e assim não tem como saber se o próprio agente da cultura pensa. Daí a importância por ele atribuída ao saber. Para o aluno em sala de aula qualquer nome francês ou alemão, por mais obscuro que seja, terá mais importância do que o homem que está em pé à sua frente. No nosso sistema de ensino, o professor ideal é apenas um "transmissor de conhecimento". Elephant talk. Os alunos provavelmente sairão dali sem ter aprendido a pensar, porém sabendo um monte de teorias, e provavelmente confundirão "saber um monte de teorias" com "pensar". Os professores, por sua vez, se sentirão muito cômodos repetindo teorias (pensar lhes traria muitas rugas). Esse sistema de ensino é o que Gregory Bateson chamou de "beijo da morte". Diante desse quadro, o pensador tem ao menos duas alternativas. Ele pode trabalhar os problemas por conta própria, diretamente, sem referir-se necessariamente aos outros pensadores que o forçaram a pensar aqueles problemas, mas nesse caso ele dificilmente se tornará um professor, e é provável que não seja levado a sério (se chegar a sê-lo) senão depois de morto; ou ele pode mascarar os "seus" problemas nas referências a outros autores, capturando assim o desejo daqueles alunos que têm "sede de saber" (pelas referências), mas também o desejo daqueles que querem pensar (pelos problemas neles mesmos). As duas saídas são igualmente vitais, mas a segunda é sem dúvida mais engenhosa, pois torna o pensador imune aos ataques dos que não suportam que se grite que o rei está irremediavelmente nu.

triagem, 17/02/2006

cultura e sexo

A vida humana poderia ser o seguinte: gozar uns dos outros. Gozar, isso não tem um sentido exclusivamente sexual. É um erro derivar a cultura da sexualidade (sublimação), pois pode-se afirmar precisamente o contrário. Todo ser pluricelular é nele mesmo cultura, cultivo, coletividade. São muitas vidas atualizando, em nível químico, molecular, o dom e o contra-dom. Onde o biólogo molecular vê um fluxo de enzimas - e é isso que se espera dele - o filósofo vê, e sem metáfora, um fenômeno de cultura.

Ou então seria preciso atribuir um novo sentido à sexualidade, tomá-la como uma potência de relação "em geral" ao invés de fechá-la no prazer local, no prazer de órgãos (ou organelas). Conversar é praticar o ato. Cultura e sexualidade seriam dois aspectos de uma mesma potência de relação: num mesmo movimento, a cultura deixa de ser "repressão" e "sublimação" para tornar-se produção de vida, e o sexo deixa de ser mera satisfação orgânica para tornar-se dom e contra-dom.

Nesse sentido, sexo é cultura e cultura é sexo. Até aqui eu vinha definindo cultura como "ação do homem sobre o homem para produzir o homem". Mas dois unicelulares sexuados não trocam informação genética sem ao mesmo tempo produzir um ato de cultura: uma ação da célula sobre a célula para produzir a célula. Na trepada de unicelulares há comunicação, coletivização, integração a um todo em devir permanente, e acima de tudo, a criação conjunta de algo novo. Não deixa de ser surpreendente que esses termos remetam indiferentemente à cultura e ao sexo, pois estamos acostumados a perceber cultura e sexo (ou cultura e natureza) de maneira dualista. Não existe cultura, por um lado, e sexo, pelo outro. O que existe é uma mesma potência de relação que une corpos para produzir novos corpos, e almas para produzir novas almas.

Torna-se inevitável invocar a noção de diferença de potencial. Não é o filósofo que se mete num domínio que "não é o dele" quando invoca uma noção científica, é a ciência que não pode, em primeiro lugar, delimitar de antemão o alcance das noções científicas que ela inventa. A noção de diferença de potencial aplica-se igualmente (isto é, rigorosamente e sem metáfora) aos fluxos moleculares, baseados em disparidades químicas, e aos fluxos de signos e idéias num campo social, baseados nas disparidades entre as gerações mais velhas e as mais novas e em outras disparidades ainda mais profundas.

A vida humana poderia ser isso. Mas não queremos gozar uns dos outros, queremos gozar uns nos outros. Ao invés de produzir um campo social de gozo coletivo, somos produzidos num campo social de miséria coletiva, e não é à toa que enlouquecemos. Somos ensinados a explorar, a usar e consumir aquilo que nos cerca, a viver em função de meios e fins ao invés de viver em função de uma produtividade, ensinados a separar a força do outro do que ela pode ao invés de produzir algo no encontro. E a propaganda nos ordena o gozo, mas ninguém nos explica que o gozo é da ordem da produção e não da ordem do consumo. O sistema capitalista não é apenas contranatura, ele também é contracultura, e no pior dos sentidos. A cultura, tal como o sexo, exige tempo, esforço, cooperação, cultivo, dom. A vida é a arte do arrepio, a arte de produzir signos e carícias.

triagem, 28/08/2006

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

"E talvez essa alquimia seja, em termos práticos, o propósito mais evidente da cultura: transformar um animal frágil e assustadiço em uma potência que não teme a própria morte. A finalidade da cultura não é a obra - ela mesma lugar de passagem - mas esse estranho animal que se percebe como um elo, entretanto único, insubstituível, de uma cadeia para além do orgânico"

' E tudo isso se torna ainda mais evidente se nos lembrarmos que a finalidade da cultura não é a obra mas o próprio homem (ou o além do homem). Assim, qualquer tia que dá aulas numa escola primária - e qualquer mãe - são tão importantes para o trabalho da cultura quanto um Beethoven ou um Spinoza."

"E este é, com efeito, um dos pontos mais essenciais no pensamento da cultura: esta não é apanágio de alguns, mas um movimento ou um trabalho pelo qual todos os homens, sem exceção, são responsáveis. Ser homem significa em primeiro lugar ser um agente da cultura. Ainda que alguns desses agentes, em função da potência de seu trabalho, irradiem suas ações mais longe no tempo e no espaço, é absurdo pensar que a cultura dependa somente deles. Ao contrário, trata-se de um emaranhado de signos em que as mais altas intensidades passam pelas mais baixas e vice-versa. Sim, só os graus extremos importam, mas isso não equivale a dizer que Nietzsche é mais importante do que uma tia, e sim que nenhuma tia deveria ignorar Nietzsche"

bravos !
virgínia

12 de agosto de 2007 às 20:56  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Resposta ali em cima. =)

13 de agosto de 2007 às 03:20  

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