27.8.07

metafísica do pinball


1. A máquina e a mesa

A máquina de pinball é uma realidade física: duas caixas de madeira recheadas de parafernálias mecânicas, elétricas e (posteriormente) eletrônicas. Ela é montada por operários numa fábrica segundo determinadas instruções. Ela está submetida à segunda lei da termodinâmica, ela se gasta, se quebra, se corrompe. Ela pode ser consertada e restaurada com base em aportes externos. Ela é barulhenta e colorida.

A mesa de pinball é uma realidade lógica: um plano ou esquema que contém a localização precisa dos elementos do jogo e de suas funções. Ela é desenhada por engenheiros no papel ou no computador. Seu suporte físico está submetido à entropia, mas ela mesma não se gasta nem se quebra, e a partir dela pode-se gerar um número indefinido de máquinas. Ela pode ser modificada e dar origem a uma nova configuração. Ela é silenciosa e sem cor.

A máquina é concreta, a mesa é abstrata. Ou então: A máquina é a máquina concreta, a mesa é a máquina abstrata. Sem elas não haveria pinball; mas o jogo de pinball depende de alguma coisa que não é lógica nem física. O jogo de pinball é um certo desnível, uma certa diferença de potencial: uma inclinação que afeta a mesa e a máquina embora não pertença a nenhuma das duas. A inclinação pode até pertencer à mesa, mas apenas como uma instrução de montagem, e não como um dos elementos do jogo; ela pode até pertencer à máquina, mas como um puro acontecimento que a afeta como um todo, e não como mais um de seus componentes. A inclinação é nela mesma um quase-nada: nem coisa, nem idéia, nem imagem, nem palavra. Sem ela, no entanto, jamais se teria jogado uma única partida de pinball.

2. Metafísica do pinball

O pinball, reduzido à sua essência, é um desnível em função do qual a bola cai. A inclinação do plano submete uma esfera de aço aos apelos da força de gravidade: singelo acontecimento que não apenas torna possível o pinball, mas lhe dá um caráter épico.

O primeiro desafio é manter em jogo uma bola que invariavelmente cai e volta a cair: fazê-la dançar, zombar da gravidade até que a esfera percorra a trajetória fatal que a colocará fora do alcance. Ao tirar do jogo, uma a uma, todas as bolas, a força de gravidade produz entropia no sistema: máquina zerada, muda, inerte. Game over. Se cada bola é um lance de dados, a partida é a própria possibilidade de lançar os dados; mais do que tentar impedir que a bola caia, o jogador tem que se esforçar para ganhar bolas e/ou partidas extras. O segundo desafio, pois, é vencer a máquina, ou seja, vencer a entropia: fazer com que as bolas que se joga façam a bola retornar.

À diferença dos jogos de violência nos quais o único objetivo é sobreviver diante de uma pilha de cadáveres, o pinball é um jogo metafísico. Seus dois monstros abstratos, gravidade e entropia, são como o labirinto de Borges: muito mais implacáveis do que qualquer bicho-papão cuja figura assombra a imaginação das crianças. O pinball narra, a cada partida, duas batalhas correlatas e simultâneas que são os desafios do vivo e da própria vida: rodopiar intensamente até cair; e não cair sem antes produzir, no lance de dados, o retorno do próprio lance de dados.


triagem, 1/12/2004 e 3/12/2004

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