10.7.08

a pureza e a inocência

por Michel Tournier

A pureza de um corpo químico é um estado absolutamente contranatura que só pode ser obtido por procedimentos que implicam violência. O caso mais simples é o da água. O que é a água pura? Ela pode ser uma água desembaraçada, por ebulição ou filtragem, das bactérias e vírus que ela continha. Trata-se de uma pureza biológica. Mas se aquilo que se busca é a pureza química, serão realizadas distilações sucessivas - a água corre num alambique prolongado por uma serpentina resfriada - para eliminar os sais e os traços de metais. Mede-se a pureza da água tratada desse modo pela sua resistência a deixar passar uma corrente elétrica, pois a água só é condutora graças aos sais minerais que contém.

Essa água "pura" age sobre os organismos vivos como um veneno violento. Quando ela é ingerida por um organismo, os humores e todos os sais minerais veiculados pelo sangue irão precipitar-se para ela, posto que ela lhes dá a oportunidade de se diluírem mais. Esse fenômeno é utilizado para livrar os diabéticos das uréias, ácidos úricos e outras toxinas que se concentram no seu sangue, uma vez que seus rins já não as filtram. Mas essa diálise, necessária nesses casos patológicos, torna-se catastrófica nos indivíduos cujas taxas plasmáticas de sais são normais. Assistir-se-á a uma fuga do cálcio e do potássio sangüíneos que pode acarretar a morte. Com efeito, o coração só bate graças a uma corrente elétrica sustentada por um equilíbrio cálcio-potássio no sangue. A absorção de água "pura" pode provocar também hemorragias estomacais, intestinais ou cutâneas.

Esses males físicos da pureza ainda não são nada se comparados aos crimes inumeráveis que sua idéia obsessiva provocou na história. O homem cavalgado pelo demônio da pureza semeia a morte e a ruína em torno de si. Purificação religiosa, depuração política, salvaguarda da pureza da raça, busca anticarnal de um estado angélico, todas essas aberrações desembocam em massacres e infelicidades inumeráveis. É preciso lembrar que o fogo - "pur" em grego - é o símbolo das fogueiras, da guerra e do inferno. (*)

Por oposição à pureza, a inocência parece ser sua inversão benéfica. Inocente é o animal, a criancinha e o débil mental. Sobre eles, o mal não tem poder. O homem adulto e razoável pode fixar-se como um ideal um estado que é o de sua primeira infância prolongada e preservada. A inocência é amor espontâneo do ser, sim à vida, aceitação sorridente dos alimentos celestes e terrestres, ignorância da alternativa infernal pureza-impureza. Certos santos, como São Francisco de Assis, parecem viver nesse estado em que a simplicidade animal se conjuga com a transparência divina.

Porém trata-se de um improvável milagre. No romance de Dostoiévski, O Idiota (1868-1869), o príncipe Míchkin, devorado por uma piedade devastadora, revela-se incapaz de amar uma mulher, de resistir às agressões do mundo exterior e finalmente de viver. Ele é fulminado pela epilepsia.

(*) Em francês, "pur" quer dizer puro. Curiosamente, as duas palavras são pronunciadas da mesma forma: "pír". (N.T.)

Michel Tournier, "La pureté et l'innocence", IN Le miroir des idées, Paris, Mercure de France, 1994, pp. 171-174. Tradução minha.


triagem, 06/02/2006

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