3.9.08

a cultura e a morte - nova série (10)

1. O grau máximo da diferença

Entre todas as perguntas terríveis que se pode formular para si mesmo, há uma que se apresenta, possivelmente, como a mais terrível de todas: aquilo que eu faço é aquilo que apenas eu poderia fazer? Se eu faço algo que muitos, senão todos, poderiam fazer, não passo de uma peça facilmente intercambiável nas engrenagens da máquina social, e vejo-me condenado a uma existência de animal de rebanho. Se, por outro lado, eu faço algo que poucos poderiam fazer, ou se faço algo "melhor do que a média", pouca coisa muda; não deixo de ser, por isso, um animal de rebanho; continuo sendo intercambiável, ainda que com um pouco mais de dificuldade, e minha única distinção é a de ter me tornado, por assim dizer, uma cabeça premiada, gado de valor. Se um único homem puder fazer em meu lugar aquilo que eu faço, é porque eu ainda não descobri aquilo que apenas eu posso fazer. Evidentemente, a resposta a essa pergunta fatal - o que somente eu poderia fazer? - não pode ser abstrata ou genérica, e se confunde concretamente com a invenção de realidade da qual sou capaz aqui e agora; realidade essa na qual eu terei que envolver ou implicar a mim mesmo num grau extremo. Em outros termos, essa pergunta me confronta diretamente com os problemas da criação e da diferença: qual é o grau máximo de diferença de que sou capaz?

2. A cultura e a diferença

A cultura, ação do homem sobre o homem para produzir o homem (e, quem sabe, o além-do-homem), só visa produzir animais de rebanho quando é apropriada ou conduzida por forças reativas que a mutilam e desfiguram. Tomado a partir de uma perspectiva ativa, o movimento da cultura se confunde com um devir-revolucionário cuja tarefa é a de criar criadores. Nesse sentido, a pergunta "o que somente eu poderia fazer?" não é um mandamento, uma lei, um preceito moral, mas tão somente um estimulante da própria cultura, tal como o chá e o café são estimulantes do corpo. Aqui a "pergunta fatal" deixa de apresentar-se sob seu aspecto mais "terrível" - quase uma maldição que evidencia a que ponto somos substituíveis - e passa a mostrar-se sob uma forma mais benigna: como um desafio, ao menos para aqueles que souberem lhe dar ouvidos.

Por fim, note-se de passagem que, desde o início, eu coloquei o problema em termos de ação: o que está em questão é aquilo que eu faço, aquilo que eu crio, aquilo que eu produzo. Juntamente com as mercadorias e serviços que anuncia, a publicidade vende a idéia de que um homem pode distinguir-se por aquilo que consome. Basta examinar essa idéia por um momento para compreender que é impossível abordar o tema da cultura sem ao mesmo tempo abordar o tema da morte da cultura.

8 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Oi,, Chico.
Pois é, essa questão "aquilo que eu faço é aquilo que apenas eu posso fazer?" sempre me inquietou. Poderíamos inverter um pouco a questão perguntando "O que eu posso fazer que apenas eu posso?" Há uma leve diferença que se coloca aí. Significa questionar se estou fazendo aquilo que posso de fato, se estou efetivando toda a minha potência ou se, ao contrário, estou separada daquilo que posso. Seria essa a questão? Penso que ambas se confundem a ponto de se misturarem algumas vezes, mas há entre elas uma sutil diferenciação. E, pra mim, a segunda é bem mais incômoda.

13 de setembro de 2008 às 13:44  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Olá, Siomara.

Se entendi bem, a questão que você está levantando é a mesma levantada anteriormente por Nietzsche (as forças reativas separam as ativas daquilo que elas podem), por Spinoza (não se sabe o que pode um corpo), por Bergson (enquanto a vida sempre vai à frente, os indivíduos ficam marcando passo no mesmo lugar). E já que vivemos num mundo dominado pelo devir reativo das forças, pode-se dizer que ela é ao mesmo tempo mais incômoda e de alcance mais geral.

A minha questão, por outro lado, se coloca mesmo para aqueles que já experimentam um devir ativo das forças e um devir afirmativo da vontade - e, até onde posso ver, jamais foi colocada anteriormente. Será que apenas eu poderia fazê-lo? =)

14 de setembro de 2008 às 10:39  
Anonymous Anônimo disse...

Sim, isso mesmo. Essa questão é mais incômoda e ao mesmo tempo mais abrangente, justamente pelo fato de vivermos num mundo dominado por forças reativas.

Quanto à sua questão mais específica, respondendo de uma forma bastante simplória, creio que aquilo que cada um de nós faz é feito de determinada maneira que apenas cada um pode fazer. Eu acredito que na mínima ação praticada, por mais prosaica que seja a ação, é sempre colocado algo tão estritamente particular e inconfundível, que só aquela pessoa é capaz de expressar daquela forma... Sim, apenas você poderia fazê-lo.

Agora, fazendo uma pequena provocação... você diz que sua questão se coloca "para aqueles que já experimentam um devir ativo das forças e um devir afirmativo da vontade". Mas será que alguém consegue, de fato, experimentar um devir ativo das forças e um devir afirmativo da vontade o tempo todo, de forma permanente?

14 de setembro de 2008 às 21:13  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Em outros termos, a questão que você levantou é mais incômoda e mais abrangente porque diz respeito aos animais de rebanho, "preocupados em nascer e morrer", como diz a célebre canção. Afinal, eles são a maioria. Não se engane quando digo "eles". Todos nós nascemos mamando no peito e cagando nas fraldas. Seguir fazendo apenas isso a vida toda é que é o problema.

Quanto à "minha" questão, não sei até que ponto ela vale alguma coisa, mas é certo que ela nada tem a ver com as pequenas (ou mesmo as grandes) diferenças que somos capazes de introduzir nas nossas ações. Por exemplo, um escrivão de cartório com a mais bela das caligrafias não me interessa em absoluto. A questão que você levanta pode até ser interessante, mas não é a minha.

Por fim, sua (deliciosa) provocação. Se eu fosse um deleuziano de última hora, diria que não há nada de permanente e que a questão é precisamente a do devir... Resposta fácil e evasiva, indigna de um filósofo. Pois trata-se de outra coisa: de uma questão de hierarquia. As forças ativas comandam as reativas, a afirmação comanda a negação? Ou são as forças reativas e a vontade de negar que dominam, produzindo um fantasma de atividade e um fantasma de afirmação? Para ficar um tanto menos abstrato: todo mundo come e dorme. Até Nietzsche comia e dormia. Ora, comer e dormir são expressões das forças reativas, são, digamos, funções de conservação. Mas, justamente, o problema não está em eliminar as forças reativas (ou a negação na vontade), mas em fazê-las servir à atividade e à afirmação. Não sei se você já leu o artigo em que falo disso, escrito há mais de dez anos. Ele está disponível aqui:

http://pontocinza.wordpress.com/o-lance-de-dados/

Desse modo, a questão "o tempo todo" ou "de forma permanente" simplesmente não se coloca. A questão que se coloca é "quem". Quem comanda? Quem obedece? Meu comer e dormir estão a serviço da criação? Ou eu me contento em ser uma daquelas pessoas na sala de jantar?

15 de setembro de 2008 às 02:27  
Anonymous Anônimo disse...

Sim, sim... entendo o que você diz. Talvez a minha expressão "permanente" não tenha sido muito adequada, pois não expressa exatamente a minha idéia. De qualquer modo, o que eu penso é que existe um intercâmbio de forças ativas e reativas o tempo todo, um combate constante que se trava entre elas, no qual ora vencem as primeiras, ora as segundas; ora as primeiras obedecem às segundas, ora as comandam, enfim, creio que esse jogo de forças opere o tempo todo. E penso que ninguém esteja imune a essa oscilação de forças que atuam em todos nós... Afinal, não podemos negar que vivemos num mundo dominado por forças reativas. Como não nos contaminarmos por elas vez ou outra, pelo menos em certa medida? Na minha modesta percepção (pois não tenho a pretensão de me considerar filósofa), mesmo Nietzsche sucumbiu a essa contradição das forças. Até ele, que combatia ativamente os preconceitos, por exemplo, deixou-se levar por eles algumas vezes. Principalmente em relação às mulheres... Seu discurso, assim como o de todos os filósofos da história da humanidade até hoje sempre me pareceu dirigido a homens.

26 de setembro de 2008 às 14:20  
Anonymous Anônimo disse...

Sobre o que Nietzsche disse ou deixou de dizer sobre as mulheres eu não vou me manifestar; aquilo é realmente complicado.

Quanto à questão que realmente me (nos) interessa, é preciso esclarecer o seguinte. Quando as forças reativas comandam, forma-se um tipo reativo. Quando as forças ativas comandam, forma-se um tipo ativo. E assim como no tipo reativo as forças reativas separam as forças ativas do que elas podem, no tipo ativo as forças ativas acionam as forças reativas. É claro que um tipo reativo pode devir ativo e vice-versa (e essa é mesmo a questão primordial). Mas isso não tem nada a ver com a oscilação que você descreve. Apesar de sucinto, espero ter sido suficientemente claro e preciso a ponto de poder reclamar o direito de assinar-me filósofo.

27 de setembro de 2008 às 18:51  
Anonymous Anônimo disse...

Sim, a questão de Nietzsche sobre as mulheres é complicada... Pra mim tem muita coisa aí.
Quando eu disse não ter a pretensão de me considerar filósofa, eu me referia única e exclusivamente a mim como leiga, de certa forma, que sou. Pois veja: não sou formada nem tenho especialização acadêmica em Filosofia; não atuo diretamente nessa área profissional; não sou uma estudiosa disciplinada nem conheço a obra completa dos filósofos; não me dedico ao exercício filosófico, seja por meio do pensamento ou da produção, de forma substancial. Resumindo: meus estudos e minhas leituras são fragmentadas, labirínticas, irregulares e pouco consistentes no sentido do rigor filosófico; por isso me arrisco a lançar desafios, levantar hipóteses e questionamentos, articular algumas idéias, enfim, nada de um ponto de vista de especialista. Eu jamais teria a arrogância de me arvorar num título para o qual não me considerasse suficientemente qualificada. Meu nível de autocrítica é altísssimo! Claro que não é o seu caso. De modo algum eu pretendi insinuar isso! Você pode, e deve, reclamar o direito de se assinar como filósofo! São muitos aqueles que se assinam como tal de maneira enganosa e leviana. Você está bem longe disso.

28 de setembro de 2008 às 12:35  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Siomara, realmente é bastante curioso. Quem se forma em medicina é médico, quem se forma em engenharia é engenheiro... mas quem se forma (ou mesmo quem conclui um mestrado ou doutorado) em filosofia não se torna, por isso, "filósofo". E mesmo o mais erudito e disciplinado dos estudiosos de filosofia não poderia dizer-se filósofo a não ser que tivesse razões muito sérias para tal.

Por outro lado, é igualmente curioso que você tenha se colocado numa postura francamente defensiva quando tudo o que eu fiz foi afirmar, até docemente, minha condição. Você não é filósofa e isso não constitui nenhum problema, há tanta gente de valor que não é filósofa; aliás é por isso que eu tenho me voltado para o problema da cultura (que é universal) do que (por exemplo) para o problema da filosofia, que diz respeito a tão poucos. Eu me assino filósofo com a mesma tranqüilidade com que um gari se diria lixeiro, mas talvez isso não seja muito fácil de entender.

30 de setembro de 2008 às 05:11  

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial

eXTReMe Tracker