31.8.11

A carona, o estribo, o pongar no bonde

Há dois dias escrevi uma nota, que estou publicando aqui com um certo atraso. Ela foi motivada por dois textos. O primeiro deles foi publicado no UOL:

A Secretaria Estadual de Transportes do Rio de Janeiro propôs ao Ministério Público a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a instalação de estribos retráteis nos bondes de Santa Teresa. A iniciativa acabaria com as tradicionais viagens sobre o estribo. Algo ainda em estudo. “O objetivo é orientar e conscientizar os passageiros sobre a utilização segura do transporte, pondo fim às viagens sobre o estribo”, afirma a secretaria em nota. O projeto ganhou força depois da morte do turista francês Charles Damien Pierson (...) Quem contradiz a proposta afirma que viajar no estribo é uma “questão cultural” já que há 115 anos o carioca cultiva a tradição de viajar dessa maneira.

O segundo foi publicado no site da AMAST, onde acabei deixando, a título de comentário, o texto que se lê a seguir. Ele é a defesa de uma prática - única no mundo, ao que parece - que nós, cariocas, chamamos de pegar carona, mas que pode ser descrita também como pongar no bonde. Muito resumidamente, trata-se de saltar da parte dianteira do bonde e subir novamente em sua parte traseira; obviamente, quanto maior a velocidade do bonde, mais perigosa será a manobra. Apenas os melhores conseguem realizá-la nas maiores retas, onde o bonde atinge sua velocidade máxima. Uma variação extremamente valorizada (de imensa plasticidade e valor estético) é saltar do bonde de costas. Em minha adolescência, pratiquei muito esse esporte que irmanava, num pacto silencioso de respeito mútuo, garotos de classe média e garotos das favelas do bairro. Tenho lembranças maravilhosas dessa época e me dói muito pensar que as novas gerações poderão ser forçadas a desconhecer uma prática que, repito, me parece ser única em todo o mundo. Pode-se, certamente, qualificar a carona como um esporte marginal; que seja, e eu de fato não creio que ele se torne jamais um esporte olímpico; mas também o samba, um dia, foi marginal. Outros povos matam golfinhos a golpes de porrete e chamam isso de cultura; mas em nome de que nós, cariocas, renunciaríamos a essa prática esportiva que faz parte de nossa cultura? Em nome da segurança? Se for por essa razão, deveríamos proibir imediatamente a venda de carros, pois eles são responsáveis por uma multidão de mortes em nosso país e no resto do mundo. Não somos e não queremos ser alemães ou norte-americanos; somos e queremos continuar sendo cariocas. Espero que a insensibilidade de alguns não faça morrer esse pequeno e singular espaço de liberdade de que gozamos há mais de um século.

Segue, sem modificações, a nota publicada (como comentário) no site da AMAST.

Excelente artigo, e todos nós sabemos que tipo de gente preconiza a repetição de mentiras como um meio de forjar verdades. No entanto, creio que o item 5 (sobre o uso do estribo) precisa ser discutido.


É claro que a superlotação dos bondes, provocada pelo absoluto descaso das autoridades competentes, força muitos usuários (que prefeririam viajar dentro do bonde) a andar no estribo, o que é um absurdo. E também é claro que deveria haver, ao menos na Estação da Carioca, servidores capacitados a orientar os turistas, estrangeiros ou não, sobre os perigos de viajar no estribo.


No entanto, andar no estribo é, para alguns, uma maneira de não pagar a passagem. Isso pode não parecer importante para muitos moradores do bairro, mas certamente é importante para os moradores de comunidades carentes. Além disso, andar no estribo - algo que nós, cariocas, chamamos de pegar carona e que outros podem chamar de pongar no bonde - foi e continua sendo, para muitos, um esporte. É, sem dúvida, um esporte perigoso; mas o perigo, a meu ver, não desqualifica a priori esse esporte. Há quem tenha morrido por levar uma bolada jogando futebol de salão, e não é por isso que se irá proibir o futebol de salão. Há quem morra afogado, e não é por isso que se irá proibir o banho de mar. Pode-se - e deve-se - alertar as pessoas sobre os riscos que elas podem vir a correr. Mas tomar decisões pelos outros é algo que não se pode nem se deve fazer.


Em resumo, ninguém pode ser forçado a andar no estribo em função do desmazelo dos nossos governantes. Deve haver bondes em número suficiente para as necessidades dos usuários e isso não é negociável. Mas ninguém pode ser proibido de andar no estribo em função do excesso de zelo de quem não gosta de andar no estribo. Há, sim, quem goste de fazê-lo. E andar no estribo é, de fato, uma tradição, uma cultura e um esporte. Mas isso nada tem a ver com os desmandos que sucatearam o principal meio de transporte público em Santa Teresa.



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