28.8.11

Os bondes de Santa Teresa

Eu morei em Santa Teresa durante dois anos, mas muito antes disso (desde os onze anos de idade) eu já freqüentava o bairro e pegava carona no bondinho. A carona é uma espécie de esporte local cujos fundamentos são saltar e subir no bonde em alta velocidade.

Pois bem. Até aqui, cinco pessoas morreram e 57 ficaram feridas no acidente de ontem com o bondinho de Santa Teresa. Assim, é certo que havia um total de 62 pessoas no veículo, mas poderia haver ainda mais gente, já que é extremamente plausível que vários caroneiros tenham saltado do bonde entre o momento em que ele descarrilou e o momento em que ele tombou e bateu no poste. Há um dado em favor dessa hipótese: o bonde tombou para o lado direito, mas o lado esquerdo (o lado que dá para o meio da rua) é tradicionalmente o lado preferido pelos caroneiros. Se um levantamento determinasse que o número total de passageiros nos instantes anteriores ao descarrilamento passava de 70, eu não me surpreenderia.

foto: http://johnmarkhopkins.com/ (clique para ampliar)

Como se pode ver na foto acima, esse modelo de bonde, o mais antigo ainda em circulação, possui oito bancos reversíveis, e cada banco comporta quatro passageiros. A lotação oficial do bonde é de 44 passageiros (32 sentados e 12 em pé), mas sempre há gente viajando no estribo, o que pode facilmente elevar o número de passageiros a 60.

É por isso que, poucas horas depois do acidente com o bondinho de Santa Teresa, o secretário de transportes do Rio de Janeiro, Júlio Lopes, afirmou que a superlotação do veículo é um "fenômeno cultural de Santa Teresa". No entanto, e é por isso que eu resolvi escrever esta breve nota, o secretário de transportes está cometendo uma falácia. Quando uma moradora do bairro oferece ao motorneiro um lanche grátis, ou quando um caroneiro ajuda o trocador a reverter a posição dos bancos e a engatar o "chifre" que conduz eletricidade, ou ainda quando um passageiro cede seu lugar a um idoso, estamos diante de um fenômeno cultural; mas quando um bonde que não recebe manutenção adequada está transitando muito acima de sua capacidade, trata-se de um fenômeno de outra ordem: é um simples fato administrativo. Ao invés de responsabilizar a "cultura" do bairro, o secretário de transportes do Rio de Janeiro deveria mui simplesmente reconhecer que os bondes de Santa Teresa estão funcionando muito além do limite da precariedade.

Fato que, por si só, é espantoso. Afinal, o investimento nos bondes de Santa Teresa não beneficiaria apenas os moradores do bairro, mas também ajudaria a alavancar o turismo na cidade. E por falar em turismo, por que o jovem francês Charles Damien Pierson morreu? Eu diria que ele morreu porque foi forçado a viajar no estribo, já que o intervalo entre os bondes, em vez de ser de dez minutos (como era nos anos 70 e 80), é de uma hora. É de admirar que os bondes, hoje em dia, só andem superlotados? Não, não foi a "cultura" de Santa Teresa que matou Charles. Foi a falta de lugar no bonde, foi a falta de bonde. Do mesmo modo, a tragédia ocorrida ontem não foi provocada por um "fenômeno cultural". Ela foi provocada pelo descaso de políticos e administradores sem nenhuma visão de futuro, capazes de matar a galinha dos ovos de ouro e deixar o povo que anda de bonde a ver navios.

Bondinho de Santa Teresa: travessia sobre os arcos da Lapa (vídeo)

P.S.:
Nota da Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa

P.S. II:
Superlotação pode contribuir, mas não derruba bonde”, diz Crea

P.S. III:
Crea: análises indicam que freio de bonde foi acionado, mas não funcionou

"O que pode ter acontecido, segundo o engenheiro, é que, ao notarem o bonde desgovernado, as pessoas tenham entrado em pânico e tentado saltar, fazendo peso e tombando o carro."

Fora dos trilhos e em movimento, a estabilidade de um bonde é muito precária. Assim, os engenheiros do CREA estão na direção correta ao levar em conta as pessoas que saltaram ou tentaram saltar do bonde quando este descarrilou. Não pelo motivo alegado, mas porque, ao contrário, as pessoas que saltaram aliviaram o peso do bonde. Como afirmei acima, o lado esquerdo do bonde é o preferido pelos caroneiros e, em geral, por todos que sabem subir e descer do bonde em movimento. Assim, faz sentido que o bonde tenha tombado para o lado direito: não porque pessoas "fizeram peso" ao saltar, mas, ao contrário, porque o peso foi aliviado predominantemente de um só lado do bonde.

É claro que tudo isso é especulação, e principalmente, é claro que nada disso explica as causas profundas do acidente, que devem ser buscadas na manutenção precária dos bondinhos e no descaso das autoridades em relação a esse transporte público que é dos mais charmosos do mundo.

"Ainda são análises preliminares, mas constatamos que os trilhos não apresentam marcas que indicam travamento da roda, apesar de o freio ter sido acionado", explicou o engenheiro e vice-presidente do Crea, Luiz Antônio Cosenza.

Já nas primeiras análises técnicas, a verdade começa a aparecer. Recomendo vivamente aos leitores uma visita atenta ao sítio da AMAST, para que não fiquem à mercê das manipulações forjadas pelos administradores da coisa pública e veiculadas pela grande imprensa.

P.S. IV:
Não custa esclarecer en passant porque o lado esquerdo do bonde é o franco favorito dos caroneiros e das pessoas que gostam de andar no estribo do bonde. Em primeiro lugar, o lado esquerdo, por ser o lado que dá para o meio da rua, é o único que permite as manobras da carona, sendo a principal delas descer na parte dianteira do bonde e subir novamente na parte traseira - tudo isso, de preferência, quando o bonde está em alta velocidade. Em segundo lugar, quem anda do lado esquerdo usa o pé direito, tanto para subir no bonde quanto para descer dele (o pé direito é o primeiro a tocar o chão). Por fim, se andar do lado esquerdo é um tanto perigoso por causa dos carros que vêm em sentido contrário, andar do lado direito talvez seja ainda mais perigoso, pois muitas vezes o bonde passa bem perto dos postes.

Talvez pareça estranha a alguns leitores a discussão desses detalhes num momento trágico e doloroso como este. Mas assim como eu não sou de rezar, também não sou de me deter em lamentações. Tiro da dor força e motivação para tentar entender e explicar as coisas, pois acredito na potência do entendimento. Insensíveis são os nossos políticos.

P.S. V:
Eis aqui uma imagem que retrata o estado de conservação dos bondinhos de Santa Teresa. Ela mostra o uso de um arame no lugar onde deveria haver um grande parafuso. É um detalhe que não explica diretamente a tragédia de sábado, mas que explicita como tem sido feita a manutenção dos bondes: sem recursos e material adequado, os mecânicos foram forçados a recorrer à gambiarra que se vê abaixo. Obviamente, são os responsáveis pela falta de verba que devem ser responsabilizados criminalmente pelo acontecido.


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