28.9.12

O ovo da serpente

Vale a pena examinar a decisão liminar do Juiz Gilson Delgado Miranda, de São Paulo, que proibiu (em território nacional) a veiculação do trailer do filme “Inocência dos Muçulmanos” no YouTube.

1. A divergência textual

O caso realmente envolve uma questão complexa e de difícil solução. Em verdade, traz um conflito claro em relação à liberdade de expressão (art. 5, IV, da CF) e à necessidade de proteção de indivíduos ou grupos humanos contra manifestações que possam induzir ou incitar a discriminação de preconceito de religião (art. 5º, VI, da CF).

Curiosamente, o inciso VI do artigo 5º do Juiz Gilson Delgado Miranda difere bastante daquele que está consagrado na Constituição. Vejamos o texto dos dois incisos citados tal como estabelecido na CF (Constituição Federal):

Art. 5º
(...)
IV -  é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;  
(...)
VI -  é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

2. A "emenda constitucional"

No que tange ao inciso IV existe uma mera divergência textual entre a liminar expedida pelo juiz Gilson Delgado Miranda e o texto da Constituição, uma vez que "livre manifestação do pensamento" e "liberdade de expressão" são locuções similares. Não é o que acontece, entretanto, quando examinamos os "dois incisos VI". Nesse caso, há uma divergência na forma e também no conteúdo. Em outras palavras, o inciso VI citado pelo Juiz Gilson Delgado Miranda é de sua própria lavra. 

Seria ela uma boa "emenda constitucional"? Em absoluto. A rigor, todas as críticas dirigidas às religiões podem ser entendidas como "manifestações que possam induzir ou incitar a discriminação de preconceito de religião" (suponho que "discriminação de preconceito" tenha sido um lapso do escrevente.) Na versão do juiz Gilson Delgado Miranda, as religiões como que recebem um status especial no seio da liberdade geral de expressão. 

Se o leitor ainda tem alguma dúvida a esse respeito, consulte o inciso IX, onde se lê que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Ora, em todos esses campos - intelectual, científico, artístico, de comunicação - há ferozes debates e discussões. A crítica é inseparável de todas essas atividades. E não existem as figuras jurídicas do "preconceito intelectual", do "preconceito artístico" ou do "preconceito científico" que amparem legalmente aqueles que militam nessas áreas. Se sou romancista e alguém me diz - por exemplo - que meus romances são cafonas, tudo o que eu posso fazer é defender minha obra, criticar a crítica. Não posso abrir um processo judicial e alegar que estou sendo vítima de "discriminação" ou de "preconceito artístico". 

Numa palavra, o inciso VI do quinto artigo da Constituição não protege de maneira especial as religiões. Ao contrário, a liberdade religiosa e de culto - tal como a "atividade intelectual, artística, científica e de comunicação" mencionada mais adiante, no inciso IX - não passa de um caso particular da "livre manifestação do pensamento", ou liberdade geral de expressão, mencionada no inciso IV. 

3. O direito à informação

Pouco depois das primeiras reações brutais ao trailer “Inocência dos Muçulmanos”, resolvi assistir ao filme, porém não passei dos dois primeiros minutos; foi o suficiente para constatar que se tratava de uma peça de propaganda pueril e mal realizada. Contudo, diante desse fato novo - a iminência de sua proibição -, me vi forçado a voltar ao YouTube para assistir novamente, desta vez na íntegra, ao trailer em questão. Experiência penosa, pois o filme é ainda pior do que os dois minutos iniciais permitiam entrever. No entanto, por mais que “Inocência dos Muçulmanos” seja grosseiramente ofensivo em relação ao islamismo, sua proibição é ainda mais ofensiva aos cidadãos brasileiros.

Por quê? Porque - por exclusiva responsabilidade dos próprios islamitas - o trailer em questão se tornou uma peça-chave para a compreensão de várias páginas da história recente, dentre as quais figura o assassinato de um embaixador norte-americano. A liminar do Juiz Gilson Delgado Miranda ampara a demanda de 35 mil islamitas brasileiros (cifra aproximada, dados do IBGE) em detrimento do direito de 190 milhões de brasileiros à informação.

4. Je vous salue, Marie

O que um trailer de mau gosto e baixa extração, típica peça publicitária, tem em comum com o genial Je vous salue, Marie? Absolutamente nada, a não ser o fato de que ambos foram proibidos no Brasil por razões religiosas. O filme de Jean-Luc Godard foi proibido em 1986 pelo então presidente da República José Sarney.

Crianças devem ser protegidas; mas adultos sabem defender-se por si mesmos. Não há nada que um adulto possa dizer que eu não possa escutar, se disposto estou a escutar. E não há nada que eu possa dizer que um adulto não possa escutar. O juiz Gilson Delgado Miranda esforçou-se, em sua liminar, para distinguir sua decisão de um mero ato de censura; censura ou não, o fato é que ele, em nome do suposto direito de alguns, está se interpondo entre um adulto que fala e outros adultos que escutam. E se adultos começarem a ser protegidos como se fossem crianças, em breve só haverá crianças no mundo; crianças que não podem ser contrariadas. A infantilização da sociedade não interessa a ninguém, e muito menos às nossas crianças.

Num país que se atreve a censurar até verbete de dicionário, tudo isso dá o que pensar.



Fontes:
Decisão liminar do Juiz Gilson Delgado Miranda
Constituição Federal 

2 Comentários:

Blogger Rafik Responde ao Isla disse...

Caro Sr.
Nao nego que o filme seja mal feito.
Porem NADA que o filme exibe possa ser considerado INVENÇÃO ou FALSIFICAÇÃO, pois esta tudo registrado nos anais da historia Islâmica.

O filme na verdade é um APELO para o mundo olhar para a causa dos Coptas que vem sofrendo por 1400 anos debaixo da discriminação Islâmica.

Este fato somente serve para olharmos para o filme com outros olhos.

O filme foi feito a UM ANO atras, e o mundo somente soube dele porque os proprios muçulmanos o usaram como um pretexto para EMPURRAR a agenda da Lei Anti Blasfemia na ONU.

Do contrario nnguem saberia da existencia deste filme. A quem devemos culpar? A eles mesmos!

Abraços e ate breve
Rafik


5 de outubro de 2012 às 04:21  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Caro Sr.,

Mesmo não sendo jurista, e muito menos constitucionalista, acredito ter flagrado (na liminar em questão) um grave erro de interpretação da Constituição Federal.

Meu texto tem somente um objetivo: defender a liberdade de expressão e o direito à informação.

Não sou cristão, nem judeu, nem muçulmano, nem budista (apesar de minhas simpatias), e também não sou praticante do candomblé. Lamento profundamente todos os crimes praticados em nome da religião, seja ela qual for, seja lá onde for.

Ora, essa interpretação equivocada da Constituição Federal foi, ela mesma, um crime, já que nos subtrai um direito garantido na própria Constituição; e um crime praticado em nome da religião, já que visa atender a uma demanda religiosa.

Mas eu gostaria de insistir ainda num ponto que me parece importante. Uma vez que nos coloquemos no ponto de vista da Cultura e do movimento da Cultura, não há nada de abstrato na defesa da liberdade de expressão. Ao contrário, é tudo muito concreto. Para produzir a mim mesmo, eu preciso dos outros homens, preciso ser capaz de ouvir o que eles dizem. Em outras palavras, a liberdade de expressão é uma condição de possibilidade para o movimento da Cultura, tal como eu a entendo.

Muitos pensam na liberdade de expressão como um puro "direito de falar". Não, não é apenas isso. Ela é também um direito de ouvir. E sempre que nos negam o direito de ouvir alguém, o (nosso) mundo amesquinha-se, torna-se menor.

Espero ter esclarecido um pouco melhor as razões do texto acima.

Um abraço,
Francisco

5 de outubro de 2012 às 13:22  

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