8.5.14

A comédia das biografias não autorizadas

1. A notícia

O plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (6) o Projeto de Lei 393/11, do deputado Newton Lima (PT-SP), que permite a publicação de biografias de personalidades públicas sem necessidade de autorização do biografado ou de seus descendentes. (Fonte: Câmara Notícias; grifo meu.)

2. O texto da lei (artigo 20 da Lei n° 10.406)

§ 2° A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade. (Fonte: PL 393/11; grifo meu.)

3. A surpresa

Mas esperem um momento: existirá alguma pessoa cuja trajetória não tenha dimensão pública, ou que não esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade? Se os lixeiros que limpam meu bairro pararem de trabalhar, haverá acúmulo de lixo nas calçadas e, consequentemente, proliferação de bactérias, insetos e ratos; depois virão as doenças e, no limite, epidemias. Prevenir doenças e epidemias não seria uma atividade de "interesse da comunidade"? Acaso faltaria "dimensão pública" à trajetória profissional dos lixeiros?

4. O (falso) problema

Suponhamos que alguém produza a biografia de um gari e que os parentes deste, possivelmente orientados por um advogado ganancioso, resolvam entrar na justiça contra a obra. Pouco importam os hipotéticos argumentos do hipotético advogado; que o leitor, se lhe apraz, realize por si mesmo esse mórbido exercício de imaginação. Que fará o juiz diante de tal caso? Com que peso ele avaliará se a vida de um cidadão efetivamente goza de "dimensão pública" ou está inserida "em acontecimentos de interesse da coletividade"? Que critérios ele utilizará? O senso comum, os jornais, a TV, a Internet, o Ibope? Será justo pedir a um juiz que forneça uma solução para um falso problema? Não seria mais sensato poupá-lo de tão ingrata tarefa e, sobretudo, poupar a sobrecarregada justiça brasileira desse tipo de processo?

5. A objeção

"Ninguém que não sofra de sérias deficiências cognitivas há de negar que o trabalho de um lixeiro é importante e até mesmo vital. Mas você parece ter esquecido um detalhe: ninguém faria a biografia de um gari."

6. A resposta à objeção

Não? Então você não assistiu ao filme Estamira, que retratou a vida de uma catadora de lixo de Gramacho, no Rio de Janeiro. Esta mulher negra, pobre e esquizofrênica, que como tantas outras foi vítima de violência sexual na juventude, fazia um esforço gigantesco para pensar. E como o espírito é aquilo que de pouco tira muito e de nada tira alguma coisa, Estamira pensava, afetando de algum modo a vida das pessoas que a conheciam; e passou a afetar muitas outras vidas ao participar do documentário de Marcos Prado. E agora? Estaria "liberada" a biografia de Estamira? Ou não? Estaria liberada depois do filme, mas não antes? E quanto ao próprio filme, que aborda a vida de Estamira? Estaria liberado?

7. O (verdadeiro) problema

Mas, afinal, por que o deputado Newton Lima introduziu no texto da lei essa distinção entre pessoas com "dimensão pública" e pessoas "desconhecidas" ou (as palavras são dele) "ditas comuns"? Existem ao menos duas respostas a essa pergunta. A segunda resposta, a meu ver a mais importante, depende de uma análise do texto do deputado, e será dada na próxima postagem. A primeira resposta é a mais óbvia. Newton Lima, que certamente não leu o texto A privacidade e as biografias não autorizadas, acredita que as biografias de algum modo ferem a privacidade dos biografados, tese que é absolutamente falsa. Por isso, ou seja, por não ter compreendido o que estava em jogo nesse debate, ele teve de traçar uma distinção arbitrária para resolver o problema.

Só que essa distinção, além de ser intrinsecamente nociva, não resolve o problema. Ela apenas o empurra para a frente, ou seja, joga-o no colo do poder judiciário, que tem problemas mais importantes para resolver. Pois não se trata apenas da necessidade de definir quem é "importante" ou "publicamente relevante" e quem não é. A vida de todas as pessoas que o deputado define como possuindo "dimensão pública" está cercada de outras vidas que, supostamente, não possuiriam essa dimensão. Essa simples brecha dará ensejo a todo tipo de querelas jurídicas na medida em que essas pessoas "dos bastidores" sejam mencionadas nas biografias dos famosos. E quando esses casos surgirem, os juízes terão de decidir se é ou não justificável mencionar os acontecimentos em que a vida daquele "anônimo" se misturava com a vida da "celebridade". Mais querelas inúteis e improdutivas: um juiz decidirá que a professora primária pode ser citada, mas não a prima que o cidadão engravidou... E depois o juiz de segunda instância decidirá outra coisa...

Caso queira preparar-se para a próxima postagem, o leitor poderá ler na íntegra a  PL 393/11. São apenas três páginas.



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