20.5.14

liberdade de expressão e discursos de ódio


Se depender de mim, este será o último texto em que perderei meu tempo comentando "atualidades". O Brasil é o país da piada pronta; por causa disso, ao comentar uma notícia qualquer, eu acabo me colocando na incômoda (e um tanto ridícula) situação de alguém que, ao invés de gargalhar ao ouvir uma piada, leva-a mortalmente a sério.

Há alguns dias o juiz federal Eugênio Rosa de Araújo, ao rejeitar o pedido de retirada de vídeos ofensivos no YouTube, "decidiu" que o candomblé e a umbanda não são religiões. A piada é tão flagrante que nem merece um comentário.

A esse respeito, Hélio Schwartsman nos brindou hoje com mais uma de suas pérolas. O texto chama-se "O candomblé e o tinhoso". Hélio reconhece que o argumento do juiz é falho. No entanto, para ele, a decisão do juiz – embora mal fundamentada – é válida. Vejamos o parágrafo que resume sua posição:
Ao contrário do Ministério Público, não penso que religiões devam ser imunes à crítica. Se algum evangélico julga que o candomblé está associado ao diabo, deve ter a liberdade de dizê-lo. Religiões, como qualquer outra instituição ou pessoa, poderiam reclamar proteção contra inverdades factuais. O problema aqui é que a teologia trafega num reino da fantasia sem muito conteúdo empírico, o que torna difícil decidir o que corresponde ou não a fatos. Como não podemos nem sequer estabelecer se Deus e o demônio existem, o mais lógico é que prevaleça a liberdade de dizer qualquer coisa.
Estou um tanto cansado e irei direto ao ponto. Bacharel em Filosofia, Hélio parece acreditar que a única função da linguagem é a produção de verdade. Como ele se limita a considerar as verdades (e inverdades) factuais, farei o mesmo. O que seria uma verdade factual? Se, diante de um cavalo, eu enunciar a proposição "o cavalo é branco", essa proposição poderá ser verificada (ou invalidada) por outros observadores. Desse modo, a verdade factual se caracteriza por ser verificável. Mas se eu disser "o unicórnio é branco", estarei produzindo um enunciado a respeito de um ser imaginário; assim, uma vez que terei dificuldades para apresentar um unicórnio como um "conteúdo empírico", ou seja, como um conteúdo dado na experiência, esse enunciado é inverificável. Logo, conclui Hélio, deverá prevalecer, nesses casos, a liberdade de "dizer qualquer coisa".

O problema é que a linguagem, tantas e tantas vezes alheia aos jogos filosóficos e científicos, não se esgota na referida função de produção de verdade. Ela possui também uma função pragmática. Quando um evangélico "julga que o candomblé está associado ao diabo", ele está, ao mesmo tempo, afirmando que os fiéis do candomblé encarnam justamente o supremo inimigo a ser combatido e vencido pelos cristãos. É pueril dizer que, do ponto de vista da produção da verdade, seria impossível tomar partido. Pois, do ponto de vista pragmático, é evidente que o discurso dos pastores evangélicos produz, nas massas evangélicas, um efeito de sentido que faz dos fiéis das religiões africanas a própria encarnação do mal. Ora, esse é, ou deveria ser, o limite mais evidente da liberdade de expressão: a livre propagação de discursos de ódio.

É óbvio que as religiões não devem ser imunes à crítica. Nada deve ser imune à critica. Mas, precisamente, um discurso de ódio não é uma "crítica", e uma crítica não é um discurso de ódio. E esses dois discursos são bem fáceis de distinguir. Quem critica procura fundamentar seu discurso. Por exemplo, se alguém disser que o cristianismo é uma religião do ressentimento e da má consciência, ou que o islamismo é um projeto de poder absoluto, terá de fundamentar suas afirmações com argumentos. Foi o que fez, ainda que de forma infeliz, o juiz federal: mal ou bem, ele fundamentou sua decisão. Mas se alguém disser que o último cristão deve ser enforcado nas tripas do último islâmico, estará produzindo um discurso de ódio. E é difícil imaginar o que seria pior: proibir o primeiro gênero de discurso ou permitir o segundo. Pois, nos dois casos, a liberdade de expressão será a primeira vítima. E, com ela, todo o resto irá desmoronar.

Assim como a liberdade não é "liberdade de fazer qualquer coisa", a liberdade de expressão não é "liberdade de dizer qualquer coisa". E nós já estamos abusando do direito de falar bobagem.

Eu gostaria de rir de tudo isso, mas não consigo.


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