10.5.14

Universidade pública e gratuita

Em recente coluna na Folha, Hélio Schwartsman explica que se tornou um defensor do fim da gratuidade do ensino público superior por causa de um argumento "decisivo":

"O argumento decisivo para eu ter mudado de posição é o do impacto financeiro que a conclusão de um  curso universitário propicia. Embora a formação do médico ou de qualquer outro profissional seja um  investimento público (interessa à sociedade tê-los), é grande a apropriação privada que ocorre devido à  graduação. Um médico, afinal, ganha facilmente 15 vezes mais do que uma pessoa sem estudo superior.  Simplesmente não faz sentido querer que o último subsidie o primeiro."

"Simplesmente não faz sentido". Ou seja, um aluno de medicina passa seis anos estudando para concluir o curso, depois leva de dois a cinco anos fazendo residência médica para tornar-se um especialista, e depois se torna apto para curar doenças e, no limite, salvar vidas. Mas nós, contribuintes, devemos pensar que simplesmente não faz sentido destinar uma pequena parte de nossos impostos para dar a uma pessoa pobre a oportunidade de seguir a carreira médica. E por quê? Porque esse profissional irá ganhar bem mais do que nós. Que ele tenha renunciado a tantas coisas para estudar e seguir estudando (por toda a vida, se for um bom profissional) não conta. Que ele esteja apto a simplesmente salvar nossas vidas numa eventualidade qualquer também não conta. O que realmente importa (o decisivo) é que ele, vejam só, terá estudado às nossas custas e, por fim, ganhará mais dinheiro do que nós.

Não é difícil perceber o que se oculta nesse arremedo de pensamento que valoriza, acima de tudo, o aspecto puramente econômico das coisas: o ressentimento. E eu me arriscaria a dizer que todo homem que raciocine em termos puramente econômicos, seja ele liberal ou socialista, é movido pelo ressentimento. É por isso que eu sinto calafrios quando vejo um liberal defender o fim da gratuidade no ensino público, mas também quando vejo um socialista defender a estatização da economia.

* * *

Os filósofos são os médicos da civilização. Mas como eles são (geralmente) modestos, e como a civilização não parece estar preocupada em curar-se, filósofos (geralmente) não ganham muito dinheiro. No entanto, talvez pelo fato mesmo de serem filósofos, eles não se ressentem com isso. Mas deixemos de lado esses seres que praticamente não despertam o interesse de ninguém. Falemos dos professores do ensino fundamental. Falemos de um fato ocorrido há menos de quinze dias num colégio público da zona sul do Rio de Janeiro.

Aconteceu numa aula de educação artística para a oitava série. Técnica: pintura a guache. A professora dá uma bronca num menino porque ele não estava "segurando direito" o pincel. Deve-se segurar um pincel, explicou ela, tal como se segura uma caneta.

Só que isso não é verdade. Um pintor só segura um pincel "como uma caneta" no momento de traçar os detalhes mais delicados de um quadro. E sequer existe uma maneira "correta" de segurar um pincel. Pode-se, por exemplo, segurá-lo como quem aponta uma faca para alguém; mas também é possível segurá-lo de várias outras maneiras. E há razões anatômicas, relativas à liberdade do gesto, para que seja assim. Depende do traço, da figura; por exemplo, como segurar o pincel para pintar uma elipse? É um problema que cada pintor deverá resolver por sua conta; não existem regras definitivas. Assim, o garoto, talvez por pura intuição, segurou o pincel como um pintor o faria. Mas sua professora, que obviamente nunca pintou na vida, imediatamente "ensinou-lhe" a maneira "correta" e lhe deu o beijo da morte.

* * *

Como se vê, nem sempre nossos professores primam pela excelência. Talvez se possa dizer o mesmo de nossos médicos e de tantos outros profissionais. Mas uma coisa é certa: a cobrança de mensalidades no ensino público superior seria um desastre completo. A procura dos cursos de licenciatura é cada vez menor. Além da baixa remuneração, os professores enfrentam a ausência de prestígio social, e há uma falta crônica de professores no país que só tende a acentuar-se. A meu ver, entre tantos outros, esse é um dos indícios mais seguros de que o Brasil está caminhando para a barbárie.

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