8.7.14

Neymar, Zúñiga, o joelhaço e as ambigüidades da linguagem

Fiquei sabendo que Zúñiga está sendo alvo de ataques rancorosos por parte de brasileiros indignados com o joelhaço que tirou Neymar da Copa. Os ataques incluem ofensas racistas e alguns deles envolvem até mesmo sua filha, que é apenas uma criança. É claro que eu, como brasileiro e principalmente como homem, sinto uma profunda vergonha diante de tudo isso. Zúñiga deveria ter sido punido pela FIFA, e severamente, pela entrada maldosa que colocou em risco a carreira e a integridade física de Neymar. Mas se os brasileiros têm todo o direito de insultá-lo, deveriam, ao mesmo tempo, ter o cuidado de não ultrapassar determinados limites. Até mesmo o xingamento é uma arte.

Mas não é sobre isso que quero falar. Ontem a Folha de São Paulo publicou um texto do jornalista argentino Mariano Olsen, que está radicado em Bogotá há dez anos. Como veremos, trata-se de um texto que ofende de variadas maneiras a inteligência do leitor. Primeiramente, ao afirmar que
"as imagens de televisão não deixam dúvidas da intenção do defensor da Colômbia quando seu joelho bateu (sic) nas costas do craque brasileiro: disputar a bola num momento chave do jogo."
Ora, o que as imagens mostram é precisamente o contrário. De acordo com as leis da física, nesse ponto confirmadas, aliás, pelo mais rasteiro senso comum, é impossível usar o joelho para atravessar o corpo de um homem de modo a atingir uma bola que está se movimentando do outro lado desse corpo. A não ser, claro, que esse joelho se movesse com a velocidade de um carro de corrida ou de um avião. Assim, é forçoso admitir que Zúñiga, sabendo muito bem que não conseguiria atravessar o corpo do jogador brasileiro para alcançar a bola, quis atingir as costas de Neymar. Até que ponto ele teve a intenção de machucá-lo, ou mesmo lesioná-lo, é algo que apenas o próprio Zúñiga sabe. Tudo o que podemos afirmar com segurança é que Zúñiga atingiu Neymar pelas costas (ou seja, sem chance de defesa) e deliberadamente. Inversamente, também é possível afirmar, com a mesma segurança, que seu joelho não "bateu" casualmente nas costas do brasileiro numa "disputa de bola".

Depois de afirmar uma distorcida versão dos fatos contestada não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, o bravo Sr. Olsen passa ao ataque e, logo na seqüência do texto acima, afirma que
"Pensar que Zúñiga machucou Neymar de maneira fria e calculista é mostrar um nanismo mental preocupante."
Pois bem: dizer que Zúñiga não quis machucar o craque de "maneira fria e calculista" equivale a dizer que ele não teve a intenção premeditada de quebrar uma das vértebras de Neymar? Ou equivale a dizer que ele não teve a intenção deliberada de enfiar-lhe o joelho nas costas usando todo o peso de seu corpo? O texto não deixa isso claro, e o faz de propósito. O que o jornalista deseja é que passemos insensivelmente da primeira hipótese, que é plausível, para a segunda, que é absurda. Eu mesmo me recuso a acreditar que o jogador colombiano seja um psicopata capaz de tentar deixar um adversário paraplégico durante um simples jogo de futebol, por mais importante que este seja. No entanto, também me recuso a acreditar que alguém imagine que possa usar todo o peso de seu corpo (72 kg) para dar uma joelhada nas costas de uma pessoa bem mais leve (64 kg) sem lhe causar dano algum. O truque verbal do jornalista argentino é muito claro: ao negar que Zúñiga tenha cometido um crime premeditado, ele pretende negar que o defensor tenha cometido um crime doloso.

Não satisfeito com a distorção de fatos que foram gravados em vídeo e que permanecem à vista de todos, o Sr. Olsen ofenderá nossa inteligência mais uma vez, e de maneira ainda mais grave. O jornalista afirmou que Zúñiga "joga limpo" e sempre teve uma "conduta irrepreensível" ao longo dos 14 anos de sua carreira, e que, portanto, não poderia ter tido a intenção de machucar Neymar. Como eu já disse, apenas Zúñiga sabe o que ele queria ao aplicar o joelhaço. Ninguém além dele o sabe, e isso inclui o Sr. Olsen, que mui provavelmente não compartilha telepaticamente os pensamentos e as intenções do jogador. Mas esse ainda não é o ponto essencial. Se eu fosse acusado de assassinato e meu advogado declarasse que eu não poderia ter cometido o crime porque sou um cidadão pacato que jamais matou alguém anteriormente, eu o dispensaria imediatamente. Esse argumento não ofende apenas o leitor, mas a própria lógica. Se para cometer um crime fosse necessário ter uma vida criminosa pregressa, não existiriam réus primários. Aliás, nem mesmo haveria crimes, polícia, tribunais. Viveríamos no Éden.

Entretanto, tudo (ou quase tudo) tem sua primeira vez, não é mesmo, Sr. Olsen? E até mesmo uma segunda, se considerarmos criminosa a sola de Zúñiga no joelho de Hulk. Em resumo, não é o comportamento anterior do colombiano que está em questão, mas esta sua ação singular: o joelhaço.

Deixei intencionalmente para depois a análise das primeiras linhas do texto. Vamos a elas. Obviamente, como diz o jornalista, Zúñiga não é um "criminoso de guerra" ou um "assassino em série". Só que isso é um truísmo, já que ninguém (no planeta Terra inteiro) o acusou desses crimes. Inflar artificialmente as acusações numa tentativa de promover a sensação de que o acusado é inocente – já que ele é, efetivamente, inocente de tais acusações – é um truque retórico barato que só engana crianças; crianças pequenas, bem entendido.

Até aqui, o texto do Sr. Mariano Olsen não apenas nos deu uma informação falsa (o próprio Zúñiga declarou ter 12, e não 14 anos de carreira.) Ele também nos brindou com uma interpretação dos fatos cinicamente equivocada, uma falácia e uns tantos truques retóricos. No entanto, se analisarmos as coisas do ponto de vista ético, elas tomarão um aspecto ainda pior:
Os meios de comunicação na Colômbia começaram uma campanha para apoiar seu filho neste momento preocupante emocionalmente.
Ninguém gosta de ser insultado e ameaçado de morte. No entanto, me parece difícil que Zúñiga, depois do ocorrido, escolha justamente o Brasil para passar suas férias. Ele trabalha na Itália e continuará a viver tranqüilamente sua vida. Neymar, por outro lado, teve uma vértebra quebrada aos ser lesionado pelas costas e foi privado de jogar uma semifinal (e possivelmente uma final) de Copa do Mundo em seu próprio país. Não há termo de comparação. Zúñiga foi vítima de agressões verbais e de ameaças que jamais irão se consumar. Neymar foi vítima de uma agressão física grave e perdeu (para sempre) os dois jogos mais importantes de sua vida. Num quadro como esse, retratar Zúñiga como vítima é praticar o mais descarado cinismo. E por falar em cinismo, o jogador colombiano, em carta dirigida a Neymar, recusou-se até mesmo a admitir que sua ação foi imprudente:
"Siento pesar por esta situación que resulta de una acción normal de juego, la cual no tuvo mala intención, maldad o imprudencia de mi parte".
O que dizer de um jogador que se declara absolutamente inocente depois de quebrar um osso de um atleta de alto nível? Depois dessa demonstração de cinismo (que beira a psicopatia) diretamente dirigida à sua vítima, quem seria ainda capaz de defendê-lo?

O Sr. Olsen é capaz. É impossível deixar de concluir que, ao acusar os outros de "nanismo mental", tudo o que alguém com sua estatura intelectual e ética pode obter é expor-se ao ridículo. Se as redes sociais de fato são, como ele afirma, "redes de esgoto", só alguém muito ingênuo ou despreparado é incapaz de perceber que o jornalismo em geral, com honrosas exceções, também é uma rede de esgoto. E nessa rede, o Sr. Olsen, cujo texto não passa de um exercício retórico que tenta mudar a opinião dos leitores por meio de apelos emocionais, parece sentir-se bem à vontade.

Preparei uma surpresa para o leitor que teve a paciência de acompanhar-me até aqui. Por uma dessas casualidades do destino, a tradução do texto do jornalista argentino guarda uma pérola com a qual irei encerrar este texto. Não se trata propriamente de um erro, longe disso.
"Zúñiga é o inimigo do povo brasileiro, é um criminoso de guerra, um assassino em série, o jogador mais mal intencionado da história do futebol mundial?

Nada disso. Zúñiga é o infeliz responsável por Neymar não poder competir na semifinal da Copa do Mundo do Brasil contra a Alemanha."
O grifo é meu. A despeito de tudo, Mariano Olsen, ao declarar que Zúñiga foi "responsável" pela jogada, está sendo mais severo com Zúñiga do que este foi capaz de sê-lo em relação a si mesmo. Para Zúñiga, Zúñiga nada fez a não ser realizar o seu trabalho. Mas o Sr. Olsen não poderia declará-lo responsável sem tentar atenuar de algum modo sua responsabilidade. Por isso usou a palavra "infeliz".

No dicionário da Real Academia Española, infeliz consta apenas como adjetivo: 1. De suerte adversa, no feliz. 2. (Coloquial) Bondadoso, apocado. ("Apocado" significa "apequenado", "humilde", "simplório"). Já no Gran Diccionario de la lengua española, a palavra consta como adjetivo e também como substantivo. Os significados da palavra são os mesmos: 1. No feliz. 2. (Coloquial) Que es ingenuo, bueno o no tiene picardía. ("Picardía" significa "astúcia", "malícia".) Neste segundo sentido, "infeliz" se opõe a "pérfido".

Há que reconhecer que o Sr. Olsen pinçou cuidadosamente a palavra "infeliz". Ao menos em espanhol, se Zúñiga é o "infeliz responsável", é porque, por infelicidade (ou seja, por azar e/ou sem malícia) ele acabou sendo, pobrecito, responsável pelo que aconteceu a Neymar.

Tal como em português, também em espanhol o sentido da oração muda inteiramente segundo lemos o "infeliz" como substantivo ou como adjetivo. Só que em espanhol todos os sentidos são favoráveis: ora Zúñiga é um "azarado", ora ele é alguém que agiu "sem malícia".

No entanto, para a... infelicidade do Sr. Olsen, a palavra "infeliz" possui, na língua portuguesa, alguns matizes adicionais. Lendo a palavra "infeliz" como substantivo, e contando com o auxílio precioso do Houaiss, podemos extrair dela uma pequena coleção de insultos lapidados como rubis. Afinal, se mesmo o xingamento é uma arte, não há razão para usar vulgares impropérios de arquibancada.

Infeliz. Desgraçado, fracassado, miserável. Aquele cuja presença não é desejada, bem-vinda.

* * *

Neymar e Zúñiga trocaram algumas palavras segundos antes do joelhaço. Não parecia ser uma conversa inamistosa. Depois Neymar olhou várias vezes para trás, como se estivesse preocupado com o colombiano. Eu adoraria saber o que foi dito pelos dois.

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