30.9.14

A ineficácia do não


1. Not rubbish

Já discuti esse assunto em 2007, quando 452 fotos originais dos Beatles, algumas delas insubstituíveis, foram destruídas. Um funcionário que trabalhava no escritório da EMI em Londres armazenou as fotos em três caixas, que seriam posteriormente arquivadas, e escreveu nas caixas not rubbish - do not remove (não é lixo - não remova). Diante daquela cena, o encarregado da limpeza, ao chegar em seu posto de trabalho bem cedo pela manhã, não pensou duas vezes: atirou as caixas a um compactador de lixo.



Podemos nos sentir no direito de recriminar um empregado terceirizado da limpeza por destruir, em minutos, um patrimônio avaliado em 700.000 libras? Não creio. Ainda que alguma dúvida pudesse ter-lhe ocorrido, ousaria ele esperar a chegada de um funcionário da EMI para questionar a ordem recebida, correndo o risco de ouvir deste, num perfeito sotaque britânico, o clássico "você é pago para limpar e não para pensar"?

– Mas ele errou! A mensagem dizia "não é lixo" e ele jogou tudo no lixo!

De acordo. Mas se ele errou, errou muito mais o chefe da seção de fotografias do escritório, que atende pelo nome de John Mouzouros, ao escrever a palavra "lixo" nas três caixas com valiosos negativos e transparências dos rapazes de Liverpool.

pegaram a idéia? Ainda não? Vamos a outro exemplo.

2. Diga não às drogas 

De que um viciado precisa para largar sua dependência? De maneira geral, pode-se dizer que ele precisa de qualquer coisa que o ocupe e o faça esquecer a droga. Esporte, literatura, xadrez, filosofia, música, informática, física quântica, o cultivo de uma horta, qualquer coisa serve. Até uma outra droga (contextualizada comunitariamente) poderá ajudá-lo. Cada caso é um caso.

A única coisa de que ele não precisa é que lhe fiquem lembrando incessantemente que a droga existe. Afinal, quando ele escuta ou lê a palavra "droga", ele não irá pensar num "grande gênero que subsume as diferentes espécies" de drogas. Não. Ele provavelmente irá imaginar sua droga de predileção, aquela que o conforta durante suas horas de deserto.

Se pensarmos nos adolescentes e pré-adolescentes, a coisa ganha contornos ainda piores. O "diga não às drogas" talvez funcione com crianças, às quais também dizemos "não enfie o dedo na tomada" e assim por diante. Digo "talvez" porque apenas crianças em situação de risco estão expostas às drogas; as demais (supostamente) não sabem o que é isso, e se lhes disséssemos "Diga não à eletricidade eletrostática", o efeito (de indiferença) seria similar. Mas o mesmo já não se aplica aos adolescentes e pré-adolescentes. A um só tempo eles irão entrar em contato com a idéia de algo (ainda) desconhecido e com uma proibição que, em virtude das idiossincrasias de sua faixa etária, eles estarão loucos para transgredir assim que puderem.

3. A ineficácia do "não"

Creio que o leitor já percebeu o liame que existe entre o caso das fotos dos Beatles e a palavra de ordem contra as drogas. Em ambos, existe uma única idéia positiva: lixo, drogas. Em ambos, há um "não" que se acrescenta à idéia positiva. E, por fim, em ambos o "não" é perfeitamente inútil. A idéia de "lixo" se impõe como pura positividade ao lixeiro do mesmo modo que a idéia de "droga" se impõe para o drogado (ou atiça a curiosidade de quem não sabe o que é drogar-se.)

Por isso as fotos foram parar no lixo, e por isso a campanha "diga não às drogas" é contraproducente. 

Notem que a questão, aqui, não é a de saber se o "não" é necessário (para a educação, para o bom funcionamento de um campo social, etc.) e muito menos a de saber se o "não" é repressor. Tais questões eu deixarei de bom grado para os meus coleguinhas de pedagogia, psicologia e ciências sociais. Estamos aqui em outro terreno, o da filosofia, e o problema é inteiramente diferente.

"Não" não é uma idéia, e sim um suposto ato de vontade que nega uma idéia. Só que essa contraposição entre uma idéia e uma vontade é puramente ficcional. Apenas uma idéia pode negar outra idéia. Se o nosso amigo da EMI não queria  que o lixeiro enxergasse as caixas de fotos como lixo, a última coisa que deveria ter escrito sobre elas era a palavra "lixo". Ele teria de optar diretamente por uma idéia positiva como, por exemplo, "documentos importantes". Do mesmo modo, se queremos que as pessoas estudem, trabalhem, pratiquem esportes e assim por diante, precisamos incentivá-las a fazer essas coisas. Dizer-lhes que "digam não às drogas" erra o alvo inteiramente e, ainda por cima, é contraproducente. Esse tipo de campanha acaba funcionando como uma propaganda daquilo que supostamente pretende negar.

Se o leitor quiser se aprofundar um pouco mais nessa relação entre Idéia e Vontade, leia o capítulo IV (Teoria de Spinoza) do livro "Do Erro", de Victor Brochard, traduzido por Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Jean-Marie Breton. E se quiser apenas dar uma espiada, leia a página 87.

4. Epílogo eleitorial
A insistência de Marina em desmentir boatos de que acabaria com alguns desses programas [de assistência social] parece mais comunicar a tese do que de fato anulá-la. (Folha de SP)
Que tal, caro leitor? Diante de tudo o que foi dito até aqui, o raciocínio acima parece-lhe familiar?

Se Marina Silva ainda pretende chegar à presidência, não lhe basta "negar" as mentiras petistas. Como nos exemplos anteriores, a frase "Não vou acabar com o Bolsa Família" acaba sendo contraproducente: e essa é precisamente a armadilha petista. Se negar, o bicho pega; se calar, o bicho come.

Como sair do dilema? Eu só vejo um meio. Nesta eleição convencionou-se chamar "calúnia" de "desconstrução". Mas "desconstruir" é outra coisa, e a única maneira de virar o jogo seria praticar uma autêntica desconstrução. Chegando ao segundo turno, Marina teria de desconstruir o petismo em linguagem bem simples. Ela teria de explicar aos beneficiários do Bolsa Família por que o petismo mente tão descaradamente: porque quer usá-los como massa de manobra para perpetuar-se no poder. Esses eleitores teriam de perceber que o petismo os beneficiou, sim, mas em causa própria.

Se Marina não fizer um movimento como esse, não ganhará a eleição. Não lhe bastaria conquistar mais alguns eleitores de classe média. Ela tem de romper o cabresto e cortar fundo na carne do petismo, ou seja, conseguir votos daqueles que dependem do assistencialismo.

E ela é a única candidata capaz de fazer isso. Aécio não sabe falar simples, e se sabe, talvez tenha vergonha de fazê-lo diante de seus próprios eleitores. Por outro lado, se Marina desconstruir radicalmente a estratégia do PT diante de toda a nação, conseguirá, de quebra, mais alguns votos dos eleitores de Aécio.

Resta saber se Marina teria coragem de opor-se tão frontalmente ao petismo. Seria uma oportunidade de ouro de fazer um pouco da tão propalada "nova política": mostrar, da maneira mais singela possível, que o rei está escandalosamente nu. Seria, além de tudo, pedagógico. E o único prejudicado seria o próprio rei.

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