8.4.15

As bijuterias envenenadas (parte 4)


ADENDO

Esta série estava prevista para apenas três postagens, mas o fato é que eu acabei deixando de assinalar, na terceira parte, um ponto adicional que considero relevante.

Como vimos anteriormente, a Anvisa afirma que:
"A população do Brasil e também a de todo o mundo convive com o cádmio, que está naturalmente presente em jazidas na natureza e na queima dos combustíveis fósseis (...) A presença do cádmio nestas bijuterias, associada ao cádmio já existente de forma natural no ambiente, amplia a possibilidade de risco à saúde".
A presença de cádmio no ambiente por intermédio da queima de combustíveis fósseis (que é uma atividade eminentemente humana) foi enfaticamente caracterizada pela Anvisa como natural. Mas não é esse ponto, embora controverso, que me interessa. O ponto que me interessa é precisamente aquele que ninguém ousaria colocar em discussão, ou seja, aquele que está (ou parece estar) bem fundamentado de um ponto de vista estritamente lógico.

Esse ponto "indiscutível" é formulado pela Anvisa quando esta afirma que "a população do Brasil... convive com o cádmio, que está naturalmente presente em jazidas na natureza". Ora, é evidente que o cádmio presente em jazidas pode (e deve) ser considerado como "já existente de forma natural no ambiente". E esse seria um dos fatores de risco que, de acordo com a Anvisa, seria "ampliado" pela presença de cádmio nas bijuterias chinesas.

O problema é que as reservas de cádmio brasileiras são ínfimas. De acordo com o relatório oficial mais recente (Anuário Mineral Brasileiro de 2010) do Departamento Nacional de Produção Mineral (17), elas não passam de 610 toneladas:


Ainda de acordo com o Anuário Mineral Brasileiro de 2010, a exportação de cádmio no Brasil no ano de 2009 foi igual a zero (Tabela 1.6.5), a produção bruta de cádmio foi igual a zero (Tabela 1.2.1), e a importação total de cádmio (incluindo bens primários, semimanufaturados, manufaturados e compostos químicos), no mesmo ano, totalizou apenas 531 toneladas (Tabela 1.6.6).

Porém há mais. Não apenas as reservas de cádmio brasileiras são ínfimas, mas elas estão localizadas exclusivamente num único lugar: o município de Paracatu, em Minas Gerais (Tabela 3.1.1).

Se alguém chegou a achar que as conclusões que tirei na terceira parte desta série foram "duras demais" com a Anvisa, é hora de reconsiderar. Elas foram até brandas demais. Relembremos o texto já citado:
"A população do Brasil e também a de todo o mundo convive com o cádmio, que está naturalmente presente em jazidas na natureza e na queima dos combustíveis fósseis".
Pois bem: existe apenas uma jazida de cádmio no Brasil, e não me parece que essa única jazida num município mineiro que faz divisa com Goiás ofereça maiores riscos para a totalidade da "população do Brasil". Não há outra conclusão possível: os riscos "naturais" oferecidos pelo cádmio "nativo" foram maximizados justamente para que os riscos do cádmio importado nas bijuterias chinesas fossem minimizados.

Façamos algumas contas. A única jazida de cádmio brasileira possui uma reserva indicada de 610 toneladas. No ano de 2009, o Brasil importou um total de 531 toneladas de cádmio, ao passo que, entre 2009 e 2013, importamos da China 29.000 toneladas de bijuterias. Como essas bijuterias podem (de acordo com os testes realizados) conter entre 32,6 e 39,2% de cádmio, teremos importado, nesses 5 anos, algo entre 9.454 e  11.368 toneladas de cádmio que, depois de terem passado pela pele (e boca) de crianças e adolescentes, irão para o lixo comum sem nenhuma espécie de cuidado especial.

Vejamos esses números numa tabela (médias estimadas):

Como se pode ver, a quantidade de cádmio importada em bijuterias corresponde, numa média anual estimada, a uma quantidade 3,56 maior do que a quantidade de cádmio importada oficialmente; ou, na pior das hipóteses, a uma quantidade 4,28 vezes maior.

Em resumo, a Anvisa menciona nossas "jazidas" (que na verdade são uma só, e muito modesta) e a "queima de combustíveis fósseis" (que na verdade ocorre no mundo inteiro) como fatores que deveriam nos tranqüilizar quanto à entrada das bijuterias chinesas em nosso país. É uma falácia monumental: não é porque eu já corro um determinado risco que devo tomar à ligeira riscos adicionais; por exemplo, o fato de alguém beber não lhe dá uma desculpa para começar a fumar.

Mas porque os efeitos de um metal pesado como o cádmio no organismo são cumulativos, a falácia fica ainda pior. Se eu já corro algum risco por causa do cádmio "nativo", tanto mais importante se torna evitar qualquer contato adicional com a substância.

Ou seja, não há o que refletir. Ao constatar a chegada de uma carga de 16 toneladas de bijuterias cheias de cádmio (ou seja, de lixo tóxico), a única decisão sensata seria fazer um recall da mercadoria (ou seja, mandá-la de volta aos seus fabricantes na China) e proibir imediatamente a chegada de qualquer carga semelhante. Assim agiria qualquer órgão de fiscalização preocupado com a saúde dos cidadãos e com a saúde ambiental do país. Em vez disso, a Anvisa disse que não havia "risco iminente e nem agudo"...

Caro leitor: no dia em que um governo der mais importância à ideologia, ou às relações comerciais com este ou aquele país, do que ao desenvolvimento cerebral de seu filho ou aos riscos que você corre de ter um câncer, esteja certo de que você está sendo governado por criminosos. É simples assim.


FONTES

(17) Anuário Mineral Brasileiro 2010 (Departamento Nacional de Produção Mineral / Ministério das Minas e Energia)


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