23.9.15

O Estado contra a sociedade

As sociedades primitivas, de acordo com o antropólogo Pierre Clastres, não eram simplesmente sociedades "sem estado" (sem fé, sem lei, sem rei), mas sociedades contra o Estado. Por meio de mecanismos precisos, elas conjuravam e impediam o surgimento de um núcleo de poder separado e hierarquicamente superior ao resto da sociedade. Sabedoria selvagem.

Mas lá onde o Estado (o mais frio de todos os monstros) prevaleceu, ele se tornou, por via de regra, um Estado contra a sociedade. Tem sido assim há milhares de anos e as raras exceções apenas confirmam a regra.

Quem lê o que acabei de escrever poderá pensar que estou prestes a fazer uma defesa do liberalismo. Só que não; na verdade, é bem o contrário; estou a ponto, isso sim, de criticar o artigo de um dos mais convictos liberais da Folha de São Paulo. Aliás, se o leitor me permite uma digressão, é exatamente por isso que este blogue tem tão poucos leitores. O que os muitos desejam, tal como os espectadores de telenovelas, é uma nova dose do já conhecido, do já visto, do já sabido, do já esperado; um pouco mais do mesmo. A fidelidade ao partido (à agenda, à causa) é tida como uma virtude; a repetição ad nauseam do mesmo ponto de vista é sorvida como um bálsamo. E se não somos desde já intolerantes em face do discurso do outro, o efeito espelho das redes sociais e dos mecanismos de busca se encarregará do resto. Formam-se, assim, as muitas igrejinhas, políticas, estéticas, filosóficas e, claro, religiosas. E o maluco ali (aqui), que não faz parte de igrejinha alguma, continuará falando no deserto. Ou para três leitores e meio, o que é consideravelmente melhor; de fato, é três vezes e meia melhor. Fim da digressão.

Enfim, como eu estava dizendo, ou como quase cheguei a dizer até que a digressão acima me interrompesse, os dois primeiros parágrafos me passaram pela cabeça quando soube que o governo está disposto a liberar os jogos de azar para fazer caixa. Mas... Por quê?

Porque não é assim, a toque de caixa (e meramente para fazer caixa) que se deve tomar uma decisão delicada como essa. Vou mencionar apenas um aspecto desse complexo problema.

Eu não seria contra a abertura de alguns cassinos luxuosos aos quais apenas pessoas muito ricas (e turistas) teriam acesso. Num país em que a taxação das grandes fortunas está na ordem do dia, essa é uma proposta que faz sentido. Como disse Hélio Schwartsman, seria uma questão de liberdade:
"...se é lícito que um sujeito torre todo o dinheiro dele em maus investimentos ou com amantes e prostitutas, não vejo motivo para impedi-lo de obter o mesmo resultado na roleta, no pôquer ou no 21."
Agora, caro leitor, pare tudo e reflita comigo: se nem mesmo um venerável colunista da Folha de São Paulo – um bacharel em filosofia com livro publicado – conhece a diferença entre jogos de azar e jogos de habilidade, você realmente acha que pessoas mais simples estarão aptas a fazer essa distinção?

Jogos de azar promovidos em cassinos são jogos em que as chances do apostador são sempre mínimas em comparação com as chances da 'casa'. Não é preciso mais do que um domínio básico da teoria das probabilidades para perceber isso de forma definitiva, ou seja, matemática. Roletas, dados e caça-níqueis são puros jogos de azar. No entanto, ao contrário do que afirma Helinho, o pôquer e o 21 (ou blackjack) são jogos de habilidade, e não jogos de azar.

Jogos de azar são, por definição, perversos. Eles são feitos para, eventualmente, premiar um sortudo ou outro e limpar todos os outros apostadores. Quanto maior for sua ignorância a esse respeito, mais você estará se arriscando a ser vitimizado pelo jogo de azar. E como é altamente improvável que a população brasileira possua informação suficiente sobre jogos de azar e teoria das probabilidades, esse projeto de liberar os jogos de azar é tipicamente o projeto de um Estado contra a sociedade.

Não sou moralista. Se isto aqui fosse a Dinamarca, eu provavelmente seria o primeiro a defender a liberação dos jogos de azar. Não, somos, entretanto, a Dinamarca ou a Noruega; não somos nem mesmo o Uruguai. No Brasil, o Estado possui (ao menos em teoria) o monopólio da exploração dos jogos de azar (as famosas loterias) e não é ruim que seja assim. Se o governo, apoiado pelos liberais e pelos lobbies da jogatina, quer liberar os jogos de azar no Brasil, ótimo! Desde que dê aos brasileiros, primeiramente, uma educação islandesa.

Sem isso, ele será apenas um governo pernicioso querendo 'fazer caixa' rapidamente às custas das deficiências e do sofrimento dos brasileiros. E isso é feio que dói.


* * *


P.S. - Ontem não foi um dia muito feliz para os colunistas da Folha. Que o diga o imortal Carlos Heitor Cony em sua aula de geografia:
"O Japão, com enorme população, com avassaladora taxa de crescimento, com capacidade industrial das mais persistentes, não pode continuar, indefinidamente, ocupando uma ilha de Paquetá melhorada, um território pouco maior do que a Ilha do Governador."
Pano rápido.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Opa, 4 leitores e meio (;

2 de novembro de 2015 às 03:43  

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