4.11.15

O Projeto de Lei 5069/2013

O Projeto de Lei 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha "e outros", pode ser consultado integralmente neste arquivo PDF. Eis aqui seu miolo:
Art. 127-A. Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, induzir ou instigar gestante a usar substância ou objeto abortivo, instruir ou orientar gestante sobre como praticar aborto, ou prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique, ainda que sob o pretexto de redução de danos:

Pena: detenção, de quatro a oito anos.

§ 1º. Se o agente é funcionário da saúde pública, ou exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro:

Pena: prisão, de cinco a dez anos.

2º. As penas aumentam-se de um terço, se é menor de idade a gestante a que se induziu ou instigou o uso de substância ou objeto abortivo, ou que recebeu instrução, orientação ou auxílio para a prática de aborto."
Muito bem. Vou destacar (e, se necessário, grifar) alguns pontos que me chamaram a atenção.

"Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto..."

A divulgação das substâncias potencialmente abortivas não interessa apenas a uma minoria de mulheres que escolheu abortar. Também as mulheres que escolheram dar à luz precisam dessa informação. Além de ferir diretamente o direito à liberdade de expressão, este trecho é contraproducente, pois coloca em risco aqueles que gostaria de proteger; e além de contraproducente, ele é inaplicável. A indústria farmacêutica simplesmente não pode deixar de advertir sobre os eventuais efeitos abortivos dos medicamentos que vende. O mesmo se aplica ao mais humilde vendedor de ervas.

"ou  prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique, ainda que sob o pretexto de redução de danos..."

Este trecho é, a meu ver, a grande pérola do projeto: ele transforma a omissão de socorro, que é um crime, numa obrigação legal.

"Se o agente é funcionário da saúde pública, ou exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro..."

Este trecho, que aumenta a pena de profissionais de saúde, produz o seguinte paradoxo: o simples curioso, que pode não saber muito bem o que está fazendo e que supostamente está praticando medicina ilegal, receberá uma pena menor do que um profissional qualificado que fez o juramento de defender a vida.

"As penas aumentam-se de um terço, se é menor de idade a gestante a que se induziu ou instigou o uso de substância ou objeto abortivo, ou que recebeu instrução, orientação ou auxílio para a prática de aborto."

As gestantes menores de idade são as mais vulneráveis, sobretudo se são pobres: além de não disporem de dinheiro para pagar os serviços de uma clínica clandestina, elas, por via de regra, são as mais desinformadas e as mais dispostas a correr o risco de realizar um aborto por conta própria. Não obstante, a julgar pelo considerável endurecimento da pena nesses casos (um terço), elas merecem, ainda mais do que as maiores de idade, a omissão de todos.

Duas características chamam a atenção no Projeto de Lei 5069/2013. Uma delas é a absoluta ausência de compaixão pelas mulheres (e meninas) que abortam e por qualquer um que esteja disposto a lhes prestar até mesmo um eventual conselho ou advertência. A julgar pelo que li, parece-me que o alvo do projeto de Cunha não é o dono da clínica de abortos clandestina, mas o indivíduo qualquer que ouse mencionar para uma mulher ou adolescente desesperada que não se deve engolir Cytotec.

A outra é a ambigüidade e/ou falta de precisão da linguagem. Vejamos alguns exemplos. "Anunciar" significa divulgar, noticiar, promover o conhecimento. Ao usar a palavra "anunciar" em vez de uma locução talvez mais precisa como "fazer propaganda", Cunha acaba favorecendo - deliberadamente ou não - interpretações da lei que poderiam levar a uma censura generalizada de informações que devem estar amplamente disponíveis para todas as mulheres. E isso, como demonstrei acima, é inteiramente absurdo. Por falar nisso, agradeço a Cunha por haver anunciado (na justificativa de seu projeto) o nome (que eu ignorava) da substância vendida como "Citotec" (sic): misoprostol.

Outro exemplo: ao usar a locução "menor de idade", o texto da lei a todas equipara e confunde, crianças e adolescentes. No entanto, se uma menina com menos de 14 anos está grávida, é porque (segundo a própria lei) ela foi estuprada; e se ela foi estuprada, ela tem direito legal ao aborto. Ora, se meninas menores de 14 anos possuem um direito específico que as menores de 18 não possuem, o uso de uma locução imprecisa como "menor de idade" parece destinado a confundir, e não a esclarecer.

Vale a pena ler a "justificativa" do projeto de Cunha. Nela aprendemos que a realização de um aborto não é a decisão dramática de uma mulher que hesita em trazer mais uma criança, seu próprio filho, a este mundo. Não. A referida mulher, coitada, nem mesmo pode reivindicar a responsabilidade que lhe cabe em sua decisão. Afinal, ela não passa de um joguete num tabuleiro administrado por
"organizações internacionais inspiradas por uma ideologia neo-maltusiana de controle populacional, e financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses super-capitalistas".
Já se adivinha: esses são os verdadeiros atores da história. De um lado, as organizações internacionais; de outro, os valentes congressistas que nos defendem com penas cada vez mais severas. E tudo o que nós, reles coadjuvantes, podemos fazer é contemplar com maravilha no olhar esse portentoso embate de titãs.


Marcadores: , ,

1 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Muito esclarecedor vosso artigo.
Ainda sou contra o aborto, mas sou mais contra ainda a ignorância.

23 de maio de 2016 às 15:57  

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial

eXTReMe Tracker