23.4.17

Sobre um uso da cor na fotografia de Spartacus

Neste fim de semana fizemos aqui em casa uma dobradinha de filmes: na sexta, Trumbo, de 2015, e no sábado, Spartacus, de 1960 (em sua versão restaurada de 2015).

A sessão dupla revelou-se muito proveitosa. Mas, para além das conclusões mais óbvias sobre política e ideologia, a revelação, por assim dizer, ficou mesmo por conta da fotografia de Stanley Kubrick.

Durante uma seqüência filmada em noite americana, Spartacus e Varinia conversam sob uma tenda, e é impossível não notar o contraste entre o interior da barraca (cores quentes) e o exterior (cores frias). Os tons avermelhados e alaranjados que tingem a parte de dentro da tenda (e os dois personagens principais) remetem claramente à intimidade do lar, ao amor e à paixão sexual. Já os tons azulados e acinzentados que pintam o lado de fora, onde as tropas se deslocam, remetem à guerra e à morte. Em dado momento, Spartacus se despede de Varinia e, montando em seu cavalo, passa do vermelho ao azul: do lar acolhedor ao dehors ilimitado, da intimidade ao campo de batalha, da paz à guerra, do amor ao ódio.¹


Kubrick não estava apenas filmando uma bela seqüência, mas também apresentando ao espectador as regras de uma linguagem de cores.² E, num momento decisivo da trama, ele voltaria a usar essas mesmas regras para a obtenção de um efeito emocional ainda maior. Refiro-me ao momento em que Spartacus, traído por seus aliados e assediado pelos romanos, resolve marchar contra Roma. Pode-se dizer que essa marcha suicida revela-se, com todas as suas conseqüências, justamente quanto o herói, banhado por uma luz azulada, volta as costas para o alaranjado interior da barraca (2:26:39). Nesse mero jogo de luzes, percebemos tudo que está em jogo: Spartacus está dando as costas à vida (à sua mulher, grávida de seu filho) e entregando-se a um destino atroz. Há uma inversão: antes, personagens "quentes" sobre um fundo frio, indicando que um excesso de vida iria impor-se e vencer a batalha; depois, o personagem azulado sobre um fundo alaranjado, indicando que ele iria enfrentar forças muito superiores às suas e já estava, de certa forma, morto.³

Como disse anteriormente, foi, para mim, uma genuína revelação. Jamais uma cena me emocionou com tanta intensidade exclusivamente pelo uso da cor. E pensar que esse filme (renegado pelo diretor) foi o primeiro longa colorido de Kubrick, que só voltaria a usar cores em 1968...

É claro que outros membros da equipe podem ter sido responsáveis por detalhes bastante significativos. Por exemplo, a escolha do vermelho para o vestido de Varinia coube a um dos figurinistas? Ou teria sido decidida pelo próprio Kubrick? Seja como for, a revelação afetiva que me tocou neste filme foi, sem sombra de dúvida, uma revelação de luz (qualificada pela cor), e o mago da luz, aqui, chama-se Stanley Kubrick.


NOTAS

1. Note-se o toldo que, convenientemente, impede a incidência da luz do sol e do céu sobre a lente da câmera (solução técnica) e ajuda a criar (por oferecer um teto ao casal) uma sensação de intimidade (solução narrativa). Também vale notar que as sombras no interior da barraca são tão duras quanto as sombras dos soldados, indicando o uso de iluminação artificial (talvez colorida?) muito forte.

2. Sabe-se que Kubrick realizou pessoalmente, embora não a tenha assinado, a fotografia deste filme (salvo nas seqüências iniciais, dirigidas por Anthony Mann).

3. Juntamente com os homens, mulheres e crianças que o acompanhavam.


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