8.10.17

Arte e liberdade de expressão (segunda parte)

A adoção de uma classificação indicativa seria uma solução para os recentes conflitos a propósito de exposições de arte no Brasil? Tudo leva a crer que sim: afinal, a classificação indicativa permite preservar integralmente a liberdade de expressão sem expor crianças e adolescentes a afecções e afetos que elas talvez não sejam capazes de digerir.

Infelizmente, não é assim tão simples. É bom ter em mente que tal solução resolveria o problema do mesmo modo que a demarcação de uma fronteira resolve o problema de duas nações que estão ávidas para guerrear entre si.

A metáfora é pertinente, pois se trata, efetivamente, do estabelecimento de fronteiras que nenhum tratado de paz define de antemão. Onde traçar a linha divisória? Como definir a idade mínima para esta ou aquela exposição?

E, no entanto, a classificação indicativa é feita rotineiramente com as obras audiovisuais e os jogos. O problema é que, no caso das artes plásticas, os critérios teriam de ser inteiramente diferentes. Não se pode equiparar o nu nas artes plásticas ao nu do audiovisual. Corpos nus são corriqueiros nas artes plásticas, seja na formação do artista (modelos vivos), seja nas obras de arte. Para dar um único exemplo, se as estátuas de Rodin deixassem de receber a classificação "livre para todas as idades", estaríamos privando nossas crianças de entrar em contato com algumas das mais altas realizações do espírito humano. Embora seja uma boa solução, e talvez a única possível, a classificação indicativa não é uma panacéia, pois errar a mão é humano, e isso já aconteceu inúmeras vezes na classificação de obras cinematográficas. Teríamos de ter muito cuidado ao estendê-la às artes plásticas.

Além disso, é preciso levar em conta que o Brasil apresenta fortes diferenças regionais. A mesma obra ou exposição que seria acolhida sem problemas num determinado lugar pode gerar uma forte reação, inclusive do poder público, em outro. (5) E, ao contrário do que acontece com o audiovisual e os jogos, exposições de arte não podem ser avaliadas em qualquer lugar. Sem dúvida é possível avaliar um quadro por uma foto ou uma escultura por uma filmagem, mas nesses casos a avaliação padeceria de um vício fundamental, pois o contato com as obras teria sido de segunda mão. Em resumo, tudo aponta para um sistema no qual as obras teriam de ser classificadas localmente, dando oportunidades desiguais a crianças e adolescentes de diferentes localidades e aprofundando as diferenças regionais. (6)

Até onde posso ver, estas são as principais limitações da proposta de classificação indicativa em exposições de arte, que eu e boa parte dos brasileiros apresentamos como uma solução viável para os recentes conflitos envolvendo arte e liberdade de expressão. Apesar dessas limitações e da parcela de arbitrariedade que a multiplicidade de avaliadores irá suscitar, a proposta de classificação indicativa para as artes plásticas é infinitamente melhor do que o conflito aberto entre duas posições aparentemente inconciliáveis.

Se os próprios artistas propusessem uma classificação indicativa para suas obras, como fiz para minha tradução, praticamente todos os problemas estariam resolvidos. No entanto, como veremos adiante, a possibilidade de que um movimento como esse ocorra é bastante improvável.

(continua)


NOTAS

(5) Deputados pressionam, e polícia apreende quadro em exposição no MS (Folha de SP)
(6) Infelizmente, eu ignoro como se dá a classificação indicativa nas artes cênicas, o que me impede de levá-la em conta. Tudo o que sei é que certos encenadores estabelecem, eles mesmos, os limites etários que acham apropriados para seus espetáculos.

Anterior:
Arte e liberdade de expressão (primeira parte)

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial

eXTReMe Tracker