14.12.17

Arte e liberdade de expressão (segundo adendo)

Há uma pergunta decisiva que talvez devesse ter sido feita desde o início: a classificação indicativa deriva de uma preocupação puramente "moral"? Teria ela como objetivo apenas proteger a infância do que pode ser considerado "indecente" ou "contrário aos bons costumes"?

Se eu, por um só instante, acreditasse nessa tese, jamais teria perdido meu tempo escrevendo esta série. O que está em jogo aqui é outra coisa, que eu resumiria deste modo: é impossível prever as conseqüências de uma representação ou de uma associação de representações para o psiquismo de uma criança. Obviamente, o que me preocupa não são banalidades como o desenvolvimento de um fetiche ou de um parcialismo, mas associações que possam acarretar conseqüências psicológicas realmente sérias e causar, desde a infância e pela vida adulta afora, um enorme (e desnecessário) sofrimento.

A que tipo de representação me refiro? Entre os exemplos mais cristalinos estão os filmes de terror, particularmente aqueles que associam sexo e violência. A associação se dá, em geral, do seguinte modo: o filme apresenta jovens ou adolescentes que se afastam do controle familiar, indo para uma praia ou uma floresta; o clima é festivo, eles bebem e namoram. Quando, porém, começam a fazer sexo, são interrompidos pela violência mortal e gratuita de um personagem não raro sobrenatural. O casal é, por via de regra, cruelmente assassinado por esse personagem. Essa associação entre sexo e morte é um clichê nesse gênero de filme.(1)

Os efeitos dessas seqüências de cenas no psiquismo de uma criança podem ser devastadores.(2) Uma criança pequena que surpreende seus pais fazendo sexo pode pensar que eles estão brigando; mas nada se compara à associação brutal entre sexo e violência que é rotineira em filmes de terror. Aqui, a associação é entre prazer sexual e pena de morte. No caso concreto que me foi relatado, essa associação prolongou-se numa associação entre alegria e punição. Estabeleceu-se, no paciente, o seguinte drama: "se eu fizer algo que me dê alegria, serei punido; e a punição será tanto mais terrível quanto maior for a minha alegria."

É inútil alegar que tal associação contraria o bom senso. Como na maioria dos filmes de terror o personagem principal (o "monstro") evoca uma força sobre-humana ou mesmo sobrenatural, a associação se estabelece sobre um fundo de pensamento de tipo mágico-religioso ao qual a criança está suscetível em grau extremo. Não estamos falando de medos racionais; o paciente não teme que o vizinho paranóico venha puni-lo com um machado caso ele faça sexo barulhento; o que ele teme é que forças além de qualquer controle o punam de forma terrível e definitiva caso ele se sinta alegre demais, por causa do sexo ou por qualquer outra razão.

A mera descrição desse caso deixa claro que, na educação infantil, impõe-se o princípio de precaução. Levar os filhos pequenos para ver as esculturas de Rodin ou mesmo A Origem do Mundo é uma coisa; deixá-los assistir a porcarias nocivas, seja na TV, seja na Internet, é coisa inteiramente diferente.

Àqueles que, diante dos episódios recentes no Brasil, se dizem "obrigados" a "defender porcarias", eu diria simplesmente que não me vejo "obrigado" a defender porcaria nenhuma.

Assim como não me vejo obrigado a atacar. As minhas brigas, eu mesmo as compro.

* * *

A propósito, pode-se realmente afirmar que uma emissora de televisão de sinal aberto que difunde incessantemente cenas de racismo e de violência em suas novelas está tentando combater o racismo e a violência? Ou estaria ela, ao contrário (a pretexto de "discutir" esses temas e de posar como uma emissora "pacifista" e "anti-racista"), perpetuando o racismo e a violência? Essa fica para outra ocasião, isto é, se eu ainda tiver alguma vontade de voltar a esse assunto.


NOTAS

(1) Eu quase fiquei surpreso quando vi Ridley Scott recorrer a uma seqüência dessas em "Alien: Covenant". Digo "quase" porque, a despeito de ser um cineasta acima da média, Scott não chega a ser exatamente o que se poderia chamar de pensador.
(2) Passo a referir-me a um caso que me foi relatado pela própria vítima, cujos pais permitiam que visse filmes de terror desde os três ou quatro anos de idade: "Eu pensava que havia pequenos homens dentro da TV e que as pessoas realmente morriam naqueles filmes."


Anteriores:
Arte e liberdade de expressão (primeira parte)
Arte e liberdade de expressão (segunda parte)
Arte e liberdade de expressão (terceira parte)
Arte e liberdade de expressão (quarta parte)
Arte e liberdade de expressão (quinta parte)

Adendos:
Arte e liberdade de expressão (primeiro adendo)

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