18.10.18

O cara da Folha pediu e eu, alegremente, dei (ou: da filosofia como arte de aborrecer a tolice)


Como ensinou Bergson, liberdade não é um mero escolher entre opções previamente definidas. É claro que o voto, esse pequeno naco de liberdade que lhe concedem, pode ser, para o homem das ruas, tudo que ele tem para exprimir sua vontade política. Assim, se é preciso afirmar que é enganoso reduzir a compreensão do conceito de liberdade à simples "liberdade de escolha" entre opções determinadas de antemão, é preciso afirmar também, e ao mesmo tempo, que a liberdade de escolha (materializada no voto de todos os cidadãos) é um dos fundamentos do regime democrático.

No segundo turno de uma eleição presidencial, embora sejam dois os candidatos, não tenho apenas duas opções. Em linguagem filosófica, o terceiro excluído vale para o resultado das eleições, mas não para o meu voto; pois está em meu poder recusar os dois candidatos e não votar em nenhum. Vale lembrar que, num segundo turno, votos brancos e nulos não favorecem ou prejudicam nenhuma candidatura, pois não são levados em conta.

Não fosse trágico, seria cômico observar a sanha acusatória de alguns articulistas da imprensa brasileira contra os eleitores que anulam o voto. Estes são acusados de compactuarem, entre outras coisas, com a destruição do meio ambiente e com a tortura.

Essa aisance em lançar mão de chantagem (tortura?) moral é, por si mesma, reveladora.

Não quero compactuar com a tortura. Não quero compactuar com o crime organizado. Não quero compactuar com seja lá o que for, e a anulação do meu voto exprime precisamente essa recusa. Negar-me esse direito equivale a privar-me da já minúscula parcela de liberdade que me cabe numa eleição. O que haveria de mais autoritário que isso? Como poderia acusar-me de um defeito moral alguém que de antemão nega minha liberdade? Não posso ser forçado a escolher uma das duas opções e ainda imaginar-me minimamente livre. Se assim fosse, deveríamos dizer livre o homem a quem demos o direito de escolha entre ser fuzilado com uma venda nos olhos ou sem ela.

Não consigo impedir-me de sentir, num momento como este, um imenso orgulho de ter dedicado a Henri Bergson uma boa parte de minha juventude: justamente um filósofo odiado tanto pela esquerda (que o acusava de "místico" e "espiritualista") quanto pelo conservadorismo (a Igreja Católica incluiu, já em 1914, suas principais obras no Index Librorum Prohibitorum.) Não custa lembrar que Bergson esteve "do lado certo da História" quando foi preciso e numa situação em que havia, de fato, um lado certo da História.(1)

Aproveito para lembrar que a neutralidade partidária e o voto nulo de um eleitor são coisas bem diferentes. Um partido só tem a ganhar com a neutralidade. O eleitor, ao contrário, arrisca-se a ser odiado pelos dois lados, a ser tachado de omisso e até a ser perseguido em seu local de trabalho. Não estou em cima do muro, como alguns partidos políticos; estou, na verdade, acima do muro. Se os dois lados da disputa são chamados (e com razão) de autoritários, é porque eles trabalham por um fechamento; ao passo que eu, como filósofo, trabalho por uma abertura. Não vou dar meu aval a gente que defende, conforme o caso, a tortura ou a apropriação de um país por um partido político. Mas se as urnas decidiram que é isso que temos para hoje, então façam suas campanhas, defendam suas idéias e tentem, por favor, não matarem uns aos outros. Mas tampouco neguem a ínfima margem de liberdade que me resta, pois, ao fazê-lo, vocês estarão negando a própria democracia.

E isso, claro, é coisa de fascista.




(1) SOULEZ, Philippe. Bergson politique. Paris, PUF, 1989.

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