7.11.18

um raro acontecimento

Em janeiro de 1941, Bergson chamou um padre católico para oficiar sua extrema-unção e, embora fosse judeu, foi atendido. Em outras circunstâncias, ele já teria se convertido ao catolicismo há tempos; mas isso era absolutamente impensável justamente numa época em que seu povo estava sendo perseguido com crescente ferocidade.

Não sou judeu nem católico, mas ateu: talvez a minoria mais universalmente desprezada. Mesmo os chamados "progressistas", aparentemente tão ciosos dos direitos das minorias, são capazes de usar o ateísmo como peça de acusação.

Eu poderia facilmente declarar-me teísta invocando, por exemplo, o Deus de Spinoza, natura naturante. Mas isso, a meu ver, seria hipocrisia. O Deus dos filósofos e o Deus das religiões são tão diferentes que, ao sugerir que acredito em Deus, eu estaria, a rigor, enganando as pessoas que desconhecem essa diferença. Seria fácil, seria cômodo, seria hipócrita. Ao contrário do que as pessoas imaginam, ateus podem ser extremamente rigorosos em questões éticas e são capazes de colocar, se necessário, uma decisão ética acima de seus interesses mais elementares. Assim, mais do que por uma convicção sem nuanças, é por solidariedade com a mais desprezada das minorias que me declaro ateu.

* * *

Sempre fui estúpido demais, ou iluminado demais, ou ambos, para sentir qualquer tipo de preconceito. Meus colegas de escola me zoaram porque a primeira garota que beijei (tínhamos 11 anos) era "a filha da lavadeira". Aquilo, para mim, mal fazia sentido. Pensem bem: o que vocês esperariam de um menino que, aos 9 anos de idade, via na TV monges budistas ateando fogo ao próprio corpo enquanto cuidava da mãe com câncer terminal? Vocês esperariam que ele se importasse com a classe social da namoradinha? Com a cor de sua pele? Com diferenças de gênero, religião ou comportamento sexual? Àquela altura, se diferença havia, era entre minha mãe, cuja dor só a morfina aplacava, e aqueles monges que arderam até a morte sem mover um músculo.

* * *

Compreende-se que alguém com esse histórico tenha estabelecido para si mesmo, mais ou menos confusamente, a meta de descobrir o sentido da vida. Posteriormente compreendi que "descobrir" não era um termo preciso, pois era necessário muito mais do que isso, era necessário inventar, por minha própria conta, o sentido da vida: mais ou menos como alguém que reinventa a roda.

* * *

Não sei se o leitor consegue avaliar a intensidade com que a fala de Haddad me embrulhou o estômago. Eu só não abordei esse tema antes das eleições porque meus leitores poderiam concluir que eu estava apoiando o outro candidato, e eu não estava. Mas o fato é que a reação do "democrata" Haddad, aliás doutor em Filosofia, o "mais tucano dos petistas", veio colocar uma última (e pesada) pedra sobre um tema que já me fazia refletir há algum tempo. 

 Clique para ampliar. Fonte: Daniel Weterman (O Estado de São Paulo)

Há quem diga que nossos "progressistas" não estão e jamais estiveram de fato preocupados com as pessoas que dizem defender, e que eles seqüestraram pautas perfeitamente legítimas (como, por exemplo, os direitos das minorias) e as puseram a serviço de um projeto de poder. Com efeito, isso explicaria a arrogância de Haddad e a incrível facilidade com que ele foi capaz de fomentar preconceito religioso dentro de uma igreja quando isso lhe pareceu politicamente vantajoso.

Seja como for, eu, que me declaro ateu e já fui xingado de "iluminista" (outra minoria?) dentro de uma Universidade, sou, evidentemente, favorável à defesa dos direitos de minorias, etnias, mulheres e desfavorecidos. Mas a verdade é que essas pautas (legítimas, repito) acabaram monopolizando a vida acadêmica nas áreas de humanas, e a Universidade acabou tornando-se um lugar tóxico e totalmente hostil ao debate pluralista.

O mecanismo de conversão é simples: constrangimento moral. Se você não adere integralmente à "causa", se você insinua que também é preciso dar atenção a outros problemas (como, por exemplo, o estúpido problema do sentido da vida), então você só pode ser racista, sexista, fascista, homofóbico. Não havia isso na minha época de estudante. Era um tempo em que você podia escrever um trabalho sobre Nietzsche para um professor marxista e ganhar nota 10.

Não estou defendendo aqui nada semelhante a um controle ideológico da Universidade. Não estou defendendo controle algum. Não estou propondo a troca de um livro sagrado por outro. Leandro Konder, o professor a quem me referi no parágrafo anterior, não me deu nota 10 porque alguma regra o obrigava. Ele o fez porque era digno e porque respeitava o livre debate de idéias. Isso acabou. Hoje, brutalidade e cinismo se enfrentam abertamente; e o barulho incessante (de lado a lado) termina por arruinar o silêncio que permitiria esse raro acontecimento que é pensar.


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