17.11.19

Uma lição de jornalismo (e não só de jornalismo)

Hoje, durante o jogo entre Flamengo e Grêmio, o narrador de futebol da TV Globo deu uma lição de jornalismo. Lição involuntária, é claro, mas não menos preciosa por isso.

Num dado momento, a imagem mostra que, numa disputa de bola próxima à área do Grêmio, Gabigol, o artilheiro do campeonato brasileiro, foi pisado por um adversário. É difícil saber, pois o lance foi mostrado pela TV uma única vez, mas, aparentemente, o pisão foi involuntário. Seguiu-se, então, um diálogo (que irei citar de memória) entre o narrador e um dos comentaristas.

Narrador: "Se foi involuntário, não dá nem pra chamar de pisão."
Comentarista (aparentemente indignado): "E você chama de quê?"
Narrador: "Eu chamo de toquinho" (com o primeiro "o" aberto, ou seja, "pequeno toque".)

Flagrado em sua tentativa de transformar um pisão num leve e inofensivo "toque", o narrador tenta se explicar:

— É que se eu chamar de "pisão", a torcida vai reclamar, vai querer expulsão do jogador...

A coisa toda é de uma clareza cristalina. A narrativa jornalística não é produzida com base nos fatos, mas com base nos (supostos) efeitos que esses fatos poderão provocar na audiência.

Em outras palavras, o narrador explicitou, com todas as letras, que a tarefa do jornalismo é manipular a audiência. Pouco importa que os fatos tenham sido mostrados claramente pelas câmeras; no limite, não há fatos, o que vale é a narrativa.

Obrigado, narrador! Você, que foi contratado para clonar o Galvão Bueno e que, embora até hoje não saiba diferenciar um lençol de um chapéu, tem desempenhado bem sua tarefa, prestou, ainda que involuntariamente, um enorme serviço ao povo brasileiro. E não se preocupe; quando chegar a minha vez de discutir o (intrincado) problema da Verdade na filosofia de Nietzsche, você será lembrado.

* * *

No mesmo jogo, o especialista em arbitragem da TV Globo disse que não marcaria o pênalti que decidiu o jogo. Não é pênalti quando a bola bate no braço que está apoiado no chão, diz a nova regra.

A TV Globo parece estar ansiosa para agradar aos paulistas (e não é de hoje).¹ Só que, mais uma vez, a imagem desmente a narrativa. O zagueiro do Grêmio só chegou a tocar o chão depois de tocar na bola. E ele sequer se "apoiou" no chão com o braço; ao contrário, ele caiu (com a mão e o braço) sobre a bola.



Portanto, o pênalti foi bem marcado, e a nova regra só se aplica a casos como este:


É preocupante ver que o jornalismo comete o crime de manipulação e de lesa-verdade quando o assunto é futebol. Já imaginaram se ele fizesse o mesmo ao tratar de temas como cultura, política, direito e economia?

¹ Uma passagem que hoje é fácil entender pode tornar-se enigmática com o passar dos anos. Os paulistas são aqui mencionados porque, ao tempo em que este texto foi escrito, o Palmeiras ainda tinha chances, embora remotas, de superar o Flamengo e conquistar o Campeonato Brasileiro de 2019.


ATUALIZAÇÃO (18/11/2019)

Disseram-me que, ontem, o Fantástico fez questão de repetir o veredicto do especialista de arbitragem que pontificou durante o jogo e teria, se pudesse, anulado o pênalti legítimo que deu a vitória ao Mengão. Hoje, Juca Kfouri, que entende o suficiente de futebol para saber que o Flamengo será heptacampeão brasileiro em 2019, chamou, entretanto, de "malandro" o referido pênalti.

Será que Juca, com toda a sua experiência, não sabe ler uma imagem? Não creio. O que faltou foi simplesmente a pesquisa e, principalmente, a vontade de realizar a pesquisa. A única coisa que não faltou foi aquele inconfessado desejo de diminuir, de denegrir a vitória do mais querido.

Eu não achei prontas na Internet as duas imagens acima. Tive de rodar um vídeo, pausá-lo nos momentos precisos, efetuar as respectivas capturas. Mas quem quer apenas impor a narrativa que lhe convém não precisa dar-se ao trabalho.

Nietzsche não pode ser apenas isso. Ele não era medíocre.


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