23.8.07

a cultura e a morte - nova série (5)

Há não muito tempo, eu disse que a produção não está implicada no amor, mas que o amor está implicado na produção. Hoje eu gostaria de refinar essa afirmação à luz da definição spinozista: "O Amor é a Alegria acompanhada pela idéia de uma causa exterior". Como essa definição implica a de alegria, não será inútil lembrar que Spinoza define esta como a "passagem de uma perfeição menor a uma perfeição maior". A alegria exprime um aumento da potência de agir e de pensar (assim como a tristeza exprime sua diminuição); a passagem a uma perfeição maior é justamente esse incremento de potência. E quando essa passagem do menos ao mais é acompanhada pela idéia de uma causa exterior, aí temos o amor.

A primeira coisa que salta aos olhos nessa definição de amor é que este exprime sempre uma passividade. Nesse sentido, amor e paixão são, a rigor (e a despeito dos bravos esforços dos filósofos de botequim), sinônimos. Não estou dizendo que todos os amores são iguais (ao contrário, eles são todos diferentes), e sim que as pretensas distinções entre amor e paixão são arbitrárias. Por definição, amar é padecer, ou seja, ser movido por uma causa exterior qualquer. Se me disserem que é muito melhor padecer de amor do que padecer de ódio, eu concordarei imediatamente; afinal, são as alegrias passivas do amor (ou paixões alegres) que nos aproximam da conquista de nossa potência de agir e de pensar; mas elas ainda são passivas, enquanto é precisamente a conquista dessa potência de agir e de pensar que está em questão na idéia de cultura. "Além da alegria e do desejo que são paixões, existem outros sentimentos de alegria e de desejo que se relacionam a nós na medida em que somos ativos." (Ética, III, prop. 58).

O Deus spinozista é muito diferente do Deus antropomórfico, concebido à medida de nossos medos e esperanças; e pode-se dizer que a definição de amor é um dos tantos marcadores dessa diferença. No spinozismo, é um absurdo dizer que Deus ama. Se Deus amasse, ele passaria de uma perfeição menor a uma perfeição maior em função de uma causa exterior, o que é nada menos do que um absurdo. Se quisermos nos referir ao sentimento que Deus experimenta, teremos que abdicar do termo amor em prol do termo beatitude. "Se a alegria consiste na passagem a uma perfeição maior, então a Beatitude deve ser o fato de que o espírito é dotado da própria perfeição." (Ética, V, prop. 33, escólio).

O que tudo isso tem a ver com a idéia de cultura? Aqui - é bastante óbvio, mas não custa avisar - eu deixo de ser um "comentador" de Spinoza para fazer de seus conceitos peças de uma outra máquina. Se essa distinção (entre amor e beatitude) parece-me decisiva, é porque seria insuficiente dizer que o amor está implicado nessa produção de si e de outrem que define a cultura: pois já não se trata mais de amor, e sim de beatitude. Eis aí o anunciado refinamento ou, se quiserem, a correção do que eu afirmei anteriormente. É muito fácil compreender esse ponto. O amor, por mais belo ou importante que seja, ainda exprime uma passividade; mas a alegria da produção, por sua vez, é necessariamente ativa. Ela nem mesmo implica, como o amor, a idéia de algo exterior, pois nós também produzimos a nós mesmos; e ainda quando ela implica a idéia de algo exterior (um filho, um leitor, em suma, um outro homem), já não se trata de extrair do objeto a alegria, e sim de produzir nele (e mais uma vez - é inevitável - também em nós mesmos) uma diferença, uma metamorfose, um aumento de potência. A beatitude da cultura é o grau extremo de realização diante do qual todas as outras alegrias e amores empalidecem - ainda que façam o maior estardalhaço e tentem se fazer passar pelo mais alto. Por certo que o amor é alegria e que a alegria nos aproxima da posse de nossa potência de agir e de pensar; mas o seu valor está precisamente nisso, em nos aproximar desse ponto de mutação em que deixamos de ser passivos e conquistamos a criação de nós mesmos e de outrem. Sim, o amor de fato é lindo; mas ele é algo de supremo apenas para o homem passivo, para o homem que só se sente vivo na medida em que se sente apaixonado. E não é escusado lembrar que os grandes amores ou paixões - pelas mulheres, pelo dinheiro, pelo reconhecimento, pelo poder - conduzem muito facilmente ao assassinato, à exploração e à guerra. Na cultura a violência das paixões dá lugar à crueldade do pensamento, mas essa crueldade é ainda dádiva, cultivo, cuidado; na cultura, as puras intensidades - signos, idéias - são de todos e de ninguém, e quem as passa adiante não se vê por isso privado delas.

Só as alegrias ativas, só a beatitude da criação - da ação do homem sobre o homem para produzir o homem - são eternas; e não se trata aqui da "eternidade de morte" de um culto ao passado, mas da eternidade de vida em que puras intensidades passam umas pelas outras e em que a vida se transmite de homem a homem. A cultura é o exercício supremo da potência.


( Vou parar por aqui, mas só porque estou no limite de uma intoxicação por cafeína. =)

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