9.8.07

cultura, ética, vida

As vinte notas reunidas logo abaixo, publicadas inicialmente em triagem, são o resultado de um esforço para pensar a cultura, entendida como ação do homem sobre o homem para produzir o homem (e, quem sabe, o além do homem). Há ainda dois textos relativos ao tema (escritos a propósito dos filmes Dogville e Primavera, Verão, Outono, etc.) que eu irei republicar aqui - e talvez ainda outros, esparsos, dos quais eu já me esqueci.

O tema da cultura, tal como eu a defino (inspirado na segunda dissertação da Genealogia da Moral e em certos trechos de Nietzsche et la philosophie), tem sido nestes últimos dois anos uma obsessão para mim. Trata-se, a meu ver, de um tema tão essencial que eu tenho encontrado alguma dificuldade para germinar estas simples notas e escrever algo, senão mais sistemático, de maior fôlego. Eu simplesmente não posso errar o alvo e essa responsabilidade me paralisa.

Em primeiro lugar, essa "redefinição" do termo cultura me leva ao centro de um debate que me é caro: aquele que opõe ética e moral. Para mim é bastante evidente que a cultura como tal remete a um esforço ético que nada tem a ver com as limitações morais. Pois a ação do homem sobre o homem para produzir o homem, quando bem sucedida, tem como resultado a produção de um homem que produz a si mesmo. Ora, um homem que produz a si mesmo ultrapassou necessariamente as preocupações meramente sexuais, digestivas e simbólicas que poderiam fazer dele um perigo para os seus semelhantes. Certamente que esse homem trepa, almoça e não recusa um elogio ou outro, mas sua vida já não é mais regida pela genitália, pelo estômago ou pelo desejo de reconhecimento. Ele descobriu um plano em que só existem signos e afetos como puras intensidades. Que erro ter dito o "e". Seus signos se tornaram puras potências afetivas ao mesmo tempo em que seus afetos não são mais reprimidos, mas conquistaram a dimensão do signo como dádivas intensivas num campo social dado.

E é essa relação de si consigo mesmo, é essa ação do homem sobre si mesmo que o habilita a entrar por sua vez no movimento da cultura, ou seja, a tornar-se um agente da cultura. Mais do que a realização de um "ciclo", trata-se da transmissão de um movimento. Sabemos muito bem, e por experiência, como é patético o homem que jamais se deu ao trabalho de fabricar a si mesmo (ou que fez um trabalho pela metade) e que ainda assim crê ter o direito de fabricar outros homens. (Pensemos, por exemplo, no personagem Tom, de Dogville). Afinal, é precisamente aí, na vigência dessa hipocrisia essencial, que a lei moral toma o lugar do cultivo ético: a palavra de ordem usurpa a cultura da alegria e do entendimento, da alegria e da visão. Erro fatal, erro milenar pelo qual pagamos - e muito caro - até hoje. Não existem "falsos moralistas". A moral é que é, nela mesma, essencialmente falsa: uma violência permanente. A essa violência moral, o homem da cultura opõe a crueldade ética, que não visa a obediência a leis ou a realização de uma essência, mas tão somente a conquista de uma potência - humana e mesmo sobre-humana.

Por outro lado, e eis aqui um ponto um tanto surpreendente, o pensamento da cultura, tal como vem sendo definida aqui, acaba levando a uma espécie de identificação entre cultura e vida. Esse ponto é abordado no último tópico da série (cultura e sexo), que sugere uma passagem da dimensão ética para a dimensão ontológica (se é que existem realmente duas dimensões distintas). Pode-se esboçar essa identificação com a seguinte fórmula: a vida é a ação do vivo sobre o vivo para produzir o vivo. E nem mesmo podemos dizer que os unicelulares assexuados, formas primitivas de toda vida, são uma objeção a essa fórmula, pois já vimos que a cultura supõe em seu movimento a ação de si sobre si mesmo.

Mas esse trabalho terá que ser deixado para mais tarde. Por ora, tudo é esboço. Eu gostaria de encerrar esta já longa nota com uma observação no mínimo curiosa. Aliás, diga-se de passagem, é por causa desse tipo de observação (que estou prestes a fazer) que eu me vejo cada vez mais longe da Academia. Pensar livremente me dá muito mais prazer do que ficar eternamente medindo palavras.

Qual é a palavra essencial do cristianismo? O amor. Aliás, para o cristianismo, o amor é um mandamento, ou seja, uma lei, uma obrigação (não custa notar que D. H. Lawrence escreveu um belíssimo conto em que Cristo se retrata a esse respeito: The man who died.) Muito bem. O amor. É sem dúvida uma bela mensagem, mas um tanto vaga. Há muitos amores preguiçosos, indulgentes - e há inclusive amores que matam. Perdoem-me o termo, mas muita merda já se fez em nome do amor. E eu creio que o problema essencial está aqui: o "amor" não implica necessariamente produção (de si ou de outrem). O amor, o amor é amor, o amor é amoroso, o amor é lindo - e nada mais. Estamos cheios de amor - mas a miséria (todo tipo de miséria) só aumenta. Assim, parece-me que é preciso dar um passo além: ultrapassar Cristo. Nietzsche disse que Cristo morreu jovem demais e que, tivesse vivido mais tempo, teria se retratado, pois era nobre o bastante para isso.

E, com efeito, o pensamento da cultura é muito mais poderoso e efetivo do que o amor cristão, pela simples razão de que o amor está implicado no produzir, mas o produzir não está implicado no amor. O homem da cultura, o homem que age sobre o homem para produzir o homem (e não para explorá-lo, violentá-lo, enchê-lo de obrigações e leis) é, por definição, um homem amoroso. Ele nem precisa mencionar o seu amor, pois está exercendo-o o tempo todo. Ele não precisa religar-se, pois já está ligado o tempo todo. Em uma palavra, aquilo que a religião promete (ou exige) como um ideal, a prática da cultura produz como uma realidade concreta. De um só golpe, nos livramos da água suja da moral e da religião e ainda resgatamos o bebê: a alegria e a inocência de produzirmos uns aos outros como a nós mesmos.

6 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Tudo o que eu venha a acrescentar ao que aqui enuncias, receio que possa estar a mais.
Embora a identificação e a significação das palavras seja crucial para a realização da tua Obra…
Quanto à palavra amor sempre me suscitou uma qualquer igualdade com o ódio, andam ambas de mãos dadas, ou seja o amor existe porque existe ódio e igualmente o mesmo sucede com outras tão cabalmente palavras em uso tão desgastante em suas interesseiras consumações e são elas, paz=guerra, isto é, a paz existe porque existe guerra e vice-versa. Ora vejamos que entre tantas outras, o mesmo já não sucede com a palavra felicidade, porque simplesmente faz parte de um qualquer existir indefinido (em sua interioridade para com a exterioridade) a conjugar-se com a sua própria definição existente em si num todo.

Gostei muito da abordagem que fazes na redefinição de cultura, é importantíssimo esse enquadramento do Homem pelo Homem:

Pois a ação do homem sobre o homem para produzir o homem, quando bem sucedida, tem como resultado a produção de um homem que produz a si mesmo. Ora, um homem que produz a si mesmo ultrapassou necessariamente as preocupações meramente sexuais, digestivas e simbólicas que poderiam fazer dele um perigo para os seus semelhantes.

Só que relativamente ao último parágrafo:

E, com efeito, o pensamento da cultura é muito mais poderoso e efectivo do que o amor cristão, pela simples razão de que o amor está implicado no produzir, mas o produzir não está implicado no amor. O homem da cultura, o homem que age sobre o homem para PRODUZIR o homem (e não para explorá-lo, violentá-lo, enchê-lo de obrigações e leis) é, por definição, um homem amoroso. Ele nem precisa mencionar o seu amor, pois está exercendo-o o tempo todo. Ele não precisa religar-se, pois já está ligado o tempo todo. Em uma palavra, aquilo que a religião promete (ou exige) como um ideal, a prática da cultura produz como uma realidade concreta. De um só golpe, nos livramos da água suja da moral e da religião e ainda resgatamos o bebê: a alegria e a inocência de produzirmos uns aos outros como a nós mesmos.

É-me difícil este entendimento precisamente pelo uso que fazes dessas mesmas palavras e aí gostaria que me explicasses… È que no diz respeito às palavras produção, produzir não são para mim aplicáveis desta forma, precisamente por serem tão ousadamente roubadas pelas tecnologias em seus sistemas de produtividades e que é lá que elas ficam mesmo bem e, em alternativa à produção gosto mais da palavra realização. Embora possa aqui compreender como a aplicas, a apreender essa produção do Homem pelo Homem em sua interioridade e sem as interferências dessa tal de exterioridade que o produzem sem qualquer valor interior.
Ou estás neste último parágrafo a usar de uma certa ironia? E se assim for até acho muito pertinente!

Um grande abraço e até sempre

Alice

12 de agosto de 2007 às 18:20  
Anonymous Anônimo disse...

'é patético o homem que jamais se deu ao trabalho de fabricar a si mesmo (ou que fez um trabalho pela metade) e que ainda assim crê ter o direito de fabricar outros homens'

Francisco querido amigo,"estou"
supeita,do quanto o tenho lido
só posso parabenizar-te, nada a acrescentar .
Espero que a leitura,seja um incentivo em tua produção.
Avante !
afetuoso abraço,
de sempre grata, virgínia

12 de agosto de 2007 às 20:46  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Virgínia, eu escrevi essa frase pensando no personagem Tom, de Dogville. Talvez eu ainda modifique o texto só para deixar claro o quanto essa referência (ilustração?) é importante para mim - porque é de fato exemplar e porque está ao alcance de todos (basta ver o filme).

Achei interessante (e veio muito a calhar) que você tenha "sublinhado" este trecho (aqui) e aqueles outros (na nota abaixo). Pois parece (eu já havia notado isso) haver uma contradição entre eles, mas não há - e talvez seja melhor que eu esclareça isso direitinho numa nota futura.

Obrigado pelos "recortes", que me ajudarão a fazer avançar o meu trabalho. Um afetuoso abraço!

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Alice, na verdade não há ironia alguma.

Eu vou defender o uso da palavra "produção" com dois argumentos diferentes.

Ainda que eu não seja um "reprodutor" ou "divulgador" do pensamento deleuziano, Deleuze é minha referência de base - ele e sua matilha de filósofos nômades. Assim, eu me preocupo em manter uma certa coerência terminológica com sua obra, não como uma tentativa de "fixar" ou "congelar" conceitos, mas para fazer saltar, ao longo da leitura, certas ressonâncias. E "produção" é uma das palavras-chave d'O Anti-Édipo, que é um texto de Deleuze e Guattari que eu gosto de fazer ressoar nesta "redefinição de cultura" (como dissestes muito bem). É um uso deliberado, um uso intensivo e intencional ao mesmo tempo, pelo qual eu quero fazer um texto "passar" pelo outro (o eterno retorno), para além de todas as "referências" acadêmicas.

Por outro lado, os gregos faziam uma distinção entre techné e póiesis que é bem conhecida e à qual eu não preciso retornar. Téucho e poiéo, os respectivos verbos, são ambos traduzidos por "produzir". Você, ao ler a palavra "produção", se atém unicamente a um desses sentidos, justamente aquele que - de fato - não faria sentido algum na expressão "ação do homem sobre o homem para produzir o homem".

Obrigado pela sua observação, ela também me fará avançar no meu trabalho. Seria interessante, de fato, chegar a colocar o problema da "produção do homem" via techné (via engenharia genética) e fazer notar o quanto é estúpido direcionar todos os nossos esforços para produzir um novo corpo quando ainda nem chegamos a produzir uma alma à altura do corpo (fantástico) que já temos.

Um forte abraço e até sempre!

13 de agosto de 2007 às 03:35  
Anonymous Anônimo disse...

Francisco, compreendo... e está perfeito!
Tenho a dar-te os meus sinceros parabéns e FORÇA, muita FORÇA e creio que vai ser fácil concluíres esta tua Obra, pois estás no ponto! O teu Pensar é admirável, é de uma enorme riqueza! Dá gosto ler o que escreves.
Continua! Sabes que me identifico com tuas ideias e às vezes é preciso relevar certos pontos, não em jeito de crueldade, sabes, pois, mas passarei por aqui e irei dando os meus traços.
Com um grande e forte abraço, até SEMPRE.
Alice

14 de agosto de 2007 às 19:08  
Blogger ali_se disse...

... ah e não me podia esquecer que entre muitas das tuas ideias, acho importantíssima o desenvolvimento desta:

Seria interessante, de fato, chegar a colocar o problema da "produção do homem" via techné (via engenharia genética) e fazer notar o quanto é estúpido direcionar todos os nossos esforços para produzir um novo corpo quando ainda nem chegamos a produzir uma alma à altura do corpo (fantástico) que já temos.

Beijinhos

14 de agosto de 2007 às 19:18  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Alice querida, no texto sobre o filme "Primavera etc." eu faço uma distinção entre dois tipos de crueldade. E toda crueldade "produtiva" - aquela que me torna diferente de mim mesmo - será sempre muito bem-vinda. Eu disse e repito, todas essas intervenções me ajudam muito porque me indicam novos caminhos e/ou me obrigam a explicitar o que estou pensando.

Um forte e alegre abraço - e até sempre!

17 de agosto de 2007 às 07:24  

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