6.10.11

cogumelos (3)

Ok, reconheço que este blogue passou (ou está passando) por um momento, digamos, um tanto engraçado: OVNIs, cogumelos mágicos... Bem, esse é o resultado que obtemos ao olhar pela janela antes das seis da manhã e ao perder tempo lendo notícias em sites de baixa extração.

O mais curioso (ao menos para mim) é que eu havia programado uma segunda nota sobre cogumelos inteiramente diferente da que foi escrita. Mas acabei me deixando distrair pela pobreza extrema da notícia publicada no UOL, e assim nasceu a nota precedente.

E isso é curioso porque acabei perdendo inteiramente a vontade de escrever a nota originalmente prevista. Ao invés disso, farei um breve resumo para encerrar o assunto.

Embora que eu saiba que em termos bioquímicos ou farmacológicos seja possível classificar as substâncias ativas presentes nos cogumelos enteógenos como "drogas", creio que essa é a maneira mais empobrecedora de abordar o tema. Outra confusão freqüente, aliás extremamente comum, consiste em pensar que, fora do contexto dos ritos de uma sociedade tradicional, o consumo dessas substâncias será necessariamente "recreativo", ou seja, conduzido apenas pelo desejo de "experimentar novas sensações". Isso equivale a dizer que só é possível experimentar essas substâncias como devoto ou como tolo, e nada está mais longe da verdade. A ciência está conduzindo experimentações controladas? Pois bem, nada impede que experiências de outra ordem não possam dar excelentes resultados - por exemplo, envolvendo arte ou filosofia. Mas vou me abster de contar minhas próprias experimentações, que aconteceram há mais ou menos 25 anos. E antes que me acusem de fazer "apologia" de qualquer coisa, aqui vão uns tantos "conselhos": os cogumelos são capazes de nos mostrar o abismo de intensidade do qual fazemos parte, mas eu considero um equívoco recorrer a eles mais do que algumas poucas vezes. O grande "barato", se me permitem falar assim, está justamente em produzir em nós mesmos (por meio da arte, da ciência, da filosofia) a intensidade revelada nas experiências "enteógenas". Dito de outro modo, não creio que o misticismo gerado por essas substâncias seja superior ao misticismo gerado pelo estudo de biologia molecular. E, sobretudo, penso que o primeiro não deve, em nenhuma hipótese, substituir o segundo. Um cogumelo serve apenas para nos mostrar que a beatitude é tão real quanto as panelas de nossas cozinhas. Mas devemos conquistá-la por nossa própria conta.

3.10.11

cogumelos (2)

Ontem o UOL publicou uma matéria bastante semelhante, aliás extremamente semelhante, àquela que mencionei na nota anterior. Creio que pode ser interessante comparar as primeiras linhas dos dois textos, já que eles foram elaborados com base na mesma fonte, ou um a partir do outro:

Basta apenas uma grande dose do alucinógeno psilocibina, ingrediente ativo dos chamados "cogumelos mágicos", para provocar alterações de personalidade mensuráveis e de longo prazo, diz estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Segundo os cientistas, as mudanças aconteceram na área da personalidade conhecida como "abertura", associada a traços como imaginação, estética, sentimentos e ideias abstratas. As alterações nessas características pessoais foram verificadas em quase 60% dos 51 participantes do estudo e duraram ao menos um ano. (O Globo)

Uma única dose do alucinógeno psilocibina, o princípio ativo dos chamados "cogumelos mágicos", pode provocar uma mudança de personalidade permanente. A conclusão é de um estudo realizado por cientistas da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Os pesquisadores descobriram que os usuários ficaram com o que as pessoas chamam de "mente mais aberta" após o uso da substância. A característica envolve aspectos como imaginação, senso estético, sentimentos e ideias abstratas. A mudança foi detectada em 60% dos 51 indivíduos que participaram do estudo. (UOL Notícias)

Todos os grifos (em negrito) são meus. Pois bem: embora os dois textos pareçam dizer, essencialmente, a mesma coisa, as diferenças são substanciais. Em primeiro lugar, a locução "mudança de personalidade permanente" possui um quê alarmista que está ausente na locução "alterações de personalidade mensuráveis e de longo prazo", que é, digamos, bem mais suave. Além disso, o próprio fato da locução ter sido mal redigida ("mudança de personalidade permanente" ao invés de "mudança permanente de personalidade") ajuda a reforçar o tom alarmista da notícia do UOL, pois o leitor menos atento será levado a crer que existe algo como uma "personalidade permanente" que supostamente não mudaria por si mesma, mas que no entanto seria "mudada" (permanentemente?) pela ingestão da substância.

A segunda diferença é ainda mais gritante. Enquanto a notícia d'O Globo fala de uma área de personalidade conhecida (pelos cientistas) como "abertura", a matéria do UOL diz que os usuários ficaram com o que as pessoas chamam de 'mente mais aberta'. Aqui temos, de um lado, uma noção científica, aliás bastante interessante, e de outro, uma noção absolutamente vaga cuja origem é vagamente atribuída às "pessoas".

Ao contrário das duas primeiras, a terceira diferença é bastante engraçada. A matéria do UOL omite o "quase" quando menciona a porcentagem de pessoas que sofreram alterações após a experiência, o que nos deixa com exatamente 30,6 pessoas com alterações de personalidade - um número, convenhamos, bastante psicodélico.

Por fim, e aqui as coisas novamente perdem a graça, o UOL publicou em sua matéria a foto de cogumelos que eu (baseado em minhas experiências e em meus estudos) não reconheço  como enteógenos:


Seja como for, a mera publicação de uma foto (duvidosa) numa matéria tão superficial (e mal redigida) é preocupante em qualquer hipótese - seja ou não enteógeno o exemplar mostrado. Considerando-se que as páginas do UOL podem ser lidas por crianças, a publicação da foto é mais do que preocupante; é uma temeridade.

Para aqueles que desejam dar uma olhada nas prováveis fontes (em inglês) das notícias mencionadas, garanto que vale a pena o esforço. Também vou deixar aqui uma bibliografia básica sobre o tema:

* Peter Furst. Alucinogênios e Cultura, Ulisseia, Lisboa, s/d. Ótimo livro introdutório. Pode-se encontrar para download o original (Hallucinogens and Culture) em PDF.

* Peter Furst (org.). Flesh of the Gods - The ritual use of hallucinogens, Waveland Press, Illinois, 1990 (1972). Coletânea clássica de artigos de vários pesquisadores.

* Valentina Pavlovna Wasson  & Gordon Wasson. Mushrooms, Russia and History, Pantheon Books, New York, 1957. Um dos primeiros trabalhos de Wasson (e de sua mulher), do qual foram tirados apenas 512 exemplares e que pode ser comprado por uma quantia entre três e seis mil dólares. Por sorte, é possível baixar uma versão PDF desse livro aqui.

* Gordon Wasson. Soma: Divine Mushroom of Immortality (Ethno-Mycological Studies), Harcourt Brace Jovanovich, 1968. Célebre estudo no qual Wasson identifica o cogumelo Amanita Muscaria (que é venenoso se ingerido in natura) como sendo o divino Soma dos Vedas.

* Gordon Wasson. El hongo maravilloso Teonanácatl - Micolatría en Mesoamérica, FCE, México D.F., 1993. Neste livro Wasson mescla "trabalho de campo" e pesquisa histórica.

* Gordon Wasson et alli. The Road to Eleusis - Unveiling the secrets of the Mysteries, North Atlantic Books, Berkeley, 2008. Livro dedicado ao uso de enteógenos entre os antigos gregos.

* Gordon Wasson et alli. Persephone's Quest - Entheogens and the origins of religion, Yale University Press, New Haven and London, 1986. Ensaios sobre a influência dos enteógenos em diversas religiões.

* J.R. Irvin & Jack Herer. The Holy Mushroom - Evidences of Mushrooms in Judeo-Christianity, Gnostic Media, 2009. Apresentação e comentário dos argumentos de Gordon Wasson e de John M. Allegro na polêmica a respeito do uso de cogumelos na cultura judaico-cristã.

ADENDO (3/10/2011, 14:15)

Pouco depois de escrever esta nota, adicionei um comentário na matéria do UOL a respeito da publicação da imagem. O comentário foi censurado pelo moderador e não foi publicado.
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