31.8.07

30.8.07

imodesto

Del hijo y del matrimonio

Tengo una pregunta para ti solo, hermano mío: como una sonda lanzo esta pregunta a tu alma, para saber lo profunda que es.

Tú eres joven y deseas para ti hijos y matrimonio. Pero yo te pregunto: ¿eres un hombre al que le sea lícito desear para sí un hijo?

¿Eres tú el victorioso, el domeñador de ti mismo, el soberano de los sentidos, el señor de tus virtudes? Así te pregunto. ¿O hablan en tu deseo el animal y la necesidad? ¿O la soledad? ¿O la insatisfacción contigo mismo?

Yo quiero que tu victoria y tu libertad anhelen un hijo. Monumentos vivientes debes erigir a tu victoria y a tu liberación.

Por encima de ti debes construir. Pero antes tienes que estar construido tú mismo, cuadrado de cuerpo y de alma.

¡No debes propagarte sólo al mismo nivel, sino hacia arriba! ¡Ayúdete para ello el jardín del matrimonio!

Un cuerpo más elevado debes crear, un primer movimiento, una rueda que gire por sí misma, - un creador debes tú crear.

Matrimonio: así llamo yo la voluntad de dos de crear uno que sea más que quienes lo crearon. Respeto recíproco llamo yo al matrimonio, entre quienes desean eso.

Sea ése el sentido y la verdad de tu matrimonio. Pero lo que llaman matrimonio los demasiados, esos superfluos, - ay, ¿cómo lo llamo yo?

¡Ay, esa pobreza de alma entre dos! ¡Ay, esa suciedad de alma entre dos! ¡Ay, ese lamentable bienestar entre dos!

Matrimonio llaman ellos a todo eso; y dicen que sus matrimonios han sido contraídos en el cielo.

¡No, a mí no me gusta ese cielo de los superfluos! ¡No, a mí no me gustan esos animales trabados en la red celestial!

¡Permanezca lejos de mí también el dios que se acerca cojeando a bendecir lo que él no ha unido!

¡No me os riáis de tales matrimonios! ¿Qué hijo no tendría motivo para llorar sobre sus padres?

Digno me parecía a mí ese varón, y maduro para el sentido de la tierra: mas cuando vi a su mujer, la tierra me pareció una casa de insensatos.

Sí, yo quisiera que la tierra temblase en convulsiones cuando un santo y una gansa se aparean.

Éste marchó como un héroe a buscar verdades, y acabó trayendo como botín una pequeña mentira engalanada. Su matrimonio lo llama.

Aquél era esquivo en sus relaciones con otros, y seleccionaba al elegir. Pero de una sola vez se estropeó su compañía para siempre: su matrimonio lo llama.

Aquél otro buscaba una criada que tuviese las virtudes de un ángel. Pero de una sola vez se convirtió él en criada de una mujer, y ahora sería necesario que, además, se transformase en ángel.

He encontrado que ahora todos los compradores andan con cuidado y que todos tienen ojos astutos. Pero incluso el más astuto se compra su mujer a ciegas.

Muchas breves tonterías - eso se llama entre vosotros amor. Y vuestro matrimonio pone fin a muchas breves tonterías en la forma de una sola y prolongada estupidez.

Vuestro amor a la mujer, y el amor de la mujer al varón: ¡ay, ojalá fuera compasión por dioses sufrientes y encubiertos! Pero casi siempre dos animales se adivinan recíprocamente.

E incluso vuestro mejor amor no es más que un símbolo extático y un dolorido ardor. Es una antorcha que debe iluminaros hacia caminos más elevados.

¡Por encima de vosotros mismos debéis amar alguna vez! ¡Por ello, aprended primero a amar! Y para ello tenéis que beber el amargo cáliz de vuestro amor.

Amargura hay en el cáliz incluso del mejor amor: ¡por eso produce anhelo del superhombre, por eso te da sed a ti, creador!

Sed para el creador, flecha y anhelo hacia el superhombre: di, hermano mío, ¿es ésta tu voluntad de matrimonio? Santos son entonces para mí tal voluntad y tal matrimonio. –

Friedrich Nietzsche - Así habló Zaratustra


Os comentários para esta nota estão desabilitados porque ela é provisória e vai desaparecer dentro de alguns dias. Na verdade - e por estranho que possa parecer - ela se destina apenas à minha própria leitura e à de alguém que jamais a lerá.

28.8.07

Subo, e subo um pouco mais.
E ainda um pouco mais.
Passo a passo.
O ar se torna rarefeito.
E frio.
Mas eu não sinto frio.
Por dentro estou ainda mais frio.
Estou gelado.

Ainda sou aquele menino que quer salvar os homens.
Salvá-los de sua própria estupidez.
E agora trabalho por isso.
Mas estou gelado.

Já não procuro a mulher que haveria de esquentar meu peito.
Nenhuma teria calor suficiente.
Já não quero ter filhos.
Filhos meus, filhos dos outros, qual a diferença?
Já não quero plantar uma árvore.
As árvores sabem se virar sozinhas.
Já não quero escrever um livro.
Os livros se escrevem sozinhos.
Pingo após pingo.
Ruga após ruga.

Só quero é dizer o que vejo daqui.
(Apesar da miopia.)
As nuvens beijam minha face.
As maiores cidades são minúsculas.
Não há jornais ou tevês.
Não há semelhantes.
Não há calor humano.
Não há festas.
Não há diversão.
Aqui, vocês morreriam.

Aqui, a suprema alegria.

27.8.07

metafísica do pinball


1. A máquina e a mesa

A máquina de pinball é uma realidade física: duas caixas de madeira recheadas de parafernálias mecânicas, elétricas e (posteriormente) eletrônicas. Ela é montada por operários numa fábrica segundo determinadas instruções. Ela está submetida à segunda lei da termodinâmica, ela se gasta, se quebra, se corrompe. Ela pode ser consertada e restaurada com base em aportes externos. Ela é barulhenta e colorida.

A mesa de pinball é uma realidade lógica: um plano ou esquema que contém a localização precisa dos elementos do jogo e de suas funções. Ela é desenhada por engenheiros no papel ou no computador. Seu suporte físico está submetido à entropia, mas ela mesma não se gasta nem se quebra, e a partir dela pode-se gerar um número indefinido de máquinas. Ela pode ser modificada e dar origem a uma nova configuração. Ela é silenciosa e sem cor.

A máquina é concreta, a mesa é abstrata. Ou então: A máquina é a máquina concreta, a mesa é a máquina abstrata. Sem elas não haveria pinball; mas o jogo de pinball depende de alguma coisa que não é lógica nem física. O jogo de pinball é um certo desnível, uma certa diferença de potencial: uma inclinação que afeta a mesa e a máquina embora não pertença a nenhuma das duas. A inclinação pode até pertencer à mesa, mas apenas como uma instrução de montagem, e não como um dos elementos do jogo; ela pode até pertencer à máquina, mas como um puro acontecimento que a afeta como um todo, e não como mais um de seus componentes. A inclinação é nela mesma um quase-nada: nem coisa, nem idéia, nem imagem, nem palavra. Sem ela, no entanto, jamais se teria jogado uma única partida de pinball.

2. Metafísica do pinball

O pinball, reduzido à sua essência, é um desnível em função do qual a bola cai. A inclinação do plano submete uma esfera de aço aos apelos da força de gravidade: singelo acontecimento que não apenas torna possível o pinball, mas lhe dá um caráter épico.

O primeiro desafio é manter em jogo uma bola que invariavelmente cai e volta a cair: fazê-la dançar, zombar da gravidade até que a esfera percorra a trajetória fatal que a colocará fora do alcance. Ao tirar do jogo, uma a uma, todas as bolas, a força de gravidade produz entropia no sistema: máquina zerada, muda, inerte. Game over. Se cada bola é um lance de dados, a partida é a própria possibilidade de lançar os dados; mais do que tentar impedir que a bola caia, o jogador tem que se esforçar para ganhar bolas e/ou partidas extras. O segundo desafio, pois, é vencer a máquina, ou seja, vencer a entropia: fazer com que as bolas que se joga façam a bola retornar.

À diferença dos jogos de violência nos quais o único objetivo é sobreviver diante de uma pilha de cadáveres, o pinball é um jogo metafísico. Seus dois monstros abstratos, gravidade e entropia, são como o labirinto de Borges: muito mais implacáveis do que qualquer bicho-papão cuja figura assombra a imaginação das crianças. O pinball narra, a cada partida, duas batalhas correlatas e simultâneas que são os desafios do vivo e da própria vida: rodopiar intensamente até cair; e não cair sem antes produzir, no lance de dados, o retorno do próprio lance de dados.


triagem, 1/12/2004 e 3/12/2004

23.8.07

Mais um poema
sobre o mesmo tema?

Bendita seja a repetição
fruto do vosso ventre.

Mas e a repepetição?
Essa mata!
Se cuidem, filhinhos.
Olha o bicho-papão.
Neurose vai pegar!
A pica do destino é grossa
e dispensa lubrificantes.

Porto seguro?
Eu sou uma tempestade em alto mar.

Mas elas preferem o papai-mamãe que estais no céu, olhai por nós em todas as posições, agora e na hora de nossa pequena morte, mamem.

E enquanto os sombrios homens do poder têm lindas mulheres dóceis para lhes levar café e ficar de quatro, eu faço o meu solúvel, e faço na mão.

Pensando bem, não tenho de que reclamar. Meu café é bom e minha mão é cheia de toques.

E eu não trocaria minha frágil e breve vida por uma eternidade deles.

Logo, tudo está como devia estar. Nem uma cabeça de alfinete a mais, ou a menos.

Toda a merda que vocês fazem, são obrigados a engolir.

Então me digam se há ou não justiça. Diga para eles, Heráclito.

Leu correndo, sem prestar atenção? Mas isso também é justiça. Eu escrevi rápido mas li devagar. Ainda está escorrendo, cálido, espesso: calda de lírio sabor caramelo.

E o resto é silêncio na imensidão dos espaços infinitos.

Ou qualquer porra assim.

a cultura e a morte - nova série (5)

Há não muito tempo, eu disse que a produção não está implicada no amor, mas que o amor está implicado na produção. Hoje eu gostaria de refinar essa afirmação à luz da definição spinozista: "O Amor é a Alegria acompanhada pela idéia de uma causa exterior". Como essa definição implica a de alegria, não será inútil lembrar que Spinoza define esta como a "passagem de uma perfeição menor a uma perfeição maior". A alegria exprime um aumento da potência de agir e de pensar (assim como a tristeza exprime sua diminuição); a passagem a uma perfeição maior é justamente esse incremento de potência. E quando essa passagem do menos ao mais é acompanhada pela idéia de uma causa exterior, aí temos o amor.

A primeira coisa que salta aos olhos nessa definição de amor é que este exprime sempre uma passividade. Nesse sentido, amor e paixão são, a rigor (e a despeito dos bravos esforços dos filósofos de botequim), sinônimos. Não estou dizendo que todos os amores são iguais (ao contrário, eles são todos diferentes), e sim que as pretensas distinções entre amor e paixão são arbitrárias. Por definição, amar é padecer, ou seja, ser movido por uma causa exterior qualquer. Se me disserem que é muito melhor padecer de amor do que padecer de ódio, eu concordarei imediatamente; afinal, são as alegrias passivas do amor (ou paixões alegres) que nos aproximam da conquista de nossa potência de agir e de pensar; mas elas ainda são passivas, enquanto é precisamente a conquista dessa potência de agir e de pensar que está em questão na idéia de cultura. "Além da alegria e do desejo que são paixões, existem outros sentimentos de alegria e de desejo que se relacionam a nós na medida em que somos ativos." (Ética, III, prop. 58).

O Deus spinozista é muito diferente do Deus antropomórfico, concebido à medida de nossos medos e esperanças; e pode-se dizer que a definição de amor é um dos tantos marcadores dessa diferença. No spinozismo, é um absurdo dizer que Deus ama. Se Deus amasse, ele passaria de uma perfeição menor a uma perfeição maior em função de uma causa exterior, o que é nada menos do que um absurdo. Se quisermos nos referir ao sentimento que Deus experimenta, teremos que abdicar do termo amor em prol do termo beatitude. "Se a alegria consiste na passagem a uma perfeição maior, então a Beatitude deve ser o fato de que o espírito é dotado da própria perfeição." (Ética, V, prop. 33, escólio).

O que tudo isso tem a ver com a idéia de cultura? Aqui - é bastante óbvio, mas não custa avisar - eu deixo de ser um "comentador" de Spinoza para fazer de seus conceitos peças de uma outra máquina. Se essa distinção (entre amor e beatitude) parece-me decisiva, é porque seria insuficiente dizer que o amor está implicado nessa produção de si e de outrem que define a cultura: pois já não se trata mais de amor, e sim de beatitude. Eis aí o anunciado refinamento ou, se quiserem, a correção do que eu afirmei anteriormente. É muito fácil compreender esse ponto. O amor, por mais belo ou importante que seja, ainda exprime uma passividade; mas a alegria da produção, por sua vez, é necessariamente ativa. Ela nem mesmo implica, como o amor, a idéia de algo exterior, pois nós também produzimos a nós mesmos; e ainda quando ela implica a idéia de algo exterior (um filho, um leitor, em suma, um outro homem), já não se trata de extrair do objeto a alegria, e sim de produzir nele (e mais uma vez - é inevitável - também em nós mesmos) uma diferença, uma metamorfose, um aumento de potência. A beatitude da cultura é o grau extremo de realização diante do qual todas as outras alegrias e amores empalidecem - ainda que façam o maior estardalhaço e tentem se fazer passar pelo mais alto. Por certo que o amor é alegria e que a alegria nos aproxima da posse de nossa potência de agir e de pensar; mas o seu valor está precisamente nisso, em nos aproximar desse ponto de mutação em que deixamos de ser passivos e conquistamos a criação de nós mesmos e de outrem. Sim, o amor de fato é lindo; mas ele é algo de supremo apenas para o homem passivo, para o homem que só se sente vivo na medida em que se sente apaixonado. E não é escusado lembrar que os grandes amores ou paixões - pelas mulheres, pelo dinheiro, pelo reconhecimento, pelo poder - conduzem muito facilmente ao assassinato, à exploração e à guerra. Na cultura a violência das paixões dá lugar à crueldade do pensamento, mas essa crueldade é ainda dádiva, cultivo, cuidado; na cultura, as puras intensidades - signos, idéias - são de todos e de ninguém, e quem as passa adiante não se vê por isso privado delas.

Só as alegrias ativas, só a beatitude da criação - da ação do homem sobre o homem para produzir o homem - são eternas; e não se trata aqui da "eternidade de morte" de um culto ao passado, mas da eternidade de vida em que puras intensidades passam umas pelas outras e em que a vida se transmite de homem a homem. A cultura é o exercício supremo da potência.


( Vou parar por aqui, mas só porque estou no limite de uma intoxicação por cafeína. =)

18.8.07

Não me ame.

Não como o dedo ama o dedal
que por tempo o cobre
e depois é esquecido
no canto escuro
da gaveta inferior
da cômoda menor
do quarto de serviço.

Me ame como o nervo ama a carne
feito unha
ou não me ame.

17.8.07

a cultura e a morte - nova série (4)

Fahrenheit 451

"Ele dava forma ao mundo. Ele fazia coisas para o mundo."

Truffaut que me perdoe, mas também neste caso o livro é superior ao filme. Eu deveria me surpreender, mas o fato é que não me surpreeende que Bradbury tenha tocado em tantos pontos comentados aqui (entre outros, o tema da conversa - e até mesmo a fogueira que eu imaginei - estão ali.)

"Algum dia é possível que a carga que estamos carregando conosco ajude alguém. Mas mesmo quando tínhamos os livros à mão, há muito tempo, não usávamos o que obtínhamos deles."

Bingo.

"Dê às pessoas concursos que elas ganham lembrando-se das letras de canções mais populares, dos nomes de capitais ou de qual estado produz mais petróleo. É melhor entulhá-las de dados não combustíveis, entupi-las com tantas "informações" que elas se sintam enfastiadas, mas muitíssimo "brilhantes". Aí elas acham que estão pensando, ficam com uma impressão de estar em movimento sem se mexer. E ficarão felizes porque os fatos dessa espécie não se modificam. Não lhes dê coisas escorregadias como filosofia..."

Bingo de novo.

"Estava à procura de um fulgor, uma resolução, um triunfo sobre o amanhã que de algum modo parecia haver ali. Talvez ele houvesse esperado que os rostos daqueles homens ardessem e luzissem com o conhecimento que portavam, brilhassem como brilham as lanternas, com a luz que sai de dentro. Mas toda a luz proviera da fogueira do acampamento, e aqueles homens não pareciam diferentes de quaisquer outros que houvessem realizado uma longa corrida, uma longa busca, que houvessem visto coisas boas serem destruídas, e agora, muito tarde, estivessem reunidos para esperar o fim da festa e o apagar das luzes. Não estavam de modo algum seguros de que as coisas que traziam na cabeça pudessem fazer com que todas as madrugadas no futuro brilhassem com uma luz mais pura, não tinham certeza de nada, salvo de que os livros arquivados por trás de seus olhos serenos, de que os livros estavam esperando, com as páginas ainda não cortadas, pelos clientes que talvez viessem em anos vindouros, alguns com dedos limpos, outros com mãos sujas."

Como tudo isso contrasta com a evidente satisfação dos homens-livros do filme de Truffaut, tão orgulhosos, confiantes, quase heróicos, por serem os portadores do conhecimento... Tampouco existe, no livro de Bradbury, a correlação rígida entre "um homem, um livro". Os homens estavam ali, e "por trás de seus olhos serenos", os livros também - e isso é tudo. Pode-se dizer que Truffaut deu um toque muito francês à estória. Mas ele era jovem na época em que realizou o filme, e isso não pode ser esquecido.

"Meu avô está morto há tantos anos, mas se você abrisse o meu crânio, encontraria nas circunvoluções do meu cérebro as marcas fortes do seu polegar. Ele me tocou. Como eu já disse, ele era escultor. «Odeio um romano chamado Status Quo!», dizia ele. «Encha seus olhos de maravilhas», dizia, «viva como se fosse cair morto dentro de dez segundos. Veja o mundo. Ele é mais fantástico do que qualquer sonho feito ou adquirido a troco de dinheiro em fábricas. Não peça garantias, não peça segurança, isso é coisa que nunca existiu. E se existisse, seria semelhante a uma grande preguiça que passa o dia inteiro, todos os dias, pendurada de cabeça para baixo numa árvore, levando a vida a dormir. Ao inferno com isso», dizia meu avô. «Sacuda a árvore e derrube a grande preguiça no chão.»"

13.8.07

cenas bucólicas

Não se pode censurar uma vaca por gostar de capim.

a cultura e a morte - nova série (3)

Dogville e "Primavera..."

Há uma certa similaridade entre Dogville e "Primavera, Verão, Outono..." Neste último, a ênfase está no devir (retratado como ciclo) da cultura; Dogville, por sua vez, exibe a falência desse processo, que a própria protagonista, Grace, também encarna: pois ela se mostra, todo o tempo, incapaz de agir sobre os demais para exigir deles aquilo que exige com tanto rigor de si mesma (a dimensão ética). Obviamente, quando falta a cultura, ou seja, o adestramento das forças reativas, só se pode mesmo esperar barbárie, violência, escravidão e estupro. E é digno de nota que o único personagem de Dogville explicitamente preocupado com a cultura (Tom, o reformador moral) seja ainda mais canalha do que os outros: ele tenta levar à frente um processo que não realizou em si mesmo; ele é a triste paródia do mestre zen de "Primavera", palhaço moral e não homem (ou além-do-homem) ético. Tom Edison fala o tempo todo de "ilustração", de "exemplo", mas na verdade ele é que é o exemplo de uma Cultura falida porque entregue nas mãos do Estado e da Religião. Por um lado, sermões morais absolutamente inócuos, e por outro uma democracia que constitui (na melhor das hipóteses) o poder de um rebanho dominado pelas forças reativas. Dogville é, no fundo, o filme mais engraçado dos últimos tempos, mas talvez seja preciso vê-lo mais de uma vez para perceber isso. É como se Lars Von Trier dissesse: "Vejam em que grande merda nos metemos: deixamos a cultura se perder... E agora, que faremos? Matar todo mundo?"

P.S. - Eu gostaria de acrescentar o Capital como mais uma força que reclama para si (deturpando-o) o devir da Cultura: ainda que essa questão não me pareça ter sido explorada em Dogville. Ao contrário, o Estado e a Religião estão magnificamente retratados: a Igreja como lugar dos sermões de Tom, a Polícia obedecendo às ordens dos gângsters.

triagem, 21/05/2005

a cultura e a morte - nova série (2)

Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera.

Num grande filme cada detalhe faz sentido; é como se num filme desses fosse possível entrar por qualquer porta sem receio de cometer uma arbitrariedade. Entremos nesse, pois, pelo detalhe da caligrafia felina. Digamos que eu aceite a tese de que usar o rabo do gato como pincel foi uma crueldade. A meu ver aquilo não passou de um pequeno incômodo para o bichano, mas digamos que tenha sido uma crueldade. O que a diferencia da crueldade do menino que maltratava animais? É que esta - esta sim - era uma crueldade sem nenhum sentido: a não ser que aceitemos a tese de que o gozo de alguém basta para dar sentido à sua crueldade. O menino fez os animais sofrerem apenas para se divertir; ele extraiu seu prazer da dor alheia. Assim, o menino personificou melhor do que ninguém o Poder em estado puro. Pode-se pensá-lo como uma espécie de sobrevivente, pois permanecia de pé, com seus movimentos livres, enquanto fazia com que os animais se debatessem sob o peso das pedras. O Poder como pura arbitrariedade: o gozo com o sofrimento do outro, com a subjugação do outro. Estranho exercício da potência.

Já o mestre, ao contrário do que se disse, não era ali um agente do Poder, ele era um agente da Cultura. Aquela pedra ensinou ao menino - em caráter definitivo - a lição que ele precisava receber: aprenda a dirigir suas próprias forças, não faça de sua potência um Poder. Sim, a cultura é crueldade, mas uma crueldade absolutamente necessária, justamente o oposto da crueldade infantil que não tem outro critério senão seu próprio prazer. É por meio da primeira que se impõe limites à segunda. Sofrimento, produção de memória (do futuro), crueldade, foi assim que nos tornamos homens, e apenas assim poderemos ultrapassar o próprio homem, essa doença de pele da Terra.

Mas o trabalho de cultura ainda não havia chegado ao seu termo. O menino virou rapaz e, tomado pela paixão, reagindo aos traços de um amor que já não havia, fez o que fez. E o mestre sabia que o nosso ridículo sistema penal jamais seria capaz de ensinar ao rapaz o que ele precisava aprender: hora de baixar o cajado e de pendurar o moço, hora de fazê-lo escavar na madeira o Prajná-páramitá sutra.

Por fim, o rapaz torna-se homem e finalmente compreende que ninguém pode realizar melhor do que ele mesmo o trabalho da cultura; que ao invés de contentar-se com a mera memória (reativa) dos traços, ele deve produzir em si mesmo, mente e corpo, uma outra memória, voltada para o futuro. A um olhar distraído, esse filme pode parecer encerrado na lógica de uma cultura muito específica; mas ele na verdade está narrando à sua maneira, e a despeito de toda a sua especificidade "cultural", algo que é comum a todas as culturas e que remete à Cultura como potência, como ação do homem sobre o homem.

triagem, 15/03/2005

a cultura e a morte - nova série

Eu gostaria de comentar um belo filme de Truffaut, Fahrenheit 451, baseado no livro homônimo de Ray Bradbury. Para quem não viu, aqui vai o aviso: eu vou comentar justamente o final do filme.

Seu argumento é simples e muito bem bolado: numa sociedade localizada num futuro qualquer, os livros foram proibidos porque insinuam dúvidas e angústias, ou seja, porque fazem da vida um problema. Onde quer que livros sejam encontrados, eles são simplesmente queimados, e seus donos são submetidos a uma reeducação.

É um belíssimo filme que reflete belamente a época em que foi feito (1966) e que nem por isso se tornou datado. Ao contrário; além de possuir uma farta dose de intempestivo, ele antecipa muito de nossa própria época de forma assustadora. É um filme extremamente inteligente, e não se poderia esperar outra coisa da dupla Bradbury/Truffaut. A cena em que a esposa de Montag regozija-se por ter dado "todas as respostas certas" (00:19:10) num programa de TV (que bem poderia ter inspirado o criador do Big Brother) é um chute na boca do estômago de qualquer ser pensante.

Os dez minutos finais, porém, são um chute na boca do meu estômago. E sequer adiantaria trocar o ator que recepciona Montag na zona dos homens-livros, com seu rosto de homem culto absolutamente satisfeito consigo mesmo, por Tom Zé e sua genuína inquietação; pois é toda a concepção da coisa, desde a base, que pode ser considerada uma traição à cultura, por paradoxal que isso possa parecer. Sem dúvida é bela a idéia de que num mundo em que os livros fossem proibidos, alguns homens os decorassem para que (eles, os livros) pudessem sobreviver àquela idade das trevas. É uma bela alegoria, e eu recomendo Fahrenheit 451 para qualquer adolescente. Em certa medida é mesmo uma idéia poderosa, um elogio à resistência inteligente frente à estupidez de um poder onipresente e obscurantista. Mas assim que examinamos essa idéia à luz da concepção de cultura que estou tentando pensar aqui, ela se torna pálida e mesmo mortífera.

Não, eu não estou exagerando. Observem bem esses dez minutos finais. Homens e mulheres passeiam para lá e para cá recitando "seus" livros (ou melhor, os livros em que eles se tornaram), mas quase nada se passa entre eles. Não há, por exemplo, uma única cena em que todos se reúnam à volta de uma fogueira e recitem, com evidente prazer e emoção, ao menos suas passagens favoritas. Eles falam entre si, eles se comunicam e mui cordialmente, mas jamais conversam. Ao contrário, eles passeiam para lá e para cá recitando seus livros, indiferentes uns aos outros. Sim, os livros sobreviveram; eles se tornaram homens, assim como os homens se tornaram livros; mas nem os livros nem os homens queimam.

Também não se sugere, em nenhum momento, a idéia de que os próprios livros poderiam se misturar. Os livros, assim como os homens, estão isolados uns dos outros. Tal homem é O Príncipe, tal mulher é A República, e poderíamos apostar que cada palavra de cada livro foi decorada tal qual, como seria de se esperar do rigor de uma cultura européia; mas nenhum daqueles homens se apresenta assim: "Eu sou O Idiota, de Dostoiévski, enxertado com longas passagens do Trópico de Capricórnio e duas frases de Sade."

Pode-se argumentar, e não sem alguma razão, que se o propósito daquela morna comunidade era meramente salvar os livros da destruição, é pueril levantar uma crítica em relação à fidelidade daqueles homens aos livros em que eles se tornaram. Porém aqui é preciso pensar com a radicalidade de um Artaud, ou então desistir de vez de pensar: mas se todos aqueles livros não os livraram de criar uma sociedade que queima livros, será que não valeria a pena deixar que desapareçam de uma vez?

É óbvio que eu não sou a favor da desaparição dos livros; muito pelo contrário, sou a favor de sua multiplicação. Mas não é disso que se trata. Creio que aqui tocamos um ponto essencial do pensamento da Cultura: ainda que esta se beneficie da conservação e acumulação de conhecimento (memória), sua confusão com o conhecimento nele mesmo equivale à sua morte. A Cultura, a ação do homem sobre o homem, depende muito menos do conhecimento do que da capacidade de inventar ou reinventar problemas (pensamento). Em uma palavra, o conhecimento no máximo favorece (ou melhor, tende a favorecer) o pensamento, mas não pode jamais ser confundido com ele. "Muito saber não ensina a pensar", disse Heráclito. E eu posso escrever essa frase em grego, mas me digam, que diferença isso faria?

Se não fosse assim, poderíamos afirmar, em nossa arrogância de homens brancos e civilizados, que uma favelada sequer tem condições para criar seus filhos só porque jamais aprendeu a ler esses mesmo livros que nós colocamos numa espécie de panteão, mas que jamais nos livraram da miséria de nossa própria mesquinhez e impotência para pensar. E no entanto elas criam, em geral, homens muito melhores do que nós, ainda que eles não saibam falar ou escrever dentro das normas da chamada língua culta. E se alguns filhos das favelas são brutais, não podemos nos esquecer de que os nossos filhos queimam índios e batem em prostitutas. A morte da Cultura está em toda parte, mas eu me arriscaria a dizer que essa morte não é engendrada nas favelas, e sim nas Empresas, no Estado, nas Escolas e Academias, enfim, nos lugares pelos quais nós somos os responsáveis. Aliás, permitam-me dizê-lo, lugares pelos quais eles são responsáveis. Nunca fui empresário, governante ou professor.

Evidentemente, a diferença entre conhecimento e pensamento, essencial para o entendimento da Cultura, merece um tópico à parte, e eu já me estendi demais. Voltemos brevemente a Fahrenheit 451. Imaginem um homem daquele mundo que tivesse sua biblioteca queimada e fosse obrigado a ir viver na terra dos homens-livros. E ao ouvir a pergunta: "Que livro você decorou ou gostaria de decorar?", imaginem que ele respondesse algo assim: "Olá, eu sou A Cultura e a Morte, e estou me escrevendo a cada dia." Os homens-livros provavelmente o achariam louco, porém conservariam um silêncio educado, possivelmente acompanhado de um não menos educado sorriso: mas haveria uma frieza mortal naquele sorriso. Pensadores só são bons depois de mortos, quando finalmente podem virar objeto de conhecimento.

12.8.07

451 and beyond

Imagem do filme Nostalgia, de Tarkovski
(aqui não estão queimando os livros: o livro é que está queimando)

451



Imagens do filme Fahrenheit 451, de Truffaut

9.8.07

cultura, ética, vida

As vinte notas reunidas logo abaixo, publicadas inicialmente em triagem, são o resultado de um esforço para pensar a cultura, entendida como ação do homem sobre o homem para produzir o homem (e, quem sabe, o além do homem). Há ainda dois textos relativos ao tema (escritos a propósito dos filmes Dogville e Primavera, Verão, Outono, etc.) que eu irei republicar aqui - e talvez ainda outros, esparsos, dos quais eu já me esqueci.

O tema da cultura, tal como eu a defino (inspirado na segunda dissertação da Genealogia da Moral e em certos trechos de Nietzsche et la philosophie), tem sido nestes últimos dois anos uma obsessão para mim. Trata-se, a meu ver, de um tema tão essencial que eu tenho encontrado alguma dificuldade para germinar estas simples notas e escrever algo, senão mais sistemático, de maior fôlego. Eu simplesmente não posso errar o alvo e essa responsabilidade me paralisa.

Em primeiro lugar, essa "redefinição" do termo cultura me leva ao centro de um debate que me é caro: aquele que opõe ética e moral. Para mim é bastante evidente que a cultura como tal remete a um esforço ético que nada tem a ver com as limitações morais. Pois a ação do homem sobre o homem para produzir o homem, quando bem sucedida, tem como resultado a produção de um homem que produz a si mesmo. Ora, um homem que produz a si mesmo ultrapassou necessariamente as preocupações meramente sexuais, digestivas e simbólicas que poderiam fazer dele um perigo para os seus semelhantes. Certamente que esse homem trepa, almoça e não recusa um elogio ou outro, mas sua vida já não é mais regida pela genitália, pelo estômago ou pelo desejo de reconhecimento. Ele descobriu um plano em que só existem signos e afetos como puras intensidades. Que erro ter dito o "e". Seus signos se tornaram puras potências afetivas ao mesmo tempo em que seus afetos não são mais reprimidos, mas conquistaram a dimensão do signo como dádivas intensivas num campo social dado.

E é essa relação de si consigo mesmo, é essa ação do homem sobre si mesmo que o habilita a entrar por sua vez no movimento da cultura, ou seja, a tornar-se um agente da cultura. Mais do que a realização de um "ciclo", trata-se da transmissão de um movimento. Sabemos muito bem, e por experiência, como é patético o homem que jamais se deu ao trabalho de fabricar a si mesmo (ou que fez um trabalho pela metade) e que ainda assim crê ter o direito de fabricar outros homens. (Pensemos, por exemplo, no personagem Tom, de Dogville). Afinal, é precisamente aí, na vigência dessa hipocrisia essencial, que a lei moral toma o lugar do cultivo ético: a palavra de ordem usurpa a cultura da alegria e do entendimento, da alegria e da visão. Erro fatal, erro milenar pelo qual pagamos - e muito caro - até hoje. Não existem "falsos moralistas". A moral é que é, nela mesma, essencialmente falsa: uma violência permanente. A essa violência moral, o homem da cultura opõe a crueldade ética, que não visa a obediência a leis ou a realização de uma essência, mas tão somente a conquista de uma potência - humana e mesmo sobre-humana.

Por outro lado, e eis aqui um ponto um tanto surpreendente, o pensamento da cultura, tal como vem sendo definida aqui, acaba levando a uma espécie de identificação entre cultura e vida. Esse ponto é abordado no último tópico da série (cultura e sexo), que sugere uma passagem da dimensão ética para a dimensão ontológica (se é que existem realmente duas dimensões distintas). Pode-se esboçar essa identificação com a seguinte fórmula: a vida é a ação do vivo sobre o vivo para produzir o vivo. E nem mesmo podemos dizer que os unicelulares assexuados, formas primitivas de toda vida, são uma objeção a essa fórmula, pois já vimos que a cultura supõe em seu movimento a ação de si sobre si mesmo.

Mas esse trabalho terá que ser deixado para mais tarde. Por ora, tudo é esboço. Eu gostaria de encerrar esta já longa nota com uma observação no mínimo curiosa. Aliás, diga-se de passagem, é por causa desse tipo de observação (que estou prestes a fazer) que eu me vejo cada vez mais longe da Academia. Pensar livremente me dá muito mais prazer do que ficar eternamente medindo palavras.

Qual é a palavra essencial do cristianismo? O amor. Aliás, para o cristianismo, o amor é um mandamento, ou seja, uma lei, uma obrigação (não custa notar que D. H. Lawrence escreveu um belíssimo conto em que Cristo se retrata a esse respeito: The man who died.) Muito bem. O amor. É sem dúvida uma bela mensagem, mas um tanto vaga. Há muitos amores preguiçosos, indulgentes - e há inclusive amores que matam. Perdoem-me o termo, mas muita merda já se fez em nome do amor. E eu creio que o problema essencial está aqui: o "amor" não implica necessariamente produção (de si ou de outrem). O amor, o amor é amor, o amor é amoroso, o amor é lindo - e nada mais. Estamos cheios de amor - mas a miséria (todo tipo de miséria) só aumenta. Assim, parece-me que é preciso dar um passo além: ultrapassar Cristo. Nietzsche disse que Cristo morreu jovem demais e que, tivesse vivido mais tempo, teria se retratado, pois era nobre o bastante para isso.

E, com efeito, o pensamento da cultura é muito mais poderoso e efetivo do que o amor cristão, pela simples razão de que o amor está implicado no produzir, mas o produzir não está implicado no amor. O homem da cultura, o homem que age sobre o homem para produzir o homem (e não para explorá-lo, violentá-lo, enchê-lo de obrigações e leis) é, por definição, um homem amoroso. Ele nem precisa mencionar o seu amor, pois está exercendo-o o tempo todo. Ele não precisa religar-se, pois já está ligado o tempo todo. Em uma palavra, aquilo que a religião promete (ou exige) como um ideal, a prática da cultura produz como uma realidade concreta. De um só golpe, nos livramos da água suja da moral e da religião e ainda resgatamos o bebê: a alegria e a inocência de produzirmos uns aos outros como a nós mesmos.

8.8.07

a cultura e a morte

A morte, definida como cessação do metabolismo de um corpo orgânico, não interrompe a corrente de ações que o atravessaram. Para pensar a cultura como potência é preciso escapar ao esquema de Freud segundo o qual a libido ora investe no eu, ora no objeto; afinal, investir o desejo na cultura é precisamente investir em fluxos intensivos para além do sujeito e do objeto. Nesse sentido, a cultura possui uma estreita relação com a morte, aqui entendida como a morte do próprio eu e de seus objetos simplesmente possíveis. A cultura é emissão de fluxos, fluxos de fala, de escrita, fluxos de sons e imagens, fluxos de signos que atravessam um campo social em todas as direções sem possuir um eu como origem ou tomar um objeto como fim. Nem causalidade nem finalidade, mas lances de dados intermináveis porque jogados numa mesa que reverbera ao infinito. A cultura, assim entendida, é a um só tempo a cura da má consciência do eu e do ressentimento face ao objeto: grande saúde que torna a pequena morte, a morte orgânica, um mero detalhe incontornável. Pode-se entender nesse sentido a afirmação de Spinoza segundo a qual podemos aumentar indefinidamente a proporção daquilo que é eterno em nossa alma, e sobretudo a de Bergson, segundo a qual a vida está no movimento que a transmite.

triagem, 05/05/2005

a cultura e a morte (2)

Pode causar espanto a idéia de que a morte orgânica, essa que apavora os passantes até nos mais ensolarados dias, seja não mais do que um pequeno acidente sem a menor importância. No entanto, desde o momento em que nos damos conta de que somos nada mais do que um lugar de passagem - quer em termos culturais, quer em termos orgânicos - esse temor imemorial perante a morte transmuta-se numa imperturbável serenidade. E talvez essa alquimia seja, em termos práticos, o propósito mais evidente da cultura: transformar um animal frágil e assustadiço em uma potência que não teme a própria morte. A finalidade da cultura não é a obra - ela mesma lugar de passagem - mas esse estranho animal que se percebe como um elo, entretanto único, insubstituível, de uma cadeia para além do orgânico. O Estado, a Religião e o Capital podem muito bem contentar-se com homens limitados, servis e bem comportados, ou ao contrário produzir seus heróis sedentos de glória; mas o produto da Cultura, o signo de seu êxito incontestável, é esse animal triunfante, vazio e radiante como a própria luz.

triagem, 06/05/2005

a cultura e a morte (3)

É o pequeno eu que teme pela sua morte e inventa para si sobrevivências morais, transmigratórias ou celestes. É ele que se compraz com o poder e o reconhecimento. É ele que mergulha nos jogos do capital para mascarar sua impotência absoluta. Mas o movimento da cultura não cessa de produzir a morte do pequeno eu. Ali onde transparece o a-fundamento e o afundamento do eu, a cultura é uma força viva; lá onde o eu triunfa, a cultura está morta ou claudicante, subjugada por forças de outra natureza. Não, a cultura não se exprime no conhecimento de nomes, formas e fórmulas, e sequer no conhecimento enquanto tal. Ao contrário, ela se exprime na conquista de uma potência que está muito além do eu e suas propriedades. Inversamente, esse homem soberano, criador, esse iluminado luminoso que é a finalidade da cultura só se torna possível se a cultura é uma força viva. Mas é isso que se apresenta no campo social capitalista? Seria o capitalismo a morte da própria cultura?

triagem, 06/05/2005

a cultura e a morte (4)

Pensar a morte da cultura é penetrar num circo de horrores virtual. Ou bem se é transportado para uma cena totalitária em que os elos da cadeia já não possuem nenhuma autonomia e em que toda ação - e o próprio pensamento como ação - é concebida como função de uma totalidade; ou bem imagina-se um cenário de dispersão desses mesmos elos, que já não agem senão em função de si mesmos e deixam de constituir um todo. Percebe-se aqui a clássica oposição entre a supressão totalitária do eu e sua exaltação no sistema capitalista. No caso totalitário a supressão do eu individual é correlata à exaltação de um eu coletivo: Estado, Raça, Classe, Povo, Nação; no outro, a exaltação do eu individual exprime a pulverização do campo social, curiosamente acompanhada por uma série de paródias (dos ideais totalitários) que funcionam como uma liga imaginária daquilo que está radicalmente desligado; a idéia de Família, por exemplo, tão explorada pela publicidade e tão venerada por aqueles que já notaram que o campo social caminha para uma dispersão absoluta e não são capazes de conceber nenhuma alternativa. Mas os exemplos de "ligas imaginárias" poderiam multiplicar-se ao infinito, pois onde reina a dispersão qualquer coisa pode funcionar como território: uma seleção ou time de futebol, um grupo de rock, um sala de bate-papo, uma comunidade no orkut...

triagem, 07/05/2005

a cultura e a morte (5)

Tal como foi descrita, a morte da cultura é um acontecimento de longa duração. Trata-se aí, no entanto, de um registro ainda muito molar, de um acontecimento de grandes proporções. Mas a vida da cultura acontece primordialmente num outro plano, microscópico, molecular, no plano das pequenas intervenções, das minúsculas ações do homem sobre o homem. A composição de uma sinfonia, a aula de geografia na escola e a palmada no traseiro de uma criança são, nesse plano, equivalentes. Nenhuma dessas ações que moldam a informe matéria humana pode ser considerada a priori como sendo mais importante do que a outra: afinal, a sinfonia em questão pode muito bem ser uma lástima, mas a aula de geografia e o corretivo podem ser essenciais na formação do sábio ou do compositor de amanhã. E tudo isso se torna ainda mais evidente se nos lembrarmos que a finalidade da cultura não é a obra mas o próprio homem (ou o além do homem). Assim, qualquer tia que dá aulas numa escola primária - e qualquer mãe - são tão importantes para o trabalho da cultura quanto um Beethoven ou um Spinoza.

triagem, 09/05/2005

a cultura e a morte (6)

Se a cultura vive nos acontecimentos mais comezinhos, é também neles que ela morre suas mil pequenas mortes. O compositor ruim, a tia entediada, mal preparada e mal paga, a mãe preocupada antes de mais nada com o seu emprego esmaecem a cultura lá onde ela deveria ser pura transmissão de vida. E este é, com efeito, um dos pontos mais essenciais no pensamento da cultura: esta não é apanágio de alguns, mas um movimento ou um trabalho pelo qual todos os homens, sem exceção, são responsáveis. Ser homem significa em primeiro lugar ser um agente da cultura. Ainda que alguns desses agentes, em função da potência de seu trabalho, irradiem suas ações mais longe no tempo e no espaço, é absurdo pensar que a cultura dependa somente deles. Ao contrário, trata-se de um emaranhado de signos em que as mais altas intensidades passam pelas mais baixas e vice-versa. Sim, só os graus extremos importam, mas isso não equivale a dizer que Nietzsche é mais importante do que uma tia, e sim que nenhuma tia deveria ignorar Nietzsche.

triagem, 09/05/2005

a cultura e a morte (7)

Obviamente, o trabalho de cultura depende acima de tudo do investimento de desejo de cada agente da cultura. Mas esse investimento se torna mais e mais penoso se esse esforço não encontra no campo social um terreno propício à cultura. Sim, a cultura morre um pouco toda vez que seu agente se apaixona por sua própria imagem e se toma como causa do movimento que o atravessa. Mas essa morte narcísica da cultura não é nada se comparada à sua morte mercantil. Quando o fluxo de signos é mediado por um fluxo de dinheiro, quando o acesso à cultura se confunde com o acesso aos bens de consumo em geral, subtrai-se a uma enorme parcela da humanidade as próprias condições de possibilidade de gozar dessa gigantesca corrente de signos. Afinal, o trabalho da cultura não termina na mãe, na tia e nem mesmo em Nietzsche. Cultura é invenção de novas possibilidades de vida, e isso se faz a partir do que se recebeu da mãe, da tia e de todo o pensamento humano ao qual somos capazes de nos abrir. Infelizmente, essa mercantilização da cultura é ainda um sintoma e mal dá uma idéia da potência de contracultura que o capitalismo exprime.

triagem, 09/05/2005

a cultura e a morte (8)

A burguesia nasceu revolucionária, negando os privilégios da aristocracia feudal. Suas palavras de ordem eram a acumulação de capital e o trabalho, o esforço produtivo: tempo é dinheiro. Mas hoje o capitalismo já está consolidado e globalizado, e o desafio é trazer para o mercado todos aqueles que, mantendo-se à margem, poderiam ameaçar o sistema. Assim, nos meios de comunicação de massa - os porta-vozes do capitalismo - a palavra de ordem é outra: viver é gozar e gozar é consumir. Ora, para consumir é preciso integrar-se ao sistema, é preciso, de um modo ou de outro, trabalhar. Mas o trabalho não pode ser absorvente demais, desgastante demais. Há que haver tempo suficiente para o gozo como consumo. O que nos primórdios era um elogio do esforço - da aplicação como investimento do desejo - tornou-se um elogio da lei do menor esforço, que encontra sua expressão mais acabada no mercado financeiro: não mais a aplicação como investimento de suor, mas a aplicação como produção de capital a partir do capital. Obviamente, um elogio não substitui o outro, e ambos coexistem no capitalismo atual (como já coexistiam desde o início): quem não tem capital investe suor. E para integrar ao sistema todos aqueles que estão à margem, o capitalismo promove uma captura de desejo que funciona em dois registros: a produção da falta - pela propaganda de mercadorias e serviços cada vez mais sofisticados - e a oferta de crédito. Como dizia Zaratustra, os últimos homens inventaram a felicidade.

triagem, 11/05/2005

a cultura e a morte (9)

Em latim, a palavra cultura remete primeiramente ao cultivo (agrícola). Em sentido figurado, ela remete ao cultivo do espírito. Por fim, ela remete ao culto no sentido de veneração. Cultivar implica esforço: preparar o terreno, selecionar as sementes, plantar e colher. Assim, se a cultura nada mais é do que a ação do homem sobre o homem, deve-se pensar essa ação como sendo um esforço (e mesmo uma crueldade) para produzir um homem capaz de esforçar-se. Um homem incapaz de esforço é incapaz de levar adiante a tarefa da cultura. Em certo sentido, ele sequer é um homem. Totalmente absorto em suas funções digestivas e sexuais, ele irá tomar o campo social como um simples meio para sua satisfação privada. Não é por uma razão moral qualquer que se deve repreender o homem que trepa com suas próprias filhas. Deve-se repreendê-lo, isso sim, porque ao invés de fazer com elas um esforço de cultura capaz de produzir os homens (as mulheres) de amanhã, ele está fazendo delas um mero objeto de seu gozo privado. Esse exemplo extremo mostra com muita clareza que o papel da cultura não é ensinar as crianças a ter prazer (algo que elas certamente aprenderão por sua própria conta), mas a esforçar-se. Ou então elas jamais aprenderão que o esforço pode proporcionar um gozo ainda mais intenso do que os prazeres digestivos e sexuais.

triagem, 11/05/2005

a cultura e a morte (10)

Não basta caracterizar a mercadoria como modificação da natureza, elaboração de uma matéria-prima. Sem dúvida a produção do objeto envolve a transformação de uma matéria qualquer, mas o que ela exprime, na verdade, é a cultura. Em outras palavras, o que as mercadorias - os objetos materiais resultantes do trabalho humano - exprimem é a ação do homem sobre o homem. Todo produto do trabalho é cultura: sangue coagulado, suor cristalizado, esforço materializado (que não seria ele mesmo concebível sem a cultura), mas também ação (virtual) sobre outro homem, trabalho da cultura e gozo latente. Quem produz um objeto age sobre si mesmo, modifica-se a si mesmo através de seu esforço. Quem consome esse objeto abre-se à ação de outro homem, e com isso também modifica-se a si mesmo. Por fim, quando produtor e consumidor coincidem, há uma ação sobre si mesmo mediada pelo objeto. Todo o esforço produtivo da humanidade - e não apenas o esforço "cultural" num sentido mais estrito - é cultura, ação do homem sobre o homem.

triagem, 17/05/2005

a cultura e a morte (11)

Assim como o amor (embora tenha nele sua verdade) não se esgota no ciúme, a conversação não se esgota nos signos mundanos. Se há uma arte da conversação como observação de regras mundanas, há também a conversação como arte, como transmissão de signos da arte. Todos os pedantes o sabem à sua maneira. Mas a cultura autêntica está menos na transmissão desses signos do que em seu embaralhamento. Não apenas o embaralhamento dos signos da arte entre si, mas sobretudo o embaralhamento destes com os signos mundanos e amorosos. Não apenas o exercício do esforço que os signos da arte exigem, mas o exercício de uma passagem contínua entre distintos graus de esforço: da maior concentração ao maior relaxamento (a gargalhada). Passar do mais sublime ao mais rasteiro, e sobretudo fazer passar um pelo outro: a conversação como arte carnavalesca. Aqui a memória perde sua função soberana: lembrar os signos da arte, e até rememorar amores e acontecimentos, sim, mas sobretudo esquecer os limites, passar as intensidades umas pelas outras, embaralhar os signos. Talvez esteja na conversação, assim entendida, a mais inocente revolução pedagógica: ao invés da rigidez dos "conteúdos" (a falta de afeto do fato), a deriva flexível e alegre da conversação como arte.

triagem, 06/06/2005

a cultura e a morte (12)

If nature has made any one thing less susceptible than all others of exclusive property, it is the action of the thinking power called an idea, which an individual may exclusively possess as long as he keeps it to himself; but the moment it is divulged, it forces itself into the possession of every one, and the receiver cannot dispossess himself of it. Its peculiar character, too, is that no one possesses the less, because every other possesses the whole of it. He who receives an idea from me, receives instruction himself without lessening mine; as he who lights his taper at mine, receives light without darkening me.

Se a natureza fez alguma coisa menos suscetível de propriedade exclusiva do que todas as outras, ela é a ação da potência pensante chamada idéia, que um indivíduo pode possuir com exclusividade desde que a guarde para si; mas a partir do momento em que ela é divulgada, converte-se na posse de cada um, e o receptor não pode despossuir-se dela. Seu caráter peculiar, além disso, é que ninguém a possui menos, pois cada outro a possui por inteiro. Aquele que recebe uma idéia de mim recebe instrução para si sem com isso diminuir a minha; tal como aquele que acende sua vela na minha recebe luz sem por isso mergulhar-me na escuridão.

Thomas Jefferson, carta a Isaac McPherson (13 de agosto de 1813).

triagem, 23/06/2005


a cultura e a morte (13)


contracultura (proibição de exibição de dvs em escolas e prisões)
triagem, 23/06/2005

a cultura e a morte (14): viva o copyright

Pensando bem, o conceito de copyleft é desnecessário. O que se tem que fazer é aprofundar a compreensão do conceito de copyright. O direito sobre a cópia, que cabe ao autor, pode (e deve) continuar proibindo a pirataria comercial ou a falsa atribuição de autoria. Mas o direito à cópia deve ser consagrado como um direito inalienável de todo homem. Se um homem fez e publicou, cada outro tem o direito de saber.

A computação e a Internet tornaram possível essa mudança conceitual. Que o copyright do autor continue valendo em relação à atribuição de autoria e à venda do seu trabalho. E que passe a valer o copyright do homem qualquer em relação aos produtos culturais. Não, as duas coisas não são inconciliáveis; ao contrário, esse esquema favorece tanto o produtor quanto o consumidor de cultura. O autor ganha divulgação, mercado latente, e os homens ganham acesso ao que é dos homens.

A meu ver, esse é o problema mais relevante dos próximos vinte anos. Se o capitalismo não mudar de natureza a ponto de absorver esse comunismo latente, continuará sendo uma potência de contracultura e morte. E essa (pequena?) revolução não depende de politicalha, ela depende, ao contrário, do inocente gesto anônimo de publicar. A internet é a ação do homem qualquer sobre o homem qualquer.

triagem, 24/06/2005


a cultura e a morte (15)

Como vimos, a palavra cultura remete ao cultivo (agrícola e do espírito) e ao culto (veneração). Cultivo e culto: essa ambigüidade do termo cultura reflete uma ambigüidade - absolutamente decisiva - do próprio devir da cultura. O autor extraordinário desperta gratidão e admiração: do esforço que ele soube realizar resultou um dom, uma dádiva, sua obra, criação por meio da qual podemos criar ou recriar a nós mesmos. Essa veneração que o autor extraordinário e sua obra atraem para si não deixa de ser benéfica ao movimento da cultura: pense-se em todos os jovens cuja respiração fica suspensa à simples menção de um desses grandes criadores e que em virtude dessa veneração irão dedicar-se com afinco ao estudo de obras que ainda são incapazes de entender plenamente. Entretanto, essa compreensão da cultura como culto é uma faca de dois gumes e possui uma contrapartida que pode ser mortal para a própria cultura. Todo culto é um culto ao passado, e ainda que esse passado seja concebido e mesmo vivido como presente, é de passado que se trata. Mesmo que esse passado acumulado seja - no sentido próprio da palavra - fundamental, não é nele que se irá encontrar seja a atividade, seja o sentido da cultura.

triagem, 24/07/2005

a cultura e a morte (16)

Se o passado é fundamento, o presente é fundação. Tudo se passa como se a cultura como culto (veneração) não passasse de um truque para atrair os jovens para o movimento da cultura. Mas esta é menos um fundamento do que uma fundação. Sem dúvida a fundação alimenta-se do passado, mas se existe algo como uma pedra de toque da cultura, ela não está no passado ou no culto ao passado. Pensar a cultura como fundação remete ao outro sentido da palavra cultura: o cultivo, ou seja, criação ou produção. Todo cultivo supõe uma realidade seminal: semente, esperma, óvulo, mundo dos não-nascidos, útero do que ainda não veio a ser. Tanto os revolucionários que pretendem abolir o passado quanto os conservadores que desejam viver nele erraram, de longe, o alvo; mas se o erro dos revolucionários é pueril, o erro dos conservadores é fatal para a cultura e para a própria vida. O culto à obra e ao autor extraordinários obscurece inteiramente o movimento da cultura (a fundação) e seu sentido: o fundado, o homem de amanhã ou o além do homem.

triagem, 27/07/2005

a cultura e a morte (17)

O homem da cultura diz: nós somos estúpidos: ainda não fomos longe o suficiente. Sequer somos homens; como ousaríamos sonhar com o além-do-homem?

O sacerdote diz: somos todos, irremediavelmente, pecadores.

Quando falta a crueldade ética da cultura, vinga a recriminação moral do sacerdote.

triagem, 22/08/2005

a cultura e a morte (18)

Segundo Bergson, há uma relação diretamente proporcional entre o movimento e a consciência. Renunciando ao movimento, os vegetais renunciaram também à consciência, que neles permanece adormecida, latente ou virtual. E algumas das mais belas páginas de Bergson são aquelas que mostram como os animais que se fecharam em carapaças ou se dedicaram ao parasitismo tiveram que pagar, pelas soluções que encontraram, o preço do adormecimento da consciência.

No entanto, é também Bergson que nos dá a pensar que uma consciência é tanto mais intensa quanto mais fluxos distintos consegue complicar em si mesma, e sobretudo, tanto mais intensa quanto mais ela consegue diferir de si mesma (a alteração puramente interna como grau máximo do movimento, "eu é um outro"). Assim, no caso dos homens, esses animais tão peculiares, pode-se conceber que alguém encerrado em sua cadeira de rodas ou prejudicado por uma doença degenerativa qualquer possa viver os mais intensos fluxos de consciência.

Ainda assim, e para além desses casos extremos que revelam o sucesso do trabalho da cultura, permanece válida a relação geral entre consciência e movimento. E talvez devêssemos nos perguntar, num mundo em que tudo é produzido para nos deixar inertes - os carros, as escadas rolantes, as televisões, todo o conforto sedentário da vida moderna - e também obesos - as massas, o açúcar, as delícias gordurosas - se não seria mais interessante inventar estratégias para fabricar um corpo movente. Não, não se trata de saúde, esse ideal moderno que substituiu a salvação. Trata-se de intensificação da consciência.

triagem, 02/09/2005

a cultura e a morte (hors numérotage)

O mundo da cultura (da ação do homem sobre o homem) supõe um delicioso paradoxo. Hoje sabemos que, ao contrário do que supunha boa parte da história da filosofia, o homem não pensa "naturalmente", e que o pensamento só pensa (só se põe em movimento) quando é forçado a pensar. Porém quanto mais o jovem se torna desconfiado e crítico em relação ao mundo da cultura, mais ele quer ter certeza de que "não será enganado" pelos seus agentes (professores, escritores, etc.) No entanto, esse jovem (por hipótese) ainda não pensa, e assim não tem como saber se o próprio agente da cultura pensa. Daí a importância por ele atribuída ao saber. Para o aluno em sala de aula qualquer nome francês ou alemão, por mais obscuro que seja, terá mais importância do que o homem que está em pé à sua frente. No nosso sistema de ensino, o professor ideal é apenas um "transmissor de conhecimento". Elephant talk. Os alunos provavelmente sairão dali sem ter aprendido a pensar, porém sabendo um monte de teorias, e provavelmente confundirão "saber um monte de teorias" com "pensar". Os professores, por sua vez, se sentirão muito cômodos repetindo teorias (pensar lhes traria muitas rugas). Esse sistema de ensino é o que Gregory Bateson chamou de "beijo da morte". Diante desse quadro, o pensador tem ao menos duas alternativas. Ele pode trabalhar os problemas por conta própria, diretamente, sem referir-se necessariamente aos outros pensadores que o forçaram a pensar aqueles problemas, mas nesse caso ele dificilmente se tornará um professor, e é provável que não seja levado a sério (se chegar a sê-lo) senão depois de morto; ou ele pode mascarar os "seus" problemas nas referências a outros autores, capturando assim o desejo daqueles alunos que têm "sede de saber" (pelas referências), mas também o desejo daqueles que querem pensar (pelos problemas neles mesmos). As duas saídas são igualmente vitais, mas a segunda é sem dúvida mais engenhosa, pois torna o pensador imune aos ataques dos que não suportam que se grite que o rei está irremediavelmente nu.

triagem, 17/02/2006

cultura e sexo

A vida humana poderia ser o seguinte: gozar uns dos outros. Gozar, isso não tem um sentido exclusivamente sexual. É um erro derivar a cultura da sexualidade (sublimação), pois pode-se afirmar precisamente o contrário. Todo ser pluricelular é nele mesmo cultura, cultivo, coletividade. São muitas vidas atualizando, em nível químico, molecular, o dom e o contra-dom. Onde o biólogo molecular vê um fluxo de enzimas - e é isso que se espera dele - o filósofo vê, e sem metáfora, um fenômeno de cultura.

Ou então seria preciso atribuir um novo sentido à sexualidade, tomá-la como uma potência de relação "em geral" ao invés de fechá-la no prazer local, no prazer de órgãos (ou organelas). Conversar é praticar o ato. Cultura e sexualidade seriam dois aspectos de uma mesma potência de relação: num mesmo movimento, a cultura deixa de ser "repressão" e "sublimação" para tornar-se produção de vida, e o sexo deixa de ser mera satisfação orgânica para tornar-se dom e contra-dom.

Nesse sentido, sexo é cultura e cultura é sexo. Até aqui eu vinha definindo cultura como "ação do homem sobre o homem para produzir o homem". Mas dois unicelulares sexuados não trocam informação genética sem ao mesmo tempo produzir um ato de cultura: uma ação da célula sobre a célula para produzir a célula. Na trepada de unicelulares há comunicação, coletivização, integração a um todo em devir permanente, e acima de tudo, a criação conjunta de algo novo. Não deixa de ser surpreendente que esses termos remetam indiferentemente à cultura e ao sexo, pois estamos acostumados a perceber cultura e sexo (ou cultura e natureza) de maneira dualista. Não existe cultura, por um lado, e sexo, pelo outro. O que existe é uma mesma potência de relação que une corpos para produzir novos corpos, e almas para produzir novas almas.

Torna-se inevitável invocar a noção de diferença de potencial. Não é o filósofo que se mete num domínio que "não é o dele" quando invoca uma noção científica, é a ciência que não pode, em primeiro lugar, delimitar de antemão o alcance das noções científicas que ela inventa. A noção de diferença de potencial aplica-se igualmente (isto é, rigorosamente e sem metáfora) aos fluxos moleculares, baseados em disparidades químicas, e aos fluxos de signos e idéias num campo social, baseados nas disparidades entre as gerações mais velhas e as mais novas e em outras disparidades ainda mais profundas.

A vida humana poderia ser isso. Mas não queremos gozar uns dos outros, queremos gozar uns nos outros. Ao invés de produzir um campo social de gozo coletivo, somos produzidos num campo social de miséria coletiva, e não é à toa que enlouquecemos. Somos ensinados a explorar, a usar e consumir aquilo que nos cerca, a viver em função de meios e fins ao invés de viver em função de uma produtividade, ensinados a separar a força do outro do que ela pode ao invés de produzir algo no encontro. E a propaganda nos ordena o gozo, mas ninguém nos explica que o gozo é da ordem da produção e não da ordem do consumo. O sistema capitalista não é apenas contranatura, ele também é contracultura, e no pior dos sentidos. A cultura, tal como o sexo, exige tempo, esforço, cooperação, cultivo, dom. A vida é a arte do arrepio, a arte de produzir signos e carícias.

triagem, 28/08/2006

5.8.07

negação das forças reativas

"O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.

Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto."

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Companhia de Bolso, 2006, p. 259.

quando o óbvio dá o que pensar

"O principal sistema operacional usado ao longo deste livro é o Microsoft Windows, e não apenas porque ele é em geral o sistema operacional mais popular. Sua adorável alternativa de código aberto, o Linux, é muito menos relevante do ponto de vista da engenharia reversa precisamente porque o sistema operacional e a maior parte dos programas que rodam nele são de código aberto. Não faz sentido nenhum reverter produtos de código aberto - simplesmente leia o código, ou melhor ainda, faça perguntas ao seu desenvolvedor. Não há segredos."

Eldad Eilam - Reversing: Secrets of Reverse Engineering, Wiley, 2005.
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