30.8.17

O desertor (uma breve análise de texto)

Ninguém chama um canadense que vai morar na Espanha, ou um uruguaio que vai morar na França, de "desertor". Mesmo que nunca mais retornem a seus países de origem, eles serão chamados de "imigrantes".

"Desertor" é um termo pejorativo: diz-se desertor, segundo o Houaiss, do militar que é culpado de deserção, e também do indivíduo que "abandona suas convicções, seu compromisso ou a causa de que era defensor". Sinônimo: trânsfuga.

Mas se é assim, por que a Folha de São Paulo insiste em chamar alguém que não é militar, mas professor universitário, de "desertor"?




Nesse caso, se achássemos que o termo "imigrante" não descreve com exatidão o status do professor Kim no país que o acolheu, teríamos à disposição termos como "fugitivo", "dissidente" ou mesmo "refugiado". Aliás, os termos "fuga" e "fugitivo" foram utilizados na reportagem (uma vez cada), bem como o termo "dissidentes" (também uma única vez).

Mas o repórter deu preferência e destaque aos termos "desertor" e "desertores", que, ao todo, são mencionados cinco vezes (no título e no corpo da matéria). E, ao usar esses termos sem nenhuma parcimônia (a reportagem tem menos de duas páginas de texto), ele demonstra claramente seu alinhamento com o regime norte-coreano, aquele mesmo que se compraz em ameaçar o mundo com uma terceira guerra mundial e (segundo a denúncia do professor Kim) lucra anualmente 3 bilhões de dólares praticando extorsão digital.

Ao que tudo indica, nossos amigos sul-coreanos são um tanto ingênuos: o repórter, que logo no início da matéria dá pistas sobre a dissimulada localização do escritório da ONG fundada pelo professor Kim (que até hoje "diz receber" amáveis presentes de seu país de origem, como facas e machados), viajou a convite do Ministério da Cultura, Esporte e Turismo da Coréia... do Sul.

24.8.17

Do consumo como instrumento de reivindicação política

Há quem pense que apenas uma revolução "francesa", ou seja, sangrenta, seria capaz de sacudir o status quo da política politicalha brasileira.

Grande bobagem.

Certa vez pensei numa solução que, na época, era irrealizável, mas que hoje, na era das redes sociais, me parece um pouco mais plausível.

O que faz o Estado quando quer educar o cidadão? Mexe no seu bolso, aplicando multas.

E o que pode fazer o cidadão para educar o Estado? Mexer no seu bolso, ou melhor, no bolso daqueles grupos que sustentam a economia e, portanto, o Estado e os políticos.

Como? Com depredações? É claro que não. Basta combinar nas redes sociais: enquanto o corrupto "X" ou "Y" estiver no exercício de seu cargo, ninguém, no país inteiro, comprará um único carro. Ou um único refrigerante. Ou ambos. Poderia ser feita uma lista de vários produtos, mais ou menos supérfluos, dos quais (ou de cuja troca) não seria tão difícil assim abrir mão por uma, duas, três semanas.

Essa queda de braço seria invariavelmente ganha pelos cidadãos-consumidores. A pressão dos empresários sobre os políticos seria enorme, e estes se veriam forçados a encontrar rapidamente um meio legal de defenestrar os alvos da "operação".

Obviamente, a eficácia desse tipo de ação dependeria, em proporção direta, da intensidade da indignação popular em face de "X" ou "Y". Mas, naqueles raros casos em que houvesse algo próximo a uma unanimidade, veríamos quem é o rabo e quem é o cachorro.


18.8.17

Nietzsche, Marx e Freud

Tendo Spinoza como precursor, Nietzsche, Marx e Freud questionaram a soberania da consciência. Se quisermos considerar o plano da vida (e não apenas o plano do homem), podemos acrescentar Darwin a essa lista.

Entre eles, o "caso" mais complexo é o de Nietzsche. Feita a ressalva, ponhamos esse pormenor "entre parênteses" e tomemos apenas o que esses pensadores têm em comum: a descoberta de uma dimensão inconsciente. Essa descoberta prolongou-se no estruturalismo, que renovou a lingüística, a antropologia e a psicanálise.

Farei aqui umas poucas perguntas, a título de provocação. Se o neurótico é um joguete de seu inconsciente, "quem" decide ir ao psicanalista ou, ao contrário, decide continuar repetindo seu sintoma?

Se o explorado é um joguete de um determinado modo de produção e de uma determinada estrutura de classes, "quem" decide entrar para o partidão, ou, ao contrário, assumir a defesa da ordem existente?

Se o homem é um produto da aliança das forças reativas com a vontade de nada, "quem" logra produzir a transmutação (aliança das forças ativas e da vontade afirmativa) para superar o homem?

Se, como querem Deleuze e Guattari, o inconsciente é produtivo (e não, como em Freud, uma peça de teatro), "quem" dirige a produção?

O que está em questão aqui é o velho e sempre renovado (mas também sempre questionado) conceito de liberdade. Nada aqui é simples ou fácil, pois é preciso dar um passo à frente (e não um passo atrás, reabilitando a velha consciência soberana). Mas algo me diz que, sem reintroduzir (ainda uma vez) os conceitos de liberdade e de responsabilidade no jogo filosófico, não teremos sequer uma chance de evitar o desastre.

* * *

Dizer que "a sociedade cria monstros" é negar a liberdade dos indivíduos que compõem a sociedade em questão, é subtrair deles qualquer responsabilidade que poderiam ter na produção de si mesmos, é retirar-lhes todos os resquícios de dignidade.

Se esse raciocínio é, por princípio, ruim, suas conseqüências são ainda piores. Afinal, se é "a sociedade" que "cria monstros", então bastará mudar a sociedade para, automaticamente, produzir um novo homem. Não seria essa a essência do totalitarismo? 

Nunca faltarão ideólogos, sejam eles de esquerda, de direita ou do que quiserem, para dizer que as boas regras de seus livrinhos criarão uma nova sociedade, que por sua vez criará um homem novo. Não podemos impedir o surgimento desse tipo de coisa. Mas está em nosso poder deixarmos de ser  retardados que preferem atribuir a outrem a responsabilidade pelo seu próprio retardamento.


4.8.17

Crise política 4: considerações finais?

Numa postagem anterior eu listei algumas sugestões para uma reforma política: parlamentarismo, voto distrital, fim do voto obrigatório, candidaturas independentes, austeridade das campanhas (debate de idéias em vez de espetáculo), criação de fóruns virtuais com participação livre dos cidadãos. Faltou mencionar, entre outras coisas, a volta de uma cláusula de barreira e o fim do foro privilegiado.

O sistema proporcional, que faz com que ilustres desconhecidos, mesmo tendo recebido pouquíssimos votos, sejam eleitos para os órgãos legislativos, tem como único objetivo assegurar o poder das quadrilhas. No fundo, o beneficiário do voto não é o candidato, mas a quadrilha. Como tantas outras coisas neste país, esse sistema foi feito para não dar certo. A não ser, é claro, para os interessados de sempre. O mesmo se aplica ao foro privilegiado.

A situação brasileira é tão grave que às vezes me passam pela cabeça idéias estranhas. Por exemplo, escolas para políticos. Disciplinas? Noções essenciais de economia, direito, administração pública e... política. Ética ou Filosofia? Seria pedir demais. O Brasil não está preparado para tanta sofisticação.

Não estou dizendo algo autoritário do tipo "apenas gente com diploma deveria concorrer". Ao contrário, estou propondo que todos os postulantes a cargos públicos, seja qual for sua formação escolar ou acadêmica, tenham de se submeter a cursos básicos de preparação para o exercício do cargo. Candidatos com diploma de nível superior, ou mesmo pós-graduação, também teriam de fazer o curso. Valeria para todos. Talvez fosse possível abrir algumas exceções: por exemplo, isentar da disciplina de Economia os formados em Economia, e assim por diante.

Assim, a massa de candidatos estaria um pouquinho mais nivelada e preparada para o debate legislativo e para a prática da administração pública. Afinal, se todas as profissões exigem algum tipo de formação, como pode ser que políticos possam legislar e tomar decisões que afetam a vida de milhões sem qualquer tipo de preparação prévia?

Políticos que rejeitassem uma proposta como essa já me pareceriam suspeitos de antemão. Se eles não estiverem dispostos a dar ouvidos a uns poucos professores pelo breve período, digamos, de um ano, não seria legítimo perguntar se eles realmente estariam dispostos, posteriormente, a dar ouvidos aos seus eleitores?

O amigo leitor poderá fazer questão de lembrar-me de que não é preciso cursinho para aprender a conspirar, roubar e mentir, e que, portanto, políticos não precisam aprender coisa nenhuma.

Eu provavelmente responderia que oito anos de inelegibilidade são muito pouco, e que não deveria haver uma segunda chance.

E depois ficaria em silêncio. É cada idéia besta...

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