27.2.07

a aspereza das esferas (canção para o homem médio)

1.

Se dermos um peixe a um homem,
ele matará sua fome.
Se o ensinarmos a pescar,
ele venderá todos os peixes do mar
até não sobrar nenhum.

2.

Por isso eu não ensino nada
que você possa vender.
As teorias dos sábios
e dos amigos da sabedoria
eu as guardo no coração.

Não quero aumentar sua inteligência.
Você já é inteligente, e até demais,
sempre contando pelos cantos
e jamais errando nas contas.

3.

Para você, eu sou tão inútil
quanto uma bolha de sabão.
Minhas concretas abstrações
e meus versos simplórios
não o comovem
e você pensa que a falta é minha.

4.

Para você eu só tenho palavras ásperas
que uso para lembrá-lo
que a casca onde você se enfia
é sua perdição
e a de todos nós.

5.

Enquanto você vive e morre
agarrado às barras de sua cela
eu vou aonde quero
já despido
de minha forma humana:
uma bolha de sabão
cercada de infinito
por todos os cantos.

24.2.07

O marido de Dona Zuleide

Dá pra entrar? Sempre dá pra entrar. Entrar qualquer um entra, o difícil é sair. Para mim também é difícil. Se ele havia entrado, que saísse por sua conta. Já tirei dois, mas isso foi há muito tempo. Agora me dou por satisfeito em tirar a mim mesmo. Atrás desta onda vem outra, quase monstruosa. Hora de sair. Atrás dela, mais duas, talvez maiores. Ele assustou-se, engoliu água, ficou na pior. Um surfista e um salva-vidas o tiraram do mar.

Dona Zuleide me disse que só o fato de eu estar ali, perto dele, já o havia tranqüilizado. Mas e se fosse o contrário? E se ele só entrou porque me viu entrar? Não externei meus pensamentos. Se ela quer rezar por mim, que reze. Mas o infinito? O infinito não cuida de mim. Eu que me cuide quando entro nele. Eu e meu pequeno fôlego no meio das ondas que respiram grande. O mar, sim, o mar é o infinito na terra.

19.2.07

14.2.07

mais

Eu quero rasgar as estrelas
e ver o que tem dentro.

Quebrar os átomos
e promover uma festa de partículas.

Cortar a alma em tiras
e laçar o invisível.

Sim, eu também adoro
beber vinho no ventre das mulheres:
mas eu quero muito mais.

13.2.07

"Um guerreiro se responsabiliza pelos seus atos, pelo mais trivial de seus atos. O homem comum age através de seus pensamentos, e nunca se responsabiliza pelo que faz."

Carlos Castaneda: A roda do tempo, trad. de Luiz Carlos Maciel, Rio, Nova Era, 2ª ed., 2001, p. 60.

10.2.07

passo a passo

Há dias em que eu sinto um enorme sol dentro de mim
e nesses dias tenho vontade de gritar:
sou uma bomba nuclear especialmente projetada
para exterminar a mesquinhez e a maldade
- e nada mais.

Mas eu não sou o sol.

Eu sou a chama de uma vela
que se consome dia a dia
luz mínima
no meio da escuridão
apenas o bastante
para que possa dar sem medo
o próximo passo.


(para Domenico e Canela)

8.2.07

Domenico (Erland Josephson) em Nostalgia

6.2.07

notas para uma caosmologia

No fim das contas (embora não exista, a rigor, um fim das contas) o universo é Desejo e Caos.

Genialidade da fórmula deleuziana inspirada por Nietzsche: "afirmação do acaso", em que a afirmação remete ao desejo (como produção de real) e o acaso ao caos.

Parece uma coisa à toa, mas as conseqüências a extrair daí são muitas.

5.2.07

segunda nota sobre a paixão amorosa

A paixão amorosa é uma abertura: ela nos faz sair de nós mesmos e ir além de nossas preocupações meramente fricativas e digestivas. Só que a paixão amorosa, se não conduz a um novo fechamento, conduz a uma busca incessante de repetição. Não é difícil entender porque isso acontece. Por definição, a paixão depende de um outro que nos afeta; e é por um único e mesmo movimento que ela nos abre para o outro e desloca nosso centro de gravidade para algum ponto fora de nós mesmos. É por isso que as alegrias extremas remetem à ação - auto-afecção, self-enjoyment ou, em uma palavra, à criação - e não à paixão. Aquele que age (nesse sentido bem determinado, que eu diria spinozista) já não está fechado em si, mas também não está fora de si: pois ele conseguiu, de algum modo, colocar todas as coisas dentro de si para fazê-las refluir como dom à "humanidade mal-agradecida". A paixão quer tudo para si; mas a ação, porque já encerra em si tudo de que precisa, realiza de fato a abertura: como dádiva. Não importa o que se faz e o que se dá: panquecas, biscoitos, cantos, textos e assim por diante; o que importa é que em cada uma dessas coisas se tenha posto o melhor de si, a mais pura medida de vida. E se existe na filosofia algo que serve para absolutamente todos, é essa idéia de que a liberdade não está "dada" de antemão, mas que ela é uma conquista, e a maior de todas.

3.2.07

ego super pimpão

Pobre superego pimpolhão
sempre zombando de tudo
que não se conforma
aos modelos mentais
com os quais foi enrabado
ainda criança
a golpes de escárnio
por papai mamãe titia
professores papagaios
e coleguinhas de escola
tão bem enrabadinhos.

Meu riso o incomoda
porque é inocente
Minha palavra o incomoda
porque afirma
Minha vida o incomoda
porque é livre.

nota sobre a paixão amorosa

Pode-se pensar que a paixão amorosa (tão cantada e decantada em prosa, verso e reverso) não passa de uma máscara para o tesão: algo como uma cômoda maneira de maquiar a crueza de nossos "baixos instintos". Penso, ao contrário, que ela é uma das raras oportunidades que temos para viver o sentimento de algo que nos ultrapassa, de algo que é maior que nós mesmos. Sem dúvida o tesão está incluído nesse pacote; mas o tesão por si mesmo seria insuficiente para explicar o alívio e o êxtase proporcionados pela paixão amorosa: alívio e êxtase relacionados, claro está, ao ultrapassamento da mesquinhez de uma vida fechada em si mesma, ou seja, meramente voltada para sua própria conservação e prazer. Há algo de heróico na paixão amorosa que nos eleva à condição de heróis de nosso próprio amor; e não deixa de ser um tanto trágico que em muitos casos seja difícil saber o que é maior, o amor que sentimos pelo outro ou o amor que sentimos pela paixão nela mesma.
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