28.4.14

Uma banana para o racismo

Aliás, um cacho inteiro. Em verde e amarelo.

4.4.14

O rei gago

Era uma vez um reino distante onde todos rezavam antes de comer. As preces variavam bastante de um lar a outro e até de uma refeição para outra; mas todas seguiam uma espécie de receita estabelecida em tempos imemoriais, “antes mesmo que aqui houvesse um reino”, ensinavam os anciãos. Assim que a comida era servida, o membro mais sábio da família, homem ou mulher, entoava o primeiro verso, e cabia aos demais, seguindo uma ordem que variava de acordo com as circunstâncias e a inspiração de cada um, dar seguimento à celebração acrescentando outros versos, até que todos se dessem por satisfeitos e, sorrindo, começassem a dar com a comida à boca:

Agradeço a este frango que deu sua vida pela nossa.
Agradeço a este milho que deu sua vida pela nossa.
Agradeço àqueles que cuidaram deste frango.
Agradeço àqueles que plantaram e colheram este milho.
Agradeço às árvores cuja lenha desperta o lume no fogão.
Agradeço aos mercadores pelo sal e pelas ervas que em nossa terra não prosperam...

E assim por diante. Não faltava quem cismasse de inventar novos versos, e nesse jogo se destacavam as crianças mais pequenas; elas se divertiam em descobrir elos não mencionados pelos mais velhos, agradecendo ao Sol, à chuva, às minhocas e abelhas; de tal modo que os adultos, não poucas vezes, se admiravam com a perspicácia dos miúdos. Mas a prece também tinha seus contratempos, geralmente ocasionados por pirralhos que mal haviam adentrado a adolescência. Volta e meia um deles dizia coisas como estas:

Agradeço a Rosinha pela saia curtinha.

Ou então:

Agradeço ao pinto que cresceu até ficar deste tamanho.

Eram, então, severamente repreendidos, após o que o membro mais sábio da família encerrava a prece com a palavra de praxe. Mas a verdade é que os adultos, por mais severos e carrancudos que se mostrassem nessas horas, pois era preciso, já haviam sido crianças e estavam sorrindo por dentro.

Dizem os estudiosos que um dos mais célebres ditos daquele reino – “o sorriso é a melhor maneira de abrir a boca” – não pode ser inteiramente compreendido fora do contexto das refeições e das preces à mesa. A explicação é convincente. Todos sabiam que o “amém” que encerrava cada celebração era perfeitamente arbitrário; todos sabiam que, sem esse ponto final, as preces iriam, de vírgula em vírgula, até o infinito; e todos acabavam se imaginando na hilariante situação daquele que, diante da comida, fizesse uma prece sem fim, terminando por morrer de fome... A gratidão manifesta nas preces era, sem sombra de dúvida, sincera; mas a essa sinceridade juntava-se um inevitável elemento cômico que lhes lembrava, a cada refeição, que a sabedoria e a própria vida de nada valeriam sem o riso.

Muitas e muitas gerações se sucederam até que viesse ao mundo o homem que mudaria o destino daquele reino. Príncipe ele nasceu e rei se tornou; mas gaguejava. Era a casa real um lar qualquer? Não. Podia haver nela alguém mais sábio do que o rei? Não. Era concebível que o rei dividisse sua palavra com os demais? Não! Na casa real, o costume forçava o rei a conduzir a prece inteira, da primeira palavra até o derradeiro amém.

Mas o rei era gago. E bastava aproximar-se a hora da refeição para que ele ficasse ainda mais gago. Reza a lenda que, a certa altura, a única casa de todo o reino onde não se sorria – e onde só se comia comida fria – era justamente a casa real.

Então, talvez por luz própria, talvez por influência de um conselheiro mal intencionado, o rei resolveu baixar um decreto. De acordo com a nova lei, todas as famílias em seu reino passariam a dizer, antes das refeições, apenas e somente a seguinte frase:

Deus seja louvado.

Nunca mais o rei e sua corte engoliram comida fria, dizem os historiadores. Mas, com o passar do tempo, o povo daquele reino acabou esquecendo alguma coisa que eles já nem mesmo sabiam o que era; e teve início uma era de crimes que nunca mais teve fim.



eXTReMe Tracker