27.9.17

com brasileiro não há quem possa

A partir da decisão tomada hoje pelo Supremo Tribunal Federal sobre o ensino religioso confessional em escolas públicas, os brasileiros começarão a pagar, em breve, os salários de milhares de novos professores cujas aulas, no entanto, poderão ser gazeteadas à vontade.

Ao que parece, tudo que importa no Brasil de hoje é semear os conflitos de amanhã: desde que isso seja feito, é claro, com o máximo de ineficiência e de desperdício de dinheiro público.



Fontes:

STF mantém aval para aula de religião vinculada a crença em escola pública (FSP)
Se ciência estiver certa sobre crianças, Brasil está cometendo erro grave (FSP)

membrana

a vida
é um abraço.


18.9.17

um ato falho

Num artigo d'O Globo sobre a formação de preço do (caro) iPhone X, o economista Samy Dana menciona fatores que poderíamos dividir em "objetivos" e "subjetivos". Grosso modo, os fatores objetivos seriam a soma daquilo que o autor chama de "custo de produção" (matérias primas, energia, instalações, mão de obra) e do investimento em pesquisa e desenvolvimento; e os fatores subjetivos poderiam ser resumidos na "percepção de valor", ou seja, no quanto as pessoas estariam dispostas a pagar por aquele produto.
"Além do custo de produção, na hora de estabelecer os preços as empresas devem considerar o valor da propriedade intelectual, os gastos em pesquisa e desenvolvimento e a percepção de valor — ou seja, quanto as pessoas estão dispostas a pagar. No caso dos aparelhos da Apple, este último item ocupa um grande espaço na equação e é o que faz do iPhone um caso interessante de preço."
Curiosamente, ao analisar a formação de preço de um quadro, Dana parece não levar em conta um fator que, para a indústria, é tão importante: pesquisa e desenvolvimento.
"Se pensarmos pelo custo de produção, um quadro nada mais é do que tela e tinta. Porém, não é esse o fator determinante no preço de uma obra. Contam mais outros fatores, como o preço de outras telas do mesmo artista e de seus contemporâneos, assim como sua reputação e a raridade das obras. No fim das contas, quem mandará na equação é a percepção de valor do comprador — ou seja, o quanto ele está disposto a pagar."

É como se o investimento em "pesquisa e desenvolvimento", referido explicitamente no caso do iPhone, simplesmente não existisse no caso das artes plásticas. Como se não fossem necessários vários anos de esforço, seja para o aprendizado da pintura, seja para a formação de um círculo de amizades que faculte ao artista o acesso ao circuito do Mercado de Arte. Pode acontecer que o artista consiga fazer ambas as coisas? Sim, mas é bastante raro, pois trilhar qualquer dos dois caminhos exige um grande investimento de tempo e dedicação. Não se aprende a fazer arte num dia, e não basta um dia para a formação de uma rede de amigos.

Assim, Dana foi duplamente injusto: com os artistas que se esforçam para fazer arte, e com os artistas que fazem prosperar o milionário Mercado de Arte. Evidentemente, ele não merece ser crucificado por tão pouco: quase um ato falho. Mas, num país como o nosso, onde o homem médio ainda pensa que arte é coisa de vagabundo, trata-se de um ato falho pra lá de significativo.

14.9.17

a coisa mais bem distribuída do mundo

Sou filho dos anos sessenta, durante os quais vivi minha infância, e (talvez erroneamente) atribuo a essa circunstância minha repulsa em relação a qualquer tipo de autoritarismo. É por isso que o único Deus em que eu poderia acreditar é o spinozista, um Deus que produz (dança?) mas não "governa".

No entanto, mesmo quem detesta o autoritarismo é forçado a consentir com o exercício (em diversos níveis) da autoridade; e até os punks deveriam admitir que adoram a polícia quando esta intervém para impedir que sejam assassinados pelos membros de outras tribos (nada) urbanas. Como diria Spinoza, quem é incapaz de compreender precisa obedecer. Sem o uso da autoridade (da coerção), nenhum crime seria punido e pouquíssimas crianças fariam o dever de casa (se é que chegariam a freqüentar uma escola).

Todo o problema, portanto, reside em usar com sabedoria aquela imprescindível dose de autoridade sem a qual seria impossível administrar um campo social.

E é nesse ponto que nós, brasileiros, falhamos sistematicamente. Somos talvez o único povo do mundo (sim, esta frase é um puro golpe de retórica, mas periga conter alguma verdade) capaz de combinar, a um só tempo, o autoritarismo mais jeca e a mais lassa falta de autoridade.

Deixarei que o leitor decida por si mesmo os casos particulares de "autoritarismo jeca" e de "falta de autoridade" que seriam capazes de ilustrar a frase acima.


* * *

Acabou. Esta postagem acabou. As coisas que poderão ser lidas a seguir são apenas anotações à margem, feitas a lápis, em torno do que acabou de ser dito. 


* * *

Vivemos numa democracia e uma simples classificação indicativa seria suficiente para calar qualquer polêmica relativa à exposição "Queermuseu". Essa será, por sinal, a linha de defesa da HBO no episódio da exibição diurna de "A festa da salsicha": a de que a classificação etária foi devidamente estabelecida. Os direitos dos artistas terminam onde começam os direitos dos pais e vice-versa. Nem os artistas têm o direito de propor "qualquer obra" para "qualquer faixa etária", nem os pais têm o direito de impor censura à obra de qualquer artista – desde que este não faça uma apologia ao nazismo, não é mesmo? Isso não é difícil de entender. Infelizmente, o autoritarismo, nestas bandas, é a coisa mais bem distribuída do mundo.

* * *

E por falar em nazismo... Chega a ser cômico: todo mundo resolveu mencionar a exposição de "arte degenerada", realizada sob o regime comandado por Hitler, mas ninguém, ninguém mesmo, parece lembrar-se (ou tem coragem de lembrar-se) das perseguições realizadas pelo realismo socialista. Um bom antídoto ao esquecimento é o sóbrio e comovente Afterimage, testamento cinematográfico do diretor polonês Andrzej Wajda.

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Se a rede de TV mais poderosa do país pode homenagear traficantes em horário nobre, por que estudantes do Pedro II são passíveis de punição por se referirem ao tema na escola?

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Eu bem que gostaria de saber se aqueles que são tão ferrenhamente contra a proibição da publicidade de cerveja não seriam, por acaso, os mesmos que são a favor da proibição da maconha. Pois a cultura dos estados alterados de consciência é uma só, meus amores.

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Diante da intensificação dos violentos ataques e ameaças às religiões afro-brasileiras, todos deveriam estar urrando de indignação. Como explicar, em meio a uma tagarelice incessante, esse silêncio criminoso? Como? Será que o silêncio se explica... pela própria tagarelice? No me lo puedo creer.

5.9.17

febeapá 2: the libertarians (again!)

Um dos argumentos mais usados na guerra de desinformação a respeito de drogas ilegais cita a maconha como "porta de entrada" para o mundo das drogas. Quem diz isso jamais se deu ao trabalho de consultar as pesquisas oficiais a respeito do consumo de drogas entre os jovens estudantes brasileiros. A "porta de entrada" para os estados alterados de consciência é, na verdade, o álcool.

Uma dessas pessoas desinformadas é Luiz Felipe Pondé. Contrário à proibição da propaganda de álcool nos meios de comunicação e fiel ao princípio que norteia o pensamento das pessoas que não pensam (aplicar universalmente uma regra sem pesar, um a um, os casos particulares), o filósofo da Folha de São Paulo não demonstra a menor vergonha de, em público, desfiar um parágrafo inteiro de falácias.
"Daqui a pouco se proibirá a publicidade de carros (causam acidentes), aviões (caem), batom (dá vontade de beijar a boca das mulheres e isso pode ser anti-higiênico), churrascaria (colesterol), café (causa ansiedade), xampus (os cabelos reais nunca são tão lindos quantos os das propagandas), bolas de futebol (os meninos podem cair e quebrar a perna), livros (existem livros que propõem coisas absurdas), telefonia celular (já se fala em pessoas viciadas em celulares), televisão (crianças podem ver coisas erradas na televisão), computadores (a internet é incontrolável), turismo (pessoas podem pegar infecção intestinal viajando), água (pode estar contaminada), metrô (pode descarrilar), ônibus (capotam)... A lista é cansativa, como tudo que brota da alma dos idiotas do bem quando resolvem salvar o mundo de nós mesmos."
A lista não é somente cansativa: é falaciosa. E a falácia consiste em pintar quem pensa diferente do colunista como um retardado que, apenas porque defende a proibição da propaganda de álcool, seria capaz de defender a proibição da propaganda de absolutamente tudo que existe.

Ninguém poderá dizer que eu não compreendo o ponto de vista "libertário" de Pondé. Eu o compreendo tão bem que escrevi, aqui mesmo, e há não muito tempo, o texto "O formol nosso de cada dia". Mas uma das coisas que me diferenciam do colunista é que eu faço um esforço para pensar cada problema por si mesmo, e faço esse esforço correndo (alegremente) o risco de não ter um "princípio" geral que dirija meu pensamento.

Eu estava programando mais duas postagens para a série "febeapá", uma dirigida contra os conservadores, outra dirigida contra a esquerda. Mas os menores abismos são os mais difíceis de transpor, e eis que estou escrevendo (novamente) para criticar um "libertário".

Vocês acham que nossos estudantes de 11, 12, 13 anos bebem uísque? É claro que não. Eles bebem é cerveja. Por meio da cerveja, eles entendem plenamente o que é um estado alterado da consciência. As outras drogas entrarão na vida deles por mero raciocínio analógico: de um barato a outro. E não é preciso ser o rei do pensamento estratégico para perceber que, no atual contexto educacional brasileiro, esse consumo precoce é bastante problemático.

É claro que quem trabalha num meio de comunicação qualquer jamais sonhará em contrariar seu patrão, que por sua vez jamais aceitaria abrir mão da receita que a glamorosa propaganda de cerveja proporciona. Tudo isso é compreensível. O que me espanta é a impotência e o servilismo daqueles que, se quisessem, poderiam estar pensando (e não aplicando princípios às cegas). Mas é claro que, aqui, eu talvez esteja sendo otimista demais.



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