31.8.11

A carona, o estribo, o pongar no bonde

Há dois dias escrevi uma nota, que estou publicando aqui com um certo atraso. Ela foi motivada por dois textos. O primeiro deles foi publicado no UOL:

A Secretaria Estadual de Transportes do Rio de Janeiro propôs ao Ministério Público a elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a instalação de estribos retráteis nos bondes de Santa Teresa. A iniciativa acabaria com as tradicionais viagens sobre o estribo. Algo ainda em estudo. “O objetivo é orientar e conscientizar os passageiros sobre a utilização segura do transporte, pondo fim às viagens sobre o estribo”, afirma a secretaria em nota. O projeto ganhou força depois da morte do turista francês Charles Damien Pierson (...) Quem contradiz a proposta afirma que viajar no estribo é uma “questão cultural” já que há 115 anos o carioca cultiva a tradição de viajar dessa maneira.

O segundo foi publicado no site da AMAST, onde acabei deixando, a título de comentário, o texto que se lê a seguir. Ele é a defesa de uma prática - única no mundo, ao que parece - que nós, cariocas, chamamos de pegar carona, mas que pode ser descrita também como pongar no bonde. Muito resumidamente, trata-se de saltar da parte dianteira do bonde e subir novamente em sua parte traseira; obviamente, quanto maior a velocidade do bonde, mais perigosa será a manobra. Apenas os melhores conseguem realizá-la nas maiores retas, onde o bonde atinge sua velocidade máxima. Uma variação extremamente valorizada (de imensa plasticidade e valor estético) é saltar do bonde de costas. Em minha adolescência, pratiquei muito esse esporte que irmanava, num pacto silencioso de respeito mútuo, garotos de classe média e garotos das favelas do bairro. Tenho lembranças maravilhosas dessa época e me dói muito pensar que as novas gerações poderão ser forçadas a desconhecer uma prática que, repito, me parece ser única em todo o mundo. Pode-se, certamente, qualificar a carona como um esporte marginal; que seja, e eu de fato não creio que ele se torne jamais um esporte olímpico; mas também o samba, um dia, foi marginal. Outros povos matam golfinhos a golpes de porrete e chamam isso de cultura; mas em nome de que nós, cariocas, renunciaríamos a essa prática esportiva que faz parte de nossa cultura? Em nome da segurança? Se for por essa razão, deveríamos proibir imediatamente a venda de carros, pois eles são responsáveis por uma multidão de mortes em nosso país e no resto do mundo. Não somos e não queremos ser alemães ou norte-americanos; somos e queremos continuar sendo cariocas. Espero que a insensibilidade de alguns não faça morrer esse pequeno e singular espaço de liberdade de que gozamos há mais de um século.

Segue, sem modificações, a nota publicada (como comentário) no site da AMAST.

Excelente artigo, e todos nós sabemos que tipo de gente preconiza a repetição de mentiras como um meio de forjar verdades. No entanto, creio que o item 5 (sobre o uso do estribo) precisa ser discutido.


É claro que a superlotação dos bondes, provocada pelo absoluto descaso das autoridades competentes, força muitos usuários (que prefeririam viajar dentro do bonde) a andar no estribo, o que é um absurdo. E também é claro que deveria haver, ao menos na Estação da Carioca, servidores capacitados a orientar os turistas, estrangeiros ou não, sobre os perigos de viajar no estribo.


No entanto, andar no estribo é, para alguns, uma maneira de não pagar a passagem. Isso pode não parecer importante para muitos moradores do bairro, mas certamente é importante para os moradores de comunidades carentes. Além disso, andar no estribo - algo que nós, cariocas, chamamos de pegar carona e que outros podem chamar de pongar no bonde - foi e continua sendo, para muitos, um esporte. É, sem dúvida, um esporte perigoso; mas o perigo, a meu ver, não desqualifica a priori esse esporte. Há quem tenha morrido por levar uma bolada jogando futebol de salão, e não é por isso que se irá proibir o futebol de salão. Há quem morra afogado, e não é por isso que se irá proibir o banho de mar. Pode-se - e deve-se - alertar as pessoas sobre os riscos que elas podem vir a correr. Mas tomar decisões pelos outros é algo que não se pode nem se deve fazer.


Em resumo, ninguém pode ser forçado a andar no estribo em função do desmazelo dos nossos governantes. Deve haver bondes em número suficiente para as necessidades dos usuários e isso não é negociável. Mas ninguém pode ser proibido de andar no estribo em função do excesso de zelo de quem não gosta de andar no estribo. Há, sim, quem goste de fazê-lo. E andar no estribo é, de fato, uma tradição, uma cultura e um esporte. Mas isso nada tem a ver com os desmandos que sucatearam o principal meio de transporte público em Santa Teresa.



28.8.11

Os bondes de Santa Teresa

Eu morei em Santa Teresa durante dois anos, mas muito antes disso (desde os onze anos de idade) eu já freqüentava o bairro e pegava carona no bondinho. A carona é uma espécie de esporte local cujos fundamentos são saltar e subir no bonde em alta velocidade.

Pois bem. Até aqui, cinco pessoas morreram e 57 ficaram feridas no acidente de ontem com o bondinho de Santa Teresa. Assim, é certo que havia um total de 62 pessoas no veículo, mas poderia haver ainda mais gente, já que é extremamente plausível que vários caroneiros tenham saltado do bonde entre o momento em que ele descarrilou e o momento em que ele tombou e bateu no poste. Há um dado em favor dessa hipótese: o bonde tombou para o lado direito, mas o lado esquerdo (o lado que dá para o meio da rua) é tradicionalmente o lado preferido pelos caroneiros. Se um levantamento determinasse que o número total de passageiros nos instantes anteriores ao descarrilamento passava de 70, eu não me surpreenderia.

foto: http://johnmarkhopkins.com/ (clique para ampliar)

Como se pode ver na foto acima, esse modelo de bonde, o mais antigo ainda em circulação, possui oito bancos reversíveis, e cada banco comporta quatro passageiros. A lotação oficial do bonde é de 44 passageiros (32 sentados e 12 em pé), mas sempre há gente viajando no estribo, o que pode facilmente elevar o número de passageiros a 60.

É por isso que, poucas horas depois do acidente com o bondinho de Santa Teresa, o secretário de transportes do Rio de Janeiro, Júlio Lopes, afirmou que a superlotação do veículo é um "fenômeno cultural de Santa Teresa". No entanto, e é por isso que eu resolvi escrever esta breve nota, o secretário de transportes está cometendo uma falácia. Quando uma moradora do bairro oferece ao motorneiro um lanche grátis, ou quando um caroneiro ajuda o trocador a reverter a posição dos bancos e a engatar o "chifre" que conduz eletricidade, ou ainda quando um passageiro cede seu lugar a um idoso, estamos diante de um fenômeno cultural; mas quando um bonde que não recebe manutenção adequada está transitando muito acima de sua capacidade, trata-se de um fenômeno de outra ordem: é um simples fato administrativo. Ao invés de responsabilizar a "cultura" do bairro, o secretário de transportes do Rio de Janeiro deveria mui simplesmente reconhecer que os bondes de Santa Teresa estão funcionando muito além do limite da precariedade.

Fato que, por si só, é espantoso. Afinal, o investimento nos bondes de Santa Teresa não beneficiaria apenas os moradores do bairro, mas também ajudaria a alavancar o turismo na cidade. E por falar em turismo, por que o jovem francês Charles Damien Pierson morreu? Eu diria que ele morreu porque foi forçado a viajar no estribo, já que o intervalo entre os bondes, em vez de ser de dez minutos (como era nos anos 70 e 80), é de uma hora. É de admirar que os bondes, hoje em dia, só andem superlotados? Não, não foi a "cultura" de Santa Teresa que matou Charles. Foi a falta de lugar no bonde, foi a falta de bonde. Do mesmo modo, a tragédia ocorrida ontem não foi provocada por um "fenômeno cultural". Ela foi provocada pelo descaso de políticos e administradores sem nenhuma visão de futuro, capazes de matar a galinha dos ovos de ouro e deixar o povo que anda de bonde a ver navios.

Bondinho de Santa Teresa: travessia sobre os arcos da Lapa (vídeo)

P.S.:
Nota da Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa

P.S. II:
Superlotação pode contribuir, mas não derruba bonde”, diz Crea

P.S. III:
Crea: análises indicam que freio de bonde foi acionado, mas não funcionou

"O que pode ter acontecido, segundo o engenheiro, é que, ao notarem o bonde desgovernado, as pessoas tenham entrado em pânico e tentado saltar, fazendo peso e tombando o carro."

Fora dos trilhos e em movimento, a estabilidade de um bonde é muito precária. Assim, os engenheiros do CREA estão na direção correta ao levar em conta as pessoas que saltaram ou tentaram saltar do bonde quando este descarrilou. Não pelo motivo alegado, mas porque, ao contrário, as pessoas que saltaram aliviaram o peso do bonde. Como afirmei acima, o lado esquerdo do bonde é o preferido pelos caroneiros e, em geral, por todos que sabem subir e descer do bonde em movimento. Assim, faz sentido que o bonde tenha tombado para o lado direito: não porque pessoas "fizeram peso" ao saltar, mas, ao contrário, porque o peso foi aliviado predominantemente de um só lado do bonde.

É claro que tudo isso é especulação, e principalmente, é claro que nada disso explica as causas profundas do acidente, que devem ser buscadas na manutenção precária dos bondinhos e no descaso das autoridades em relação a esse transporte público que é dos mais charmosos do mundo.

"Ainda são análises preliminares, mas constatamos que os trilhos não apresentam marcas que indicam travamento da roda, apesar de o freio ter sido acionado", explicou o engenheiro e vice-presidente do Crea, Luiz Antônio Cosenza.

Já nas primeiras análises técnicas, a verdade começa a aparecer. Recomendo vivamente aos leitores uma visita atenta ao sítio da AMAST, para que não fiquem à mercê das manipulações forjadas pelos administradores da coisa pública e veiculadas pela grande imprensa.

P.S. IV:
Não custa esclarecer en passant porque o lado esquerdo do bonde é o franco favorito dos caroneiros e das pessoas que gostam de andar no estribo do bonde. Em primeiro lugar, o lado esquerdo, por ser o lado que dá para o meio da rua, é o único que permite as manobras da carona, sendo a principal delas descer na parte dianteira do bonde e subir novamente na parte traseira - tudo isso, de preferência, quando o bonde está em alta velocidade. Em segundo lugar, quem anda do lado esquerdo usa o pé direito, tanto para subir no bonde quanto para descer dele (o pé direito é o primeiro a tocar o chão). Por fim, se andar do lado esquerdo é um tanto perigoso por causa dos carros que vêm em sentido contrário, andar do lado direito talvez seja ainda mais perigoso, pois muitas vezes o bonde passa bem perto dos postes.

Talvez pareça estranha a alguns leitores a discussão desses detalhes num momento trágico e doloroso como este. Mas assim como eu não sou de rezar, também não sou de me deter em lamentações. Tiro da dor força e motivação para tentar entender e explicar as coisas, pois acredito na potência do entendimento. Insensíveis são os nossos políticos.

P.S. V:
Eis aqui uma imagem que retrata o estado de conservação dos bondinhos de Santa Teresa. Ela mostra o uso de um arame no lugar onde deveria haver um grande parafuso. É um detalhe que não explica diretamente a tragédia de sábado, mas que explicita como tem sido feita a manutenção dos bondes: sem recursos e material adequado, os mecânicos foram forçados a recorrer à gambiarra que se vê abaixo. Obviamente, são os responsáveis pela falta de verba que devem ser responsabilizados criminalmente pelo acontecido.


27.8.11

Nostalgias de Menfis

 por Mário Zambonin
Traducción © 2000 by Carolina Collazo Ibáñez

Larga vida para ti, mi hermano distante. Que los dioses vivos y muertos te prodiguen el pan, pero sobre todo la luz perenne que irradia en todas partes. Temo por mi suerte, bien lo sabes, desde mi transferencia a este miserable villorrio del delta oriental. Mi corazón partió en secreto, el viaja, sube el río para rever Menfis, mas permanezco atado a esta tierra extraña, en este suelo pantanoso donde se revuelcan rebaños, y cocodrilos. Mis peticiones fueron subrepticiamente bloqueadas por Kaper, el mezquino Jefe de Policía de Kenken-taue, y todas nuestras cartas leídas por él antes de llegar a su destino - todas, menos ésta, que irá a estar contigo llevando mi humilde sello todavía intacto. Cuento con el discreto auxilio de un mensajero fiel, veloz como una sombra, por cuyos servicios providencié (para que le sean entregados después de la ejecución de su tarea) incontables cántaros de cerveza, una vez que su desobediencia a las órdenes de Kaper podrá costarle las orejas o la nariz. Escribo para decirte adiós, pues lo más cierto, hermano, es que no nos veamos nuevamente sino del otro lado del horizonte; pero como podría dejar de contarte todo lo que omití en las demás cartas, y por tanto substraje a la inquisición de Kaper, si debo mi vida a esa prudente omisión? Desarrolla cuidadosamente este papiro, hermano mío, pues es a tu hermano distante que estarás explicando.

Kenken-taue es un antro de funcionarios astutos, mancomunados entre sí para sacar provecho de estos pobres campesinos y robar al faraón. Descubri sus saqueos por azar, y ya no tengo paz, pues desconfían que yo sea un agente de confianza del Visir, enviado para investigar y denunciar sus crímenes, y traman tirarme en mi horizonte; de ese modo, hermano, soy yo, que traigo el corazón leve cual pena de avestruz, quien debe huír sin demora, huír bien lejos. Están en eso casi todos los funcionarios graduados del lugar : el director, el director adjunto y el guía de los escribas, el guardián de los graneros, el tesorero jefe, el director de cuernos, cascos y plumas, sin hablar del infame de Kaper. Esa gente exige que hablemos delante de ellos, pero no nos escucha, habla de nosotros pero no habla con nosotros; no hay uno de ellos que no se proclame sabio y justo y conocedor de los secretos del cielo. Sus subordinados, esos disputan ventajas y promociones, y cultivan celosamente el precepto que entre los escribas es tenido como el ápice de la sabiduría : "Inclínate delante de tu superior y huélele los pies". Mi corazón se cansa de estar entre los hombres; quiere que me vaya para arriba o para abajo, me encuentro recluso en la más perfecta soledad, y ni la paciencia me puede ayudar. Malhechores a sueldo de Kaper acechan día y noche; mi corazón da saltos como un cabrito, pues sé que ellos solo precisan de un pretexto para guardarme en el poniente. Siendo seguido en mis pasos y teniendo mi correspondencia violada, no puedo alzar la voz para hacerme oír, y ni El, que tiene millones de orejas, podrá atender a mi sordo clamor. Además de eso, no tengo pruebas de lo que ocurre en Kenken-taue, a menos que como prueba se acepte considerar el estado lastimoso de su pueblo. Aquí ya no existen moldeadores de ladrillos, pues no hay paja, y mismo un escriba puede verse obligado a vivir debajo de un árbol; pero los templos son de piedra. Puedes imaginar, hermano, lo que es acostarse a la intemperie sin la protección del terebinto, entregado a la saña de tantos mosquitos como estrellas, o despertar por la mañana babeado por chacales y perros, todavía más numerosos que las mujeres del Dios bueno, que me seguirían, si los dejase, hasta el recinto donde me siento a hacer y rehacer listas fastidiosas? Me atasqué en este lugar hace casi cuatro llenas, y esta Tamareira, cuyos frutos jamás vi, me acogió bajo sus verdes hojas; pero hasta cuándo deberé permanecer a su sombra? Hasta que decidan mandar a mi encuentro al bandido que, sin forzar puertas, sin saltar ventanas, invadirá mi sueño y enterrará su daga en mi pecho?

Como me gustaría remontar el Nilo, nuevamente mirar la esfinge de garras magníficas, rever las albas murallas de Menfis y contemplarlas sin trabas, y más que todo, hermano, verte con salud y estrecharte en mis brazos! Pero pesa sobre mi la vigilancia obstinada de los hombres de Kaper, por lo que forjé un amargo plan, pero capaz de salvarme la vida. Como sabes, desde que vine para el Delta acostumbro visitar regularmente la ciudad de Busiris, donde fui iniciado en los misterios del Dios, y también Bubastis, cuyas fiestas en honor a Bastet comenzarán en breve. Esta noche partiré, debiendo llegar a Bubastis al inicio de la gran fiesta, a tiempo de participar de las orgías promovidas para la Diosa de la Alegría. Ese viaje rutinario no inspirará ninguna precaución adicional a los agentes de Kaper, que me seguirán, por cierto, pero luego serán distraídos por las celebraciones, mientras yo estaré atento y diligente. Prestaré con especial fervor mis tributos a Bastet, después encontraré a aquel que, en silencio, rapará mi cabeza; calzaré sandalias de papiro, lanzaré sobre el cuerpo inmaculada túnica de lino, y saldré de la ciudad semejando a un sacerdote de Osiris. Pasará mucho tiempo hasta que los hombres de Kaper perciban mi huída; ellos vigilarán el inmenso desierto y detendrán los barcos al subir al río, pero nunca adivinarán que yo, sereno como de hábito, habré descendido el río y adentrado en el mar, abandonando mi país para escapar de un destino atroz.

Mientras los capangas de Kaper estén llevándose bastonazos en las manos y en los pies, apuntaré para el norte, pasaré por Palestina e iré a Mesopotamia, donde se murmura la invención de un nuevo juego, diferente de cuantos juegos conocidos, y jugados. Si la suerte me acompaña, mi sol renacerá, y viviré una nueva vida, tal vez allí, tal vez entre los pueblos del desierto, tal vez lo bastante para volver a verte, hermano; mas puede ser que yo perezca en manos de salteadores o de las milicias imperiales, siendo abandonado en el desierto sin que nunca se hagan mis funerales, y que, privado de ofrendas, tenga que beber mi orina y comer mis excrementos. Sea como fuere, no te aflijas, hermano, pues mismo que yo vaya a entrar en el horizonte, mismo que las horas incesantes vengan a devorar nuestra amada Menfis, y mismo que termines por olvidarte de mi, seré contigo, hermano, pues mi corazón partió en secreto junto a ti.



 escrito em 1994, originalmente publicado em caosmos.com (site extinto)

Saudades de Mênfis

por Mário Zambonin

Vida longa para ti, meu irmão distante. Que os deuses vivos e mortos te prodigalizem o pão, mas sobretudo a luz perene que irradia a toda parte. Temo pela minha sorte, irmão, bem o sabes, desde minha transferência para este miserável vilarejo do delta oriental. Meu coração partiu em segredo, ele viaja, sobe o rio para rever Mênfis, mas permaneço atado a esta terra estranha, neste solo pantanoso onde chafurdam rebanhos, e crocodilos. Minhas petições foram sorrateiramente bloqueadas por Kaper, o mesquinho chefe de polícia de Kenken-taue, e todas as nossas cartas lidas por ele antes de chegarem ao seu destino - todas, menos esta, que irá ter contigo levando o meu humilde selo ainda intacto. Conto com o discreto auxílio de um mensageiro fiel, veloz como uma sombra, por cujos serviços providenciei (para que lhe sejam entregues depois da execução de sua tarefa) incontáveis cântaros de cerveja, uma vez que essa desobediência às ordens de Kaper poderá custar-lhe as orelhas ou o nariz. Escrevo para dizer-te adeus, pois o mais certo, irmão, é que não nos vejamos novamente senão do outro lado do horizonte; mas como poderia deixar de contar-te tudo quanto omiti nas demais cartas, e portanto subtraí à devassa de Kaper, se devo minha vida a essa prudente omissão? Desenrolai cuidadosamente este papiro, irmão meu, pois é teu irmão distante que estarás explicando.

Kenken-taue é um antro de funcionários astutos, mancomunados entre si para tirar proveito destes pobres camponeses e roubar o faraó. Descobri seus saques por acaso, e já não tenho paz, pois desconfiam que eu seja um agente de confiança do vizir, enviado para investigar e denunciar seus crimes, e tramam deitar-me no meu horizonte; desse modo, irmão, sou eu, que trago o coração leve qual pena de avestruz, quem deve fugir sem demora, fugir para bem longe. Estão nisso quase todos os funcionários graduados do lugar : o diretor, o diretor-adjunto e o guia dos escribas, o guardião dos celeiros, o tesoureiro-chefe, o diretor de chifres, cascos e plumas, sem falar no infame Kaper. Essa gente exige que falemos diante deles, mas não nos escuta, fala sobre nós mas não fala conosco; não há um deles que não se proclame sábio e justo e conhecedor dos segredos do céu. Seus subordinados, esses disputam vantagens e promoções, e cultivam ciosamente o preceito que entre escribas é tido como o ápice da sabedoria : "Curva-te perante teu superior e cheira-lhe os pés". Meu coração se cansa de estar entre os homens; quer me volte para cima ou para baixo, acho-me recluso na mais perfeita solidão, e nem mesmo a paciência pode me ajudar. Malfeitores a soldo de Kaper espreitam dia e noite; meu coração pula como um cabritinho, pois sei que eles só precisam de um pretexto para guardar-me no poente. Sendo seguido em meus passos e tendo minha correspondência violada, não posso alçar a voz para fazer-me ouvir, e nem mesmo Ele, que tem milhões de orelhas, poderá atender ao meu surdo clamor. Além do mais, não tenho provas do que ocorre em Kenken-taue, a menos que como prova aceite-se considerar o estado lastimável de seu povo. Aqui já não existem moldadores de tijolos, pois não há palha, e mesmo um escriba pode se ver obrigado a morar embaixo de uma árvore; mas os templos são de pedra. Podes imaginar, irmão, o que é deitar ao relento sem a proteção do terebinto, entregue à sanha de mosquitos muitos como estrelas, ou despertar pela manhã bafejado por chacais e cães, ainda mais numerosos do que as mulheres do Deus bom, que me seguiriam, se os deixasse, até o recinto onde me sento para fazer e refazer listas enfadonhas? Atolei neste lugar há quase quatro cheias, e esta tamareira, cujos frutos jamais vi, me acolheu sob suas verdes folhas; mas até quando deverei permanecer à sua sombra? Até que decidam mandar ao meu encontro o bandido que, sem forçar portas, sem pular janelas, invadirá meu sono e me enterrará sua adaga em meu peito?

Como gostaria de remontar o Nilo, novamente olhar a esfinge de garras magníficas, rever as alvas muralhas de Mênfis e contemplá-las sem entraves, e mais que tudo, irmão, ver-te com saúde e estreitar-te em meus braços! Mas pesa sobre mim a vigilância obstinada dos homens de Kaper, pelo que forjei um plano amargo, porém capaz de salvar-me a vida. Como sabes, desde que vim para o delta costumo visitar regularmente a cidade de Busíris, onde fui iniciado nos mistérios do Deus, e também Bubastis, cujas festas em honra a Bastet começarão em breve. Esta noite partirei, devendo chegar em Bubastis no início da grande festa, a tempo de participar das orgias promovidas pela deusa da alegria. Essa viagem rotineira não inspirará nenhuma precaução adicional aos agentes de Kaper, que me seguirão, por certo, mas logo serão distraídos pelas celebrações, enquanto eu estarei atento e diligente. Prestarei com especial fervor meus tributos a Bastet, depois encontrarei aquele que, em silêncio, raspará minha cabeça; calçarei sandálias de papiro, lançarei sobre o corpo imaculada túnica de linho, e sairei da cidade semelhando um sacerdote de Osíris. Demorará muito até que os homens de Kaper percebam minha fuga; eles vigiarão o deserto imenso e deterão os barcos a subir o rio, mas nunca advinharão que eu, sereno como de hábito, terei descido o rio e adentrado o mar, abandonando meu país para escapar a um destino atroz.

Enquanto os capangas de Kaper estiverem levando bastonadas nas mãos e nos pés, apontarei para o norte, passarei pela Palestina e irei para a Mesopotâmia, onde murmura-se a invenção de um novo jogo, diferente de quantos jogos conhecidos e jogados. Se a sorte me acompanhar, meu sol renascerá, e viverei uma nova vida, talvez ali, talvez entre os povos do deserto, talvez o bastante para rever-te, irmão; mas pode ser que eu pereça nas mãos de salteadores ou das milícias imperiais, sendo abandonado no deserto sem que nunca se façam os meus funerais, e que, privado de oferendas, tenha que beber minha urina e comer meus excrementos. Seja como for, não te aflijas, irmão, pois mesmo que eu venha a entrar no horizonte, mesmo que as horas incessantes venham a devorar nossa amada Mênfis, e mesmo que termines por te esqueceres de mim, serei contigo, irmão, pois meu coração partiu em segredo para junto de ti.




escrito em 1994, originalmente publicado em caosmos.com (site extinto)

23.8.11

O que é discriminar?


Uma simples consulta ao dicionário evidencia que o verbo "discriminar" significa primordialmente discernir, distinguir, estabelecer uma diferença. Nesse sentido, a discriminação é essencial à vida. Um animal que não soubesse discriminar sua presa de seu predador, ou que não soubesse discriminar o alimento do veneno, morreria rapidamente. Um organismo que não discriminasse o que é próprio e o que é estranho (sistema imunológico) também. A membrana de cada célula é um órgão de discriminação, e pode-se dizer o mesmo de cada enzima. Em resumo, a vida é impensável sem o que chamamos de discriminação.

Por outro lado, a discriminação, no último sentido listado no dicionário, é ilegal, é inconstitucional. Isso significa que todos têm os mesmos direitos perante a Lei e não podem ser tratados desigualmente em função de suas diferenças religiosas, étnicas, sexuais, etc.

Muito bem. Deveríamos, por discriminatória, abolir a classificação estelar de hotéis e de restaurantes, ou impedir que se divulgue a classificação de excelência das universidades? Essa idéia fará o leitor rir, ou ao menos sorrir. Entretanto, está acontecendo algo semelhante com a proposta de divulgar a classificação Ideb (Índice da Educação Básica) na porta das escolas. Classificar (discriminar) as escolas de acordo com seu desempenho não é ilegal, mas afixar essa classificação na porta das escolas, sim. Ou ainda, oferecer educação pública de má qualidade não é crime, mas divulgar esse fato na porta da escola fere - na opinião de alguns - o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), e a própria Constituição brasileira.

Fico imaginando quais serão os próximos passos. As escolas serão proibidas de divulgar as notas dos alunos para seus próprios pais, já que notas baixas podem submetê-los a "vexame" e "constrangimento" no ambiente familiar. E os meios de comunicação serão proibidos de noticiar as quedas de clubes de futebol da primeira para a segunda divisão, pois os torcedores do clube rebaixado podem sentir-se discriminados por torcer para um clube de categoria inferior. Muitos desses torcedores, é bom não olvidar, são crianças e adolescentes.

Fontes:

A favor do Ideb na Escola (belo artigo de Gustavo Ioschpe)
Para especialistas, Ideb na porta da escola é inconstitucional


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