20.5.14

liberdade de expressão e discursos de ódio


Se depender de mim, este será o último texto em que perderei meu tempo comentando "atualidades". O Brasil é o país da piada pronta; por causa disso, ao comentar uma notícia qualquer, eu acabo me colocando na incômoda (e um tanto ridícula) situação de alguém que, ao invés de gargalhar ao ouvir uma piada, leva-a mortalmente a sério.

Há alguns dias o juiz federal Eugênio Rosa de Araújo, ao rejeitar o pedido de retirada de vídeos ofensivos no YouTube, "decidiu" que o candomblé e a umbanda não são religiões. A piada é tão flagrante que nem merece um comentário.

A esse respeito, Hélio Schwartsman nos brindou hoje com mais uma de suas pérolas. O texto chama-se "O candomblé e o tinhoso". Hélio reconhece que o argumento do juiz é falho. No entanto, para ele, a decisão do juiz – embora mal fundamentada – é válida. Vejamos o parágrafo que resume sua posição:
Ao contrário do Ministério Público, não penso que religiões devam ser imunes à crítica. Se algum evangélico julga que o candomblé está associado ao diabo, deve ter a liberdade de dizê-lo. Religiões, como qualquer outra instituição ou pessoa, poderiam reclamar proteção contra inverdades factuais. O problema aqui é que a teologia trafega num reino da fantasia sem muito conteúdo empírico, o que torna difícil decidir o que corresponde ou não a fatos. Como não podemos nem sequer estabelecer se Deus e o demônio existem, o mais lógico é que prevaleça a liberdade de dizer qualquer coisa.
Estou um tanto cansado e irei direto ao ponto. Bacharel em Filosofia, Hélio parece acreditar que a única função da linguagem é a produção de verdade. Como ele se limita a considerar as verdades (e inverdades) factuais, farei o mesmo. O que seria uma verdade factual? Se, diante de um cavalo, eu enunciar a proposição "o cavalo é branco", essa proposição poderá ser verificada (ou invalidada) por outros observadores. Desse modo, a verdade factual se caracteriza por ser verificável. Mas se eu disser "o unicórnio é branco", estarei produzindo um enunciado a respeito de um ser imaginário; assim, uma vez que terei dificuldades para apresentar um unicórnio como um "conteúdo empírico", ou seja, como um conteúdo dado na experiência, esse enunciado é inverificável. Logo, conclui Hélio, deverá prevalecer, nesses casos, a liberdade de "dizer qualquer coisa".

O problema é que a linguagem, tantas e tantas vezes alheia aos jogos filosóficos e científicos, não se esgota na referida função de produção de verdade. Ela possui também uma função pragmática. Quando um evangélico "julga que o candomblé está associado ao diabo", ele está, ao mesmo tempo, afirmando que os fiéis do candomblé encarnam justamente o supremo inimigo a ser combatido e vencido pelos cristãos. É pueril dizer que, do ponto de vista da produção da verdade, seria impossível tomar partido. Pois, do ponto de vista pragmático, é evidente que o discurso dos pastores evangélicos produz, nas massas evangélicas, um efeito de sentido que faz dos fiéis das religiões africanas a própria encarnação do mal. Ora, esse é, ou deveria ser, o limite mais evidente da liberdade de expressão: a livre propagação de discursos de ódio.

É óbvio que as religiões não devem ser imunes à crítica. Nada deve ser imune à critica. Mas, precisamente, um discurso de ódio não é uma "crítica", e uma crítica não é um discurso de ódio. E esses dois discursos são bem fáceis de distinguir. Quem critica procura fundamentar seu discurso. Por exemplo, se alguém disser que o cristianismo é uma religião do ressentimento e da má consciência, ou que o islamismo é um projeto de poder absoluto, terá de fundamentar suas afirmações com argumentos. Foi o que fez, ainda que de forma infeliz, o juiz federal: mal ou bem, ele fundamentou sua decisão. Mas se alguém disser que o último cristão deve ser enforcado nas tripas do último islâmico, estará produzindo um discurso de ódio. E é difícil imaginar o que seria pior: proibir o primeiro gênero de discurso ou permitir o segundo. Pois, nos dois casos, a liberdade de expressão será a primeira vítima. E, com ela, todo o resto irá desmoronar.

Assim como a liberdade não é "liberdade de fazer qualquer coisa", a liberdade de expressão não é "liberdade de dizer qualquer coisa". E nós já estamos abusando do direito de falar bobagem.

Eu gostaria de rir de tudo isso, mas não consigo.


16.5.14

A cultura e a morte (393/11)


Conforme prometi, aqui está minha análise do texto que justifica o Projeto de Lei 393/11, elaborado para modificar um dos artigos do Código Civil. Os sucessivos parágrafos do texto original, de autoria do deputado Newton Lima Neto (PT-SP), serão reproduzidos em azul; meus comentários, na cor padrão do blogue (cinza escuro). Os grifos (itálico, negrito) serão sempre meus.

JUSTIFICAÇÃO

O presente projeto de lei, inspirado no projeto de lei 3.378/08, do então deputado federal Antônio Palocci Filho, visa garantir a divulgação de imagens e informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública, cuja trajetória pessoal tenha dimensão pública ou cuja vida esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.

Muito bem. De acordo com as alterações propostas para o Código Civil, a divulgação de imagens e informações biográficas passa a ser garantida por lei. Mas seria essa divulgação garantida de maneira universal e, portanto, igualitária? Não. No conjunto de cidadãos, a lei introduz uma distinção. Ela não se aplica ao "qualquer"; muito pelo contrário, ela concerne apenas "pessoas de notoriedade pública, cuja trajetória pessoal tenha dimensão pública ou cuja vida esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade." Ora, uma vez que todos são (supostamente) iguais perante a lei, e uma vez que a lei mesma (que está sendo proposta) traça uma discriminação no conjunto de cidadãos, é claro que o próximo passo do deputado teria de explicar essa diferença por ele introduzida. Com efeito, é o que ele faz a seguir.

As personalidades públicas, entendidas como políticos, esportistas, artistas, entre outros, são pessoas cujas trajetórias profissionais e pessoais confundem-se e servem de paradigma para toda a sociedade. Por sua posição de destaque em relação aos demais cidadãos, as pessoas notoriamente conhecidas verificam que suas condutas, sejam pessoais, sejam decorrentes do exercício da profissão, são norteadoras das decisões de diversos seguimentos (sic) sociais, os quais valorizam as escolhas pessoais realizadas por tais personalidades públicas, muitas vezes até reproduzindo-as.

É deveras interessante. Se eu fizer uma pesquisa no edifício em que moro, quantas pessoas saberão da existência do deputado Newton Lima, cuja "posição de destaque em relação aos demais cidadãos" pode, no entanto, ser tida como indubitável? Não muitas. Mas o porteiro todos nós conhecemos. De seu faro depende que o prédio não se incendeie quando um morador de cabeça fraca joga uma guimba de cigarro acesa na canaleta da lixeira; e de seu olhar atento depende que nenhum estranho com más intenções adentre o condomínio. Assim, para nós, moradores, quem de fato tem "posição de destaque em relação aos demais cidadãos" e está inserido "em acontecimentos de interesse da coletividade" é nosso porteiro, e não o nobre deputado, do qual a maioria de nós jamais ouviu falar.

No entanto, é evidente que o deputado Newton Lima está falando de outra coisa. E, para nomear essa coisa, ou essa realidade, a palavra mais adequada é, como veremos, a palavra imitação.

É evidente o protagonismo que um jogador de futebol consagrado ou artista popular exercem sobre a tomada de escolhas das pessoas ditas comuns. Desde a simples adoção da mesma modalidade de corte de cabelos até a inspiração de comportamentos e condutas diretamente ligadas à figura da pessoa pública, percebemos que tais personalidades desempenham papel de verdadeiras pessoas-espelho para um amplo corpo social.

É claro que eu continuo não percebendo como eu haveria de imitar alguém de quem jamais ouvi falar; mais fácil seria que eu imitasse o porteiro que aqui trabalha, porteiro esse que poderia, aliás, servir de inspiração para muita gente, pois é honesto, educado e alegre. Mas para que eu possa examinar com isenção a tese que o deputado apresenta, é preciso que eu a leve a sério e a tome em seus próprios termos. Pois bem. Diz o deputado que "um jogador de futebol consagrado ou artista popular" é imitado pelas "pessoas ditas comuns"; e que essa pessoas "ditas comuns" espelham sua conduta na conduta dessas personalidades privilegiadas.

Mas esperem um momento. O fenômeno da imitação não me é totalmente estranho. Eu mesmo traduzi o livro As Leis Sociais, de Gabriel Tarde. E se eu quisesse resumir tudo muito brevemente, diria que todos nós somos (e sempre fomos) imitadores, e que todos nós – ainda que em maior ou menor grau, de acordo com cada caso – somos, também, inventores ou criadores. Mas quem nós imitamos em primeiro lugar? Nossos pais, mães, irmãos, primos, colegas, professores, sacerdotes desta ou daquela religião, enfim, todos aqueles que conviveram conosco desde tenra idade. Ah, sim; e também artistas e jogadores de futebol. Quando eu afirmo que a Terra gira em torno do Sol, estou sendo atravessado por um fluxo imitativo que remonta a Copérnico; e esse fluxo, transmitido de geração a geração, chegou até a criança que eu fui por meio de um professor.

Ora, isso equivale a dizer que a formação de cada um de nós dependeu, em primeiro lugar, de um pequeno exército de inventores e descobridores que decifraram o mundo tal como nós o conhecemos; mas eles nada seriam para nós se não tivéssemos quem nos ensinasse que não somos capazes de voar (e que, portanto, não podemos pular da janela do nosso quarto); ou quem nos ensinasse a ler e escrever; ou quem nos ensinasse quem foi Copérnico e assim por diante.

Para o deputado Newton Lima, no entanto, não é bem assim. Para ele, políticos, artistas e jogadores de futebol (entre outros) são mais importantes do que Platão, Jesus, Darwin, Proust, Spinoza e Einstein; mais importantes do que nossos pais, mães, irmãos e professores; e muito mais importantes, é claro, do que nós mesmos, pobres seres "comuns", simples "desconhecidos" incapazes de pensar e de criar. Sem eles, mal saberíamos como cortar nossos cabelos ou como orientar nossas próprias vidas.

Nossa legislação, entretanto, não faz qualquer distinção entre pessoas públicas, quer por exercerem cargos políticos, quer por serem artistas ou desportistas famosos, das demais pessoas desconhecidas. Em outros países, como, por exemplo, a Inglaterra e os Estados Unidos, o fato das personalidades frequentarem constantemente a mídia diminui o seu direito de imagem e privacidade, tornando lícitos, por exemplo, a publicação de biografias não autorizadas e a realização de obras audiovisuais sobre elas, sem a necessidade de prévio consentimento.

Ah! Estaremos chegando, enfim, ao fundo do pensamento do deputado? Se há "personalidades" que irradiam, magnânimas, suas inúmeras virtudes sobre a massa ignara, é porque a mídia desempenha esse essencial papel mediador entre os deuses do Olimpo e as sombras do limbo?

Mas voltemos ao texto. De acordo com o deputado Newton Lima, nossa legislação padece de uma grave lacuna: ela não faz nenhuma diferença entre os "famosos" e os "desconhecidos". No entanto, para nossa sorte, o nobre deputado está disposto a redimir esse lapso legislativo. Mas estará ele propondo que tracemos uma diferença de grau, e de grau somente, entre famosos e desconhecidos? Afinal, meu porteiro é bem famoso em meu prédio; o vendedor de água de côco é extremamente famoso em meu bairro; e eu sou famosão aqui em casa. Ao passo que o ilustre deputado Newton Lima, a despeito de toda a sua fama e glória, é totalmente desconhecido para muitos. Seria, pois, uma diferença de grau? Claro que não. Quando o deputado se refere a uma distinção, ele refere-se a uma distinção no sentido forte, ou seja, a uma diferença de natureza. Pois a fama (ou ao menos a fama midiática) é como a graça: ou você tem, ou você não tem.

E, no fim das contas, tudo foi copiado dos ingleses e dos americanos. Mas será realmente necessário copiar essa parte específica da legislação de ingleses e americanos? Não teríamos nada de melhor para copiar deles?

Nesses países, os interesses da coletividade em ter acesso às informações são garantidos pela inexigência de autorização para a publicação de biografias. A utilização do nome ou da imagem de certas pessoas para garantir o amplo acesso à informação é uma realidade, sobretudo a partir de inovações tecnológicas que permitem métodos acessíveis de captação de imagens e sons.

O deputado menciona uma "inexigência de autorização", e aqui ele parece acertar na mosca. O problema é que ele não está propondo uma simples "inexigência", e sim um critério positivo (a distinção entre o famoso e o desconhecido) que permita julgar se cabe (ou não) haver exigência de autorização. E aqui reencontraremos o problema que esbocei num texto anterior: a interpretação desse critério – desse critério duvidoso, senão arbitrário – caberá aos juízes. Um tanto a contragosto, vou citar a mim mesmo:

"Só que essa distinção... não resolve o problema. Ela apenas o empurra para a frente, ou seja, joga-o no colo do poder judiciário, que tem problemas mais importantes para resolver. Pois não se trata apenas da necessidade de definir quem é "importante" ou "publicamente relevante" e quem não é. A vida de todas as pessoas que o deputado define como possuindo "dimensão pública" está cercada de outras vidas que, supostamente, não possuiriam essa dimensão. Essa simples brecha dará ensejo a todo tipo de querelas jurídicas na medida em que essas pessoas "dos bastidores" sejam mencionadas nas biografias dos famosos. E quando esses casos surgirem, os juízes terão de decidir se é ou não justificável mencionar [numa biografia] os acontecimentos em que a vida daquele "anônimo" se misturava com a vida da "celebridade". Mais querelas inúteis e improdutivas: um juiz decidirá que a professora primária pode ser citada, mas não a prima que o cidadão engravidou... E depois o juiz de segunda instância decidirá outra coisa..."

Para "garantir o amplo acesso à informação", bastaria não colocar obstáculos à liberdade de expressão. No entanto, obviamente, a ausência total de obstáculos esbarraria no direito à privacidade. Assim, é impossível não colocar nenhum obstáculo, sobretudo quando estamos nos referindo a "inovações tecnológicas que permitem métodos acessíveis de captação de imagens e sons". E aqui, por incrível que pareça, o deputado se equivoca novamente. Além de liberar as biografias a medias (como se as biografias, que são relatos de terceiros, realmente pudessem invadir a privacidade de alguém), ele parece não compreender que tudo o que é captado no momento presente é, ao menos potencialmente, uma invasão de privacidade, e portanto jamais poderia ser colocado no mesmo plano do discurso biográfico.

Tomemos um exemplo tão absurdo quanto radical. Suponhamos que alguém resolva que é de interesse público saber como uma determinada atriz se comporta (ou se descompõe) na cama. Teria eu o direito de usar uma "inovação tecnológica" (como, por exemplo, um drone) para filmá-la? A resposta é fácil: ainda que a divulgação pública do desempenho sexual dessa atriz fosse capaz de inspirar positivamente quinze gerações de amantes, é claro que eu não teria esse direito. Tomemos outro exemplo, já um pouco menos fácil do que o primeiro: teria eu o direito de plantar uma escuta na casa de um gênio muito conhecido sob o pretexto de que tudo o que ele diz pode ser publicamente relevante? E as aulas de um professor? Posso filmá-las ou gravá-las sem que ele o saiba? As aulas de um grande professor acaso não possuem uma "dimensão pública", não estão elas inseridas "em acontecimentos de interesse da coletividade"? Ou estaria ele falando com as paredes? Mas e se o professor quiser falar somente aos seus alunos, como todos os professores fizeram ao longo de séculos e séculos? Não teria ele esse direito? E agora? Ganharemos por simplesmente ter acesso às gravações de suas aulas? Ou perderemos, já que ele, ao saber que está sendo filmado ou gravado, deixará de dizer aquela última frase que abriria todo um mundo, talvez perigoso, talvez sublime, de novas possibilidades?

Não custa lembrar que eu, num breve artigo chamado A privacidade e as biografias não autorizadas, fiz um esforço para traçar as verdadeiras diferenças de natureza que seriam capazes de resolver esse problema, ou ao menos de indicar o caminho pelo qual ele pode ser resolvido. Há uma diferença de natureza entre escrever uma biografia e filmar (e/ou gravar áudio), tal como há uma diferença de natureza entre passado e presente, tal como há uma diferença de natureza entre a experiência privada e os relatos a respeito de experiências compartilhadas.

Há de se lembrar que a inexigência de autorização para publicação de obra biográfica não significa atentado à dignidade da pessoa humana, garantido pelo artigo 1º, III, da Constituição Federal. Bem como permanece garantido o direito ao nome, previsto pelo artigo 17 do Código Civil. 

Mas é claro que não. Todo mundo tem o direito de escrever sobre seja lá o que for e de contar a história do que bem entender. Ao mesmo tempo, todo mundo é responsável pelo que diz. Simples assim. 

Discute-se, no presente projeto de lei, a afastabilidade da exigência de autorização para a elaboração de obras biográficas sobre personalidades notoriamente conhecidas. Trata-se da necessidade de afastar os resquícios legais da censura, ainda presente no artigo 20 do Código Civil e evitar, portanto, o cerceamento do direito de informação, tão caro aos brasileiros, após anos de ditadura.

Mas apenas "sobre personalidades notoriamente conhecidas", senhor deputado? E se eu quiser escrever sobre a vida de uma catadora de lixo? Ou sobre a vida de um porteiro? Vossa Excelência realmente acha que não temos absolutamente nada a aprender com porteiros e catadoras de lixo? Afinal, o senhor não é petista?

As normas constitucionais brasileiras, em especial aquelas estabelecidas no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, concedem hierarquia e importância idênticas aos direitos individuais de imagem, privacidade, honra e nome e aos direitos individuais de liberdade de expressão e direito à informação. Este último também aparece no elenco dos direitos coletivos, ligado ao capítulo da Comunicação Social.

Sim, e não é tão difícil assim conciliar privacidade e liberdade de expressão. Já temos até um ponto de partida bastante razoável.

Como de praxe, conflitos eventuais destes direitos devem ser dirimidos no âmbito da Justiça, onde os tribunais proferem suas decisões à luz dos fatos concretos.

Exato. Entretanto, como o problema foi mal formulado, e a lei mal elaborada, haverá muito mais querelas a dirimir no âmbito da Justiça do que seria necessário ou desejável. Um legislador não é alguém que simplesmente escreve uma lei para tentar, bem ou mal, acomodar as coisas; seu trabalho, e se trata realmente de um trabalho árduo, é antecipar-se a todos os questionamentos que irão surgir caso a própria lei não formule com precisão o problema que ela tenta equacionar. Por falar nisso, como ficará, afinal, o trecho em questão do Código Civil caso o Projeto de Lei 393/11 seja aprovado? Ficará assim:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

§ 1º Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

§ 2° A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.


Não é necessário ser jurista ou mesmo advogado (e eu não sou nenhum dos dois) para perceber que a redação acima talvez seja capaz de satisfazer os biógrafos de profissão (sobretudo se eles não atentarem para os problemas que levantei), mas será incapaz de dar aos juízes um norte seguro para julgar os casos particulares que estarão situados naquela zona cinzenta entre o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão. Pensem no filme Estamira, de Marcos Prado, ou pensem nos exemplos da professora primária e da prima grávida, e vocês entenderão imediatamente do que eu estou falando.

 * * * 

Para finalizar, creio que é importante assinalar que o deputado Newton Lima Neto (PT-SP) não é ex-palhaço ou ex-jogador de futebol. Evidentemente, não tenho nada contra ex-palhaços e ex-jogadores de futebol... E nada tenho, tampouco, contra a eleição deles para cargos públicos. Mas o fato é que o deputado Newton Lima Neto é professor universitário, Doutor Honoris Causa e ex-Reitor da UFSCAR, a universidade federal situada na simpática cidade de São Carlos, onde tive a oportunidade de passar uma tarde com o saudoso filósofo Bento Prado Jr. Portanto, não estamos falando aqui de um homem despreparado. É antes o oposto: trata-se de um homem muito bem preparado – ainda que sua formação tenha sido na área de Engenharia Química, e não, por exemplo, em Direito ou Filosofia. Diante disso, fica a pergunta: como pode um homem desse quilate, e além de tudo um político de esquerda, compreender tão mal a realidade social?

Para responder essa pergunta, basta que tenhamos em mente como o típico intelectual de esquerda enxerga a si mesmo e ao mundo em que vive. A classe operária é "em si" (possui um papel determinado nas relações sociais de produção), mas não é "para si", ou seja, não tem, ou não tem necessariamente, consciência de seu papel revolucionário. E quem é a consciência da classe revolucionária? Quem é a vanguarda que deverá guiá-la nessa passagem do "em si" ao "para si"? Precisamente o intelectual de esquerda.

Somos muito ingênuos ao pensar que somente a "direita" pode ser autoritária. O autoritarismo não é apanágio de nenhuma corrente ou orientação política. Eu mesmo conheço um "anarquista" autoritário... Desse ponto de vista, torna-se extremamente fácil compreender como um intelectual de esquerda chegou a produzir o texto que acabei de comentar. Para ele, o cidadão "dito comum", o "desconhecido" que (supostamente) possui somente uma dimensão "privada" (como se isso fosse possível), não passa de massa de manobra para fins que apenas ele, intelectual, conhece e compreende.

É uma posição muito confortável, tão confortável quanto a do religioso para o qual basta obedecer mecanicamente aos dez mandamentos ou à sharia. O intelectual (seja ele de esquerda ou de direita) possui a verdade e o sentido da vida; não só o sentido de sua vida, o que seria muito bom, mas também o sentido da vida alheia; a bem da verdade, ele vai muito além, pois conhece o sentido da história humana como totalidade. E tudo isso é extremamente confortável porque basta somar dois e dois, ou seja, assimilar uma doutrina ou um programa, "tomar partido" e... voilà, você se torna um líder, um herói capaz de conduzir o destino humano, um "paradigma" para a sociedade, alguém cuja trajetória possui "dimensão pública" e está plenamente "inserida em acontecimentos de interesse da coletividade".

Minha utopia, se é que eu tenho uma, é muito diferente. Eu trabalho em silêncio para que sobrevenha, um dia, uma sociedade, ou melhor ainda, uma humanidade composta por homens livres. Mas eu seria o último dos idiotas se achasse que poderia contribuir para a superação da condição humana sendo, eu mesmo, um escravo. E seria o penúltimo dos idiotas se achasse que poderia conquistar a liberdade simplesmente repetindo as palavras dos raros homens livres que existiram antes de mim; já vi homens mais preparados e possivelmente mais capazes do que eu falharem miseravelmente. Por fim, eu seria o antepenúltimo dos idiotas se não percebesse que o meu esforço para conquistar a liberdade não é e jamais será apenas "meu", mas conecta-se por meio de milhões de fios invisíveis ao esforço genérico de todos os homens. O único erro fatal nessa matéria é acreditar que podemos ou devemos conduzir os demais. Pois, por definição, jamais será livre um homem incapaz de conduzir-se a si mesmo.

10.5.14

Universidade pública e gratuita

Em recente coluna na Folha, Hélio Schwartsman explica que se tornou um defensor do fim da gratuidade do ensino público superior por causa de um argumento "decisivo":

"O argumento decisivo para eu ter mudado de posição é o do impacto financeiro que a conclusão de um  curso universitário propicia. Embora a formação do médico ou de qualquer outro profissional seja um  investimento público (interessa à sociedade tê-los), é grande a apropriação privada que ocorre devido à  graduação. Um médico, afinal, ganha facilmente 15 vezes mais do que uma pessoa sem estudo superior.  Simplesmente não faz sentido querer que o último subsidie o primeiro."

"Simplesmente não faz sentido". Ou seja, um aluno de medicina passa seis anos estudando para concluir o curso, depois leva de dois a cinco anos fazendo residência médica para tornar-se um especialista, e depois se torna apto para curar doenças e, no limite, salvar vidas. Mas nós, contribuintes, devemos pensar que simplesmente não faz sentido destinar uma pequena parte de nossos impostos para dar a uma pessoa pobre a oportunidade de seguir a carreira médica. E por quê? Porque esse profissional irá ganhar bem mais do que nós. Que ele tenha renunciado a tantas coisas para estudar e seguir estudando (por toda a vida, se for um bom profissional) não conta. Que ele esteja apto a simplesmente salvar nossas vidas numa eventualidade qualquer também não conta. O que realmente importa (o decisivo) é que ele, vejam só, terá estudado às nossas custas e, por fim, ganhará mais dinheiro do que nós.

Não é difícil perceber o que se oculta nesse arremedo de pensamento que valoriza, acima de tudo, o aspecto puramente econômico das coisas: o ressentimento. E eu me arriscaria a dizer que todo homem que raciocine em termos puramente econômicos, seja ele liberal ou socialista, é movido pelo ressentimento. É por isso que eu sinto calafrios quando vejo um liberal defender o fim da gratuidade no ensino público, mas também quando vejo um socialista defender a estatização da economia.

* * *

Os filósofos são os médicos da civilização. Mas como eles são (geralmente) modestos, e como a civilização não parece estar preocupada em curar-se, filósofos (geralmente) não ganham muito dinheiro. No entanto, talvez pelo fato mesmo de serem filósofos, eles não se ressentem com isso. Mas deixemos de lado esses seres que praticamente não despertam o interesse de ninguém. Falemos dos professores do ensino fundamental. Falemos de um fato ocorrido há menos de quinze dias num colégio público da zona sul do Rio de Janeiro.

Aconteceu numa aula de educação artística para a oitava série. Técnica: pintura a guache. A professora dá uma bronca num menino porque ele não estava "segurando direito" o pincel. Deve-se segurar um pincel, explicou ela, tal como se segura uma caneta.

Só que isso não é verdade. Um pintor só segura um pincel "como uma caneta" no momento de traçar os detalhes mais delicados de um quadro. E sequer existe uma maneira "correta" de segurar um pincel. Pode-se, por exemplo, segurá-lo como quem aponta uma faca para alguém; mas também é possível segurá-lo de várias outras maneiras. E há razões anatômicas, relativas à liberdade do gesto, para que seja assim. Depende do traço, da figura; por exemplo, como segurar o pincel para pintar uma elipse? É um problema que cada pintor deverá resolver por sua conta; não existem regras definitivas. Assim, o garoto, talvez por pura intuição, segurou o pincel como um pintor o faria. Mas sua professora, que obviamente nunca pintou na vida, imediatamente "ensinou-lhe" a maneira "correta" e lhe deu o beijo da morte.

* * *

Como se vê, nem sempre nossos professores primam pela excelência. Talvez se possa dizer o mesmo de nossos médicos e de tantos outros profissionais. Mas uma coisa é certa: a cobrança de mensalidades no ensino público superior seria um desastre completo. A procura dos cursos de licenciatura é cada vez menor. Além da baixa remuneração, os professores enfrentam a ausência de prestígio social, e há uma falta crônica de professores no país que só tende a acentuar-se. A meu ver, entre tantos outros, esse é um dos indícios mais seguros de que o Brasil está caminhando para a barbárie.

8.5.14

A comédia das biografias não autorizadas

1. A notícia

O plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (6) o Projeto de Lei 393/11, do deputado Newton Lima (PT-SP), que permite a publicação de biografias de personalidades públicas sem necessidade de autorização do biografado ou de seus descendentes. (Fonte: Câmara Notícias; grifo meu.)

2. O texto da lei (artigo 20 da Lei n° 10.406)

§ 2° A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade. (Fonte: PL 393/11; grifo meu.)

3. A surpresa

Mas esperem um momento: existirá alguma pessoa cuja trajetória não tenha dimensão pública, ou que não esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade? Se os lixeiros que limpam meu bairro pararem de trabalhar, haverá acúmulo de lixo nas calçadas e, consequentemente, proliferação de bactérias, insetos e ratos; depois virão as doenças e, no limite, epidemias. Prevenir doenças e epidemias não seria uma atividade de "interesse da comunidade"? Acaso faltaria "dimensão pública" à trajetória profissional dos lixeiros?

4. O (falso) problema

Suponhamos que alguém produza a biografia de um gari e que os parentes deste, possivelmente orientados por um advogado ganancioso, resolvam entrar na justiça contra a obra. Pouco importam os hipotéticos argumentos do hipotético advogado; que o leitor, se lhe apraz, realize por si mesmo esse mórbido exercício de imaginação. Que fará o juiz diante de tal caso? Com que peso ele avaliará se a vida de um cidadão efetivamente goza de "dimensão pública" ou está inserida "em acontecimentos de interesse da coletividade"? Que critérios ele utilizará? O senso comum, os jornais, a TV, a Internet, o Ibope? Será justo pedir a um juiz que forneça uma solução para um falso problema? Não seria mais sensato poupá-lo de tão ingrata tarefa e, sobretudo, poupar a sobrecarregada justiça brasileira desse tipo de processo?

5. A objeção

"Ninguém que não sofra de sérias deficiências cognitivas há de negar que o trabalho de um lixeiro é importante e até mesmo vital. Mas você parece ter esquecido um detalhe: ninguém faria a biografia de um gari."

6. A resposta à objeção

Não? Então você não assistiu ao filme Estamira, que retratou a vida de uma catadora de lixo de Gramacho, no Rio de Janeiro. Esta mulher negra, pobre e esquizofrênica, que como tantas outras foi vítima de violência sexual na juventude, fazia um esforço gigantesco para pensar. E como o espírito é aquilo que de pouco tira muito e de nada tira alguma coisa, Estamira pensava, afetando de algum modo a vida das pessoas que a conheciam; e passou a afetar muitas outras vidas ao participar do documentário de Marcos Prado. E agora? Estaria "liberada" a biografia de Estamira? Ou não? Estaria liberada depois do filme, mas não antes? E quanto ao próprio filme, que aborda a vida de Estamira? Estaria liberado?

7. O (verdadeiro) problema

Mas, afinal, por que o deputado Newton Lima introduziu no texto da lei essa distinção entre pessoas com "dimensão pública" e pessoas "desconhecidas" ou (as palavras são dele) "ditas comuns"? Existem ao menos duas respostas a essa pergunta. A segunda resposta, a meu ver a mais importante, depende de uma análise do texto do deputado, e será dada na próxima postagem. A primeira resposta é a mais óbvia. Newton Lima, que certamente não leu o texto A privacidade e as biografias não autorizadas, acredita que as biografias de algum modo ferem a privacidade dos biografados, tese que é absolutamente falsa. Por isso, ou seja, por não ter compreendido o que estava em jogo nesse debate, ele teve de traçar uma distinção arbitrária para resolver o problema.

Só que essa distinção, além de ser intrinsecamente nociva, não resolve o problema. Ela apenas o empurra para a frente, ou seja, joga-o no colo do poder judiciário, que tem problemas mais importantes para resolver. Pois não se trata apenas da necessidade de definir quem é "importante" ou "publicamente relevante" e quem não é. A vida de todas as pessoas que o deputado define como possuindo "dimensão pública" está cercada de outras vidas que, supostamente, não possuiriam essa dimensão. Essa simples brecha dará ensejo a todo tipo de querelas jurídicas na medida em que essas pessoas "dos bastidores" sejam mencionadas nas biografias dos famosos. E quando esses casos surgirem, os juízes terão de decidir se é ou não justificável mencionar os acontecimentos em que a vida daquele "anônimo" se misturava com a vida da "celebridade". Mais querelas inúteis e improdutivas: um juiz decidirá que a professora primária pode ser citada, mas não a prima que o cidadão engravidou... E depois o juiz de segunda instância decidirá outra coisa...

Caso queira preparar-se para a próxima postagem, o leitor poderá ler na íntegra a  PL 393/11. São apenas três páginas.



A privacidade e as biografias não autorizadas (versão final)

O segredo está no mais íntimo âmago do poder.
Elias Canetti

De acordo com o Código Civil brasileiro, um escritor só pode publicar uma biografia obtendo uma autorização do biografado ou de seus herdeiros. Tal exigência contradiz o direito à liberdade de expressão? A polêmica em torno desse problema não revela apenas uma contradição entre o artigo 20 do Código Civil e a Constituição brasileira. Acima de tudo, ela manifesta a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre dois conceitos fundamentais para a vida (e a vitalidade) de qualquer sociedade democrática: liberdade de expressão e privacidade. Até que ponto o direito à privacidade pode limitar o direito à liberdade de expressão e vice-versa?

Antes de mais nada, precisamos fazer um esforço para compreender, neles mesmos, os conceitos envolvidos. Por que digo neles mesmos? Porque tentar entender um determinado conceito por meio de outro conceito é, por assim dizer, o caminho natural da inteligência, mas traz poucos resultados positivos. Não me darei ao trabalho de conceituar a liberdade de expressão. Vou me concentrar no conceito de privacidade, que me parece ser o ponto realmente decisivo neste debate.

O termo "privacidade", ensina o Houaiss, é um anglicismo de uso recente em nossa língua, provavelmente introduzido nos anos 70. Vejamos (em tradução livre) o que diz o dicionário Oxford a respeito do termo privacy: "(1.a) O estado ou condição de estar afastado do convívio dos outros, ou do interesse público; reclusão. (1.b) O estado ou condição de estar sozinho, sem ser perturbado, ou livre da atenção pública, como uma questão de escolha ou de direito; estar livre de interferência ou intrusão."

Confere. É bem assim que eu compreendo a palavra. Mas é claro que uma simples definição de dicionário não poderia nos fornecer tudo o que precisamos para compreender o conceito; ela não passa de um ponto de partida. Passar da palavra a algo semelhante a um conceito irá requerer algum esforço. Iniciemos esse esforço de forma bem suave, usando a imaginação.

Neste exato momento, estou sozinho em meu quarto. A porta e as cortinas estão cerradas, e se resolvo ficar pelado ou plantar bananeira, ou ambos, ninguém tem nada a ver com isso. Não há testemunhas; ou melhor, sou a única testemunha de mim mesmo. Penso, respiro e vivo em segredo. Notem que eu delimitei um espaço – este quarto – e também um tempo: neste exato momento. Se eu sair deste quarto, encontrarei minha mulher; e caso ela entre no quarto, este "exato momento" terá sido substituído por outro, no qual eu também já não estarei sozinho.

Assim, dentro do meu quarto ou fora dele, saí de minha solidão e passei a conversar com minha mulher. Devemos supor que minha privacidade foi suprimida? Não necessariamente. Pode ser que eu me sinta tão à vontade diante de minha mulher que, ao encontrá-la, é como se eu estivesse comigo mesmo. Obviamente, não estou falando de nenhuma tenebrosa "identificação amorosa", mas de intimidade. No entanto, se no momento seguinte recebermos uma visita, será possível dizer que minha (ou nossa) privacidade foi mais ou menos cancelada.

Agora estou conversando com minha mulher na praia. Nós dois estamos em público; há centenas de pessoas ao nosso redor e, ainda assim, continuamos nos sentindo à vontade para conversar, pois nos achamos suficientemente longe dos demais, que não escutam o que dizemos. É um perfeito momento de privacidade, similar a esses em que estamos a sós com nossos pensamentos no meio da multidão.

Vejamos alguns exemplos clássicos de privacidade. Tudo o que pensei e imaginei é privado: a não ser, é claro, que eu tenha revelado a alguém meus pensamentos. Tudo que escrevi e guardei numa gaveta é privado: a não ser, é claro, que bisbilhotem minha gaveta ou que eu mostre esses escritos a alguém. Tudo o que fiz sozinho, longe de qualquer testemunha, é privado: a não ser que eu tenha narrado tais atos a alguém.

Pois bem. A privacidade possui uma característica que ninguém (ao que eu saiba) parece ter notado com suficiente atenção: tal como a liberdade, a privacidade só pode ser exercida aqui e agora. E apenas aqui e agora (ou apenas num aqui e agora qualquer) ela pode ser evadida ou invadida.

Voltemos aos exemplos "clássicos" para ilustrar essa tese. Digamos que eu pensei ou fiz alguma coisa há dez anos, e que só eu sei o que pensei ou fiz. Caso eu revele esse ato ou pensamento a um amigo, não é meu passado que estarei expondo? Sim, é claro. Mas essa evasão de privacidade ocorrerá num aqui e agora determinado: precisamente aquele no qual revelei meu passado. Do mesmo modo, se algum bisbilhoteiro abrir minha gaveta para ler aquele horrível poema inédito escrito há dez anos, a invasão de privacidade ocorrerá no aqui e agora que delimita o ato criminoso do intrometido. É impossível negar que meu poema faz parte de meu passado, aliás, de um passado que eu gostaria de esquecer; mas a invasão de privacidade terá acontecido no momento preciso em que o intruso o leu. Não podemos esquecer, porém, deste importante detalhe: ele só pôde fazer isso porque eu escrevi o maldito poema. Se eu o tivesse decorado, em vez de vertê-lo no papel, o abelhudo teria se deparado com uma gaveta vazia.

Não será exatamente por isso que o homem que guarda segredos vive sempre receoso de, num momento ou noutro, se trair? Não é por essa razão que o homem que usa uma máscara sempre terá medo de vê-la cair ou ser arrancada à força? Apenas a morte (e a destruição de provas documentais, etc.) é capaz de transformar o segredo em puro esquecimento. O segredo, tal como a privacidade, se dá num perpétuo aqui e agora. O homem que, como eu, escreve poemas abomináveis, sempre poderá beber um gole a mais e cair na tentação de recitá-los em público; e aí será tarde demais. Eu só poderia salvar minha reputação apagando a memória de todas as testemunhas, ou então eliminando-as sumariamente.

Numa entrevista concedida de improviso nas ruas de Paris, Chico Buarque disse que "se for levar isso [a liberdade de expressão] ao extremo, o sujeito é obrigado a deixar invadirem sua casa, fazerem fotografias de cueca, exporem sua mulher em trajes mínimos, sem poder recorrer." Se você acha que Chico Buarque mostrou a posição dos defensores da liberdade de expressão de maneira caricatural (como se eles fossem capazes de invocá-la como um argumento capaz de autorizar invasões de domicílio), você acertou; mas apenas arranhou a superfície. Na verdade, Chico acabou revelando muito mais do que gostaria de revelar, já que existem razões profundas para o fato de ter mencionado justamente a fotografia como exemplo.

Por definição, toda fotografia é colhida aqui e agora. Isso não basta para fazer de toda fotografia uma invasão de privacidade, mas basta para fazer de cada fotografia uma invasão de privacidade em potencial. E ela é potencialmente invasiva de uma dupla maneira: porque colhida aqui e agora, e porque pode ser tirada sem o consentimento do fotografado. Obtida dessa forma, ela se torna um caso particular de espionagem: não sou eu que abro mão de minha privacidade; é um outro que o faz em meu lugar, é um outro que decide por mim.

É por isso que o ator Pedro Cardoso reclama veementemente dos paparazzi. Ele certamente não se importa de ser fotografado durante uma entrevista, mas não quer ser fotografado, digamos, levando uma filha ao colégio. Só que ensinar a um paparazzo a diferença de sentido entre estrela da manhã e estrela da tarde, ou entre o artista público e o ser humano privado, é uma tarefa ingrata. É sutil demais para eles. Tudo o que eles conseguem enxergar é o planeta Vênus, a materialidade atual do aqui e agora. E tudo o que eles querem é roubar-lhe uma alma.

Assim, se Chico Buarque foi ardiloso a ponto de citar fotografias num debate sobre biografias, que são essencialmente peças discursivas e não álbuns de retratos, é porque ele sabia ou pressentia que esse truque verbal era capaz de dar ao seu argumento uma aparência de força. E ele tinha razão.

Só que biografias não são fotografias e não têm por objeto o aqui e agora de um indivíduo. E essa é a distinção essencial para o problema em questão: a distinção entre o aqui e agora (no qual exerço minha privacidade) e aquilo que é objeto de pesquisa histórica: o passado, ou melhor, os relatos sobre o passado a partir dos quais o historiador (ou biógrafo) produz seu próprio discurso. Meu aqui e agora somente é privado se eu não o compartilho com ninguém, ou se eu o compartilho na intimidade; e meu passado somente é privado na medida em que ele foi e continua sendo privado. Cabe a mim decidir – sempre aqui e agora – o que irei compartilhar, e com quem; o que mostra, mais uma vez, o parentesco profundo entre privacidade e liberdade.

As ameaças à privacidade vão muito além da fotografia. Elas são sérias e exigem soluções específicas. O que não podemos, em nenhuma hipótese, é confundir tudo e reivindicar um controle a priori sobre o discurso alheio a nosso respeito. Ora, é precisamente esse controle prévio do biografado (ou de seus herdeiros) sobre o discurso alheio, lamentavelmente estabelecido na atual versão do Código Civil brasileiro, que alguns dos mais ilustres nomes da música popular brasileira – entre eles Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Mautner, Roberto Carlos e Djavan – defenderam.

Quando Francisco Bosco pergunta: "um indivíduo deve ter ou não soberania decisória sobre a dimensão privada de sua vida?", devemos estar prontos para dar não uma, mas duas respostas. Se Francisco se refere ao aqui e agora, é claro que o indivíduo deve ser soberano e que sua privacidade deve ser respeitada e protegida até as últimas conseqüências. Mas se Francisco se refere ao passado, e não apenas ao passado, mas a um passado que foi compartilhado com outras pessoas e que pode, portanto, ser objeto de um relato, então a questão simplesmente não se coloca, pois todo passado que o indivíduo compartilhou não pertence somente a ele, e apenas uma gigantesca queima de arquivo lhe devolveria a privacidade perdida.

Peço desculpas aos leitores sofisticados que não gostaram de constatar que eu perdi a oportunidade de enfeitar o pavão escrevendo hic et nunc ou, quem sabe, "blocos atuais de espaço-tempo". Aos demais, que ainda apreciam a simplicidade, eis aqui a diretiva que tudo resume: se há relatos, não é privado; e se é privado, não há relatos (estando, por isso mesmo, inteiramente fora do alcance dos biógrafos). Para lidar com as exceções mais clamorosas a essa regra simples (calúnias, difamações, relatos mentirosos), basta recorrer à lei. Se pensarmos que qualquer anônimo está permanentemente sujeito a maledicências que podem prejudicá-lo gravemente, e que é bastante difícil levar um maledicente a julgamento, será preciso admitir que qualquer personalidade biografável estará sempre, por princípio, numa posição muito mais cômoda; afinal, ao publicar seu livro, o biógrafo de má-fé, ou de mau gosto, ou simplesmente desleixado, terá produzido uma prova cabal contra si mesmo. Não tenho nenhuma dúvida de que os juízes do Supremo Tribunal Federal irão, em decisão unânime, defender a liberdade de expressão, consagrada na Constituição brasileira, e anular o infeliz artigo do Código Civil de 2002.



NOTA: A primeira versão deste artigo foi postada no meu blogue em 23/10/2013, no auge da “polêmica das biografias”. Esta versão foi revisada e ligeiramente modificada para publicação na revista InComunidade.
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