29.12.14

Mas nem que a vaca tussa

Nas duas matérias publicadas até agora na Folha de São Paulo sobre a mais recente medida provisória do governo, repete-se, palavra por palavra, a mesma frase:
"Essas mudanças só afetam futuros beneficiários, tanto do setor público como do INSS. Não atingem quem já recebe esses recursos."
Pode-se ler essa frase aqui e aqui, e eu poderia apostar que ela continuará sendo repetida em futuras notícias sobre o tema, seja na Folha, seja em outros veículos. Eu diria que se trata de uma frase-chave plantada nas matérias para, digamos, lubrificar a medida provisória em  questão. Afinal, se direitos adquiridos forem preservados, tudo ficará bem, não é mesmo?

O problema é que, ao menos no caso das pensões por morte deixadas por servidores públicos, essa frase é inteiramente falaciosa. Ao estabelecer uma distinção entre "beneficiários atuais" e "beneficiários futuros", ela pretende sugerir que retirar direitos dos "beneficiários futuros" seria inteiramente legal e legítimo. Vejamos se essa posição resiste a um exame simples.

Primeira questão: o direito relacionado a um benefício como a pensão pertence apenas àquele que recebe ou receberá o dinheiro? Não. Ao contrário, ele pertence em primeiro lugar ao servidor público que deixará, ao morrer, uma pensão para o beneficiário.

Esse ponto é muito fácil de entender. Para o beneficiário, a pensão é garantia de sobrevivência material; para o servidor público, essa mesma pensão é a oportunidade de morrer despreocupado com a sobrevivência de quem ele mais ama. E essa tranqüilidade, claro está, é um direito trabalhista, e um direito adquirido. Ela não saiu "de graça". Para usufruir desse direito o servidor público abriu mão de outros direitos, como, por exemplo, o FGTS.

Segunda questão: o que se tornará o enunciado-vaselina se (1) aceitarmos a resposta acima à primeira questão e (2) o aplicarmos não aos beneficiários que recebem dinheiro (as viúvas ou viúvos), mas a esses beneficiários especiais que são os próprios servidores públicos? Ela se tornará o seguinte:
"Essas mudanças só afetam os servidores que ainda não morreram... Não atingem quem já morreu e já deixou pensão."
Seria cômico, não? Ao menos o PT admite, para os mortos, algum direito adquirido. Quanto aos vivos, bem, estes que se virem. A vaca tosse e a caravana ladra.

Em resumo, é como se o direito pertencesse apenas a um dos lados da equação, o lado de quem recebe o dinheiro da pensão. É como se todos os sentimentos e expectativas do servidor concernentes a esse direito em particular não existissem. A rigor, é como se os servidores ainda vivos, aposentados ou não, nada significassem: é como se eles já estivessem mortos, ou nem isso, posto que os mortos terão, ao menos, seus direitos adquiridos respeitados.

Conclusão

Alguns pontos da medida são positivos. Outros são medonhos. Mudar a legislação criteriosamente é legítimo. O que não é legítimo é subtrair direitos adquiridos dos trabalhadores.

Como se governa no Brasil? Improvisando leis mal pensadas, mal formuladas, e defendendo-as com falácias que não resistem ao mais simples exame. Não é ideologia. É um problema cultural.


ADENDO (30/12/2014, 7:45h)

A Folha confirmou o que eu afirmei no início desta postagem. De brinde, ela revelou de quem era orientação para "repetir [a mentira de] que só futuros beneficiários serão afetados": era da própria Dilma. E a Folha obedeceu bravamente. Veja abaixo.

A maior preocupação do governo com as mudanças no seguro-desemprego e em pensões por morte anunciadas nesta segunda-feira (29) era bater na tecla de que não são medidas que reduzem direitos, mas corrigem distorções. Após hesitar durante dias, temendo o caráter impopular do pacote, Dilma Rousseff concordou com a adoção das medidas, mas instruiu auxiliares a dar exemplos didáticos de como as regras alteradas permitiam abusos e repetir que só futuros beneficiários serão afetados.

(grifo meu)

26.12.14

O acaso e a necessidade

"Quando pensamos no imenso caminho percorrido pela evolução desde talvez três bilhões de anos, na prodigiosa riqueza das estruturas que ela criou, na miraculosa eficiência das performances dos seres vivos, da bactéria ao homem, podemo-nos surpreender a duvidar de que tudo isso seja o produto de uma enorme loteria, tirando ao acaso números entre os quais uma seleção cega designou raros ganhadores."

Na página 157 da tradução brasileira do livro O acaso e a necessidade, de Jacques Monod (Editora Vozes), se lê, no trecho acima, teoria em lugar de loteria. Consultei a 3ª edição (1976) e a 4ª edição (1989) e ambas contêm o mesmo erro. Corrigido de acordo com Le hasard et la nécessité, Ed. du Seuil, Paris, 1970, p. 155.

22.12.14

Design inteligente?

Não. Como disse anteriormente, nunca estudei os teóricos do chamado "design inteligente". E na época dessa postagem eu nem mesmo sabia que adeptos do design inteligente estavam prestes a realizar, em Campinas, o primeiro congresso brasileiro sobre o tema.

Pois bem. Maurício Tuffani publicou ontem um excelente artigo sobre o assunto. Eu diria até que se trata de um texto obrigatório. Chamo a atenção para este trecho, retirado não do corpo do artigo, mas de uma resposta de Tuffani ao comentário de um leitor:
(...) a física newtoniana não foi abandonada, pois seu modelo explicativo continua válido para os fenômenos de nosso cotidiano. Pode realmente vir a ser o caso de a evolução pela seleção natural ser suplantada por uma outra teoria, e não haverá demérito nenhum nisso. Mas terá de ser uma teoria que amplie [grifo meu] a explicação dos fenômenos, e não a TDI [teoria do design inteligente] com sua agenda negativa.
A posição de Tuffani parece-me compatível com o que eu afirmei na postagem mencionada:
Doravante, o único debate interessante é aquele que diz respeito às causas da evolução. Teríamos aqui, a princípio, três respostas possíveis: (1) Deus; (2) Acaso e necessidade (seleção natural); (3) Vontade, acaso e necessidade (vitalismo). Essa terceira alternativa introduz algum tipo de causalidade mental na evolução dos seres vivos (...)
Percebe-se claramente no trecho acima que eu me esforço para conceber a "terceira alternativa" como um vitalismo que integra (em vez de excluir) o binômio acaso e necessidade. Esse vitalismo pertence, evidentemente, ao campo da especulação filosófica: ele não é teologia nem ciência, mas filosofia. E ainda está, em larga medida, por ser inventado.

Daqui a alguns meses voltarei a esse tema.

9.12.14

Molecular Biology of the Cell

No final dos anos 80 eu não tinha dinheiro suficiente para pagar à vista um manual como Molecular Biology of the Cell. Foi a prazo, em seis suadas prestações, que consegui comprar a tradução espanhola da primeira edição. Nessa época, e até a terceira edição, James D. Watson foi um dos colaboradores do livro.

Agora Watson encabeça a equipe que escreve Molecular Biology of the Gene, cuja sétima edição foi publicada recentemente, em 2013. O momento também é propício para a compra da sexta edição de Molecular Biology of the Cell, que saiu do forno agorinha mesmo, em novembro de 2014. É um livro primoroso, bem escrito e muito bem organizado.

Os dois livros podem ser baixados via torrent aqui e aqui; e via web aqui ou (ambos) aqui.


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