31.7.08

Gabriel Tarde

13.7.08

quem sou eu?

Quem faz a pergunta "quem sou eu?" em busca de um significado qualquer já está derrotado de antemão. Não existe resposta a essa pergunta senão no terreno da ficção, do embuste, da má-fé. Partimos como orgulhosos guerreiros em busca do autoconhecimento e terminamos como Narciso, contemplando uma imagem, uma simples imagem, e não é por acaso que terminamos nos afogando nela. A quem nos pergunta "quem é você?" devemos responder: "eu sou minhas forças, minhas idéias, meus afetos, e sobretudo os investimentos concretos de tudo isso num campo social não menos concreto (desejo). Tudo isso muda e se reconfigura o tempo inteiro e portanto não pode ser encerrado numa imagem ou numa definição." É claro que, se não tivermos paciência suficiente, poderemos responder: "eu sou um cheiro de cravo nos cabelos da noite", ou então "eu sou a trigésima quinta nervura na asa esquerda daquela mosca que acaba de morrer".

Nós sempre teremos os problemas que merecemos de acordo com os nossos investimentos de desejo num campo social (por meio dos quais produzimos a nós mesmos e aos demais). É por isso que eu creio que o conceito de autopoiese é bem mais decisivo do que o de autoconhecimento. No limite, não há nada a conhecer, tudo está por ser produzido.

Para acabar com o narcisismo de Barton

O filme mais genial dos irmãos Cohen, Barton Fink, é de uma sutileza assustadora. Barton é o escritor que deseja dar voz ao "homem comum". Suas falas sobre a escrita e a criação, ao longo de todo o filme, são admiráveis; porém, ao mesmo tempo, vamos nos dando conta de que o seu "homem comum" não passa uma abstração inventada para seu próprio gozo intelectual. E é dolorosamente cômico perceber que Barton discursa exaltadamente a respeito do "homem comum" para seu vizinho de quarto (que ele supõe ser um homem comum) sem lhe dar ouvidos por um momento sequer. Com alguma sorte concluiremos, ao terminar o filme, que o "homem comum" simplesmente não existe, que ele não passa de uma abstração ou de um ser de razão: tal como as idéias de equilíbrio, igualdade e tantas outras. E esta parece, de fato, ser a nossa sorte: passar de uma abstração a outra, de uma generalidade a outra, sem jamais tocar nos verdadeiros problemas. Chegar a tocar uma idéia (ou problema) é como misturar nosso corpo a outro num delírio de desejo. Mas nós não pensamos, apenas nos masturbamos com nossas pobres abstrações.


Adendo

Eu diria que Barton Fink é um dos filmes mais importantes já realizados. Não conheço outro que trabalhe essa temática e sobretudo com tanta propriedade. Barton não é um mau sujeito. Ele está cheio de boas intenções e realmente acredita no que faz. Mas ele está ligado apenas em suas próprias abstrações, e ao mesmo tempo desligado da vida. É o mal típico do intelectual, seja qual for sua formação (sim, filósofos também). Na verdade, todos nós somos, em alguma medida, intelectuais. Todos nós. É por isso que não podemos nos contentar com pouco e ficar no meio do caminho. Pensar pode ser algo vital, inteiramente conectado à vida e à vida das pessoas. Você já leu "O teatro e a cultura", introdução ao livro "O teatro e seu duplo", de Artaud? Aquilo não vale apenas para o teatro, mas para o pensamento em geral. Inclusive para a filosofia.

10.7.08

a pureza e a inocência

por Michel Tournier

A pureza de um corpo químico é um estado absolutamente contranatura que só pode ser obtido por procedimentos que implicam violência. O caso mais simples é o da água. O que é a água pura? Ela pode ser uma água desembaraçada, por ebulição ou filtragem, das bactérias e vírus que ela continha. Trata-se de uma pureza biológica. Mas se aquilo que se busca é a pureza química, serão realizadas distilações sucessivas - a água corre num alambique prolongado por uma serpentina resfriada - para eliminar os sais e os traços de metais. Mede-se a pureza da água tratada desse modo pela sua resistência a deixar passar uma corrente elétrica, pois a água só é condutora graças aos sais minerais que contém.

Essa água "pura" age sobre os organismos vivos como um veneno violento. Quando ela é ingerida por um organismo, os humores e todos os sais minerais veiculados pelo sangue irão precipitar-se para ela, posto que ela lhes dá a oportunidade de se diluírem mais. Esse fenômeno é utilizado para livrar os diabéticos das uréias, ácidos úricos e outras toxinas que se concentram no seu sangue, uma vez que seus rins já não as filtram. Mas essa diálise, necessária nesses casos patológicos, torna-se catastrófica nos indivíduos cujas taxas plasmáticas de sais são normais. Assistir-se-á a uma fuga do cálcio e do potássio sangüíneos que pode acarretar a morte. Com efeito, o coração só bate graças a uma corrente elétrica sustentada por um equilíbrio cálcio-potássio no sangue. A absorção de água "pura" pode provocar também hemorragias estomacais, intestinais ou cutâneas.

Esses males físicos da pureza ainda não são nada se comparados aos crimes inumeráveis que sua idéia obsessiva provocou na história. O homem cavalgado pelo demônio da pureza semeia a morte e a ruína em torno de si. Purificação religiosa, depuração política, salvaguarda da pureza da raça, busca anticarnal de um estado angélico, todas essas aberrações desembocam em massacres e infelicidades inumeráveis. É preciso lembrar que o fogo - "pur" em grego - é o símbolo das fogueiras, da guerra e do inferno. (*)

Por oposição à pureza, a inocência parece ser sua inversão benéfica. Inocente é o animal, a criancinha e o débil mental. Sobre eles, o mal não tem poder. O homem adulto e razoável pode fixar-se como um ideal um estado que é o de sua primeira infância prolongada e preservada. A inocência é amor espontâneo do ser, sim à vida, aceitação sorridente dos alimentos celestes e terrestres, ignorância da alternativa infernal pureza-impureza. Certos santos, como São Francisco de Assis, parecem viver nesse estado em que a simplicidade animal se conjuga com a transparência divina.

Porém trata-se de um improvável milagre. No romance de Dostoiévski, O Idiota (1868-1869), o príncipe Míchkin, devorado por uma piedade devastadora, revela-se incapaz de amar uma mulher, de resistir às agressões do mundo exterior e finalmente de viver. Ele é fulminado pela epilepsia.

(*) Em francês, "pur" quer dizer puro. Curiosamente, as duas palavras são pronunciadas da mesma forma: "pír". (N.T.)

Michel Tournier, "La pureté et l'innocence", IN Le miroir des idées, Paris, Mercure de France, 1994, pp. 171-174. Tradução minha.


triagem, 06/02/2006
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