30.10.17

Arte e liberdade de expressão (quinta parte)

A arte contemporânea interdita a própria possibilidade de diferenciar "arte" e "não-arte". Por definição, obras e ações realizadas com intenção artística são arte. Ao inquisidor caberá (além do estigma de reacionário) o ônus da prova; e ele falhará invariavelmente.

Os antigos critérios de excelência artística, fossem quais fossem, não poderiam sobreviver ao desenvolvimento do capitalismo, cuja dinâmica tende a suprimir os códigos vigentes nas sociedades tradicionais. Ademais, para além das razões puramente estéticas que os especialistas poderão invocar, essa abertura responde também a uma necessidade econômica, ou melhor, a uma oportunidade econômica que não haveria de ser desperdiçada. Restringir o Mercado de Arte às obras de um punhado de grandes artistas seria, do ponto de vista econômico, uma grande tolice. Novamente, porém em outro sentido, trata-se de uma questão de escala: porque tudo é arte, haverá mais artistas, mais obras e mais dinheiro em circulação, não somente para os próprios artistas, mas para todos os envolvidos na cadeia produtiva do mercado de arte.(18)

Esse movimento de mercantilização não afetou apenas as artes plásticas e as artes em geral: literatura, música, teatro, cinema. Ele afetou todos os aspectos da vida no campo social capitalista. Enquanto estudantes universitárias de grandes centros urbanos orgulham-se de não saber cozinhar, as grandes empresas de alimentos processados tornaram-se responsáveis pela alimentação de cada vez mais gente, gerando autênticas epidemias de obesidade, diabetes e problemas cardíacos.
A nova realidade é epitomada por um fato único e chocante: em todo o mundo, hoje há mais obesos que pessoas abaixo do peso. Ao mesmo tempo, dizem cientistas, a disponibilidade crescente de alimentos de alto teor calórico e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de má nutrição em que cada vez mais pessoas estão ao mesmo tempo acima do peso e subnutridas.(19)
E, no entanto, ninguém pode acusar as grandes corporações de vender algo que não seja alimento. Legumes e frutas são alimento? Açúcar e gordura hidrogenada também. No limite, pode-se dizer que tudo o que é feito com intenção alimentícia é alimento.

* * *

Quem se lembra da mundialmente consagrada Merda d'artista (20), realizada em maio de 1961 pelo artista italiano Piero Manzoni? Se tudo que você sente por essa obra é repugnância, pense novamente. Para além da indiscutível avacalhação artística que ela representa, haverá algo mais singelo, haverá algo mais modesto do que oferecer, convenientemente enlatada, rotulada e assinada, uma pequena porção de sua própria merda? E não é esse um retrato perfeito da civilização industrial: nacos de merda acondicionados em latinhas produzidas em série? Ora, merda por merda, fiquemos com a do artista, que (sobretudo se mantida incólume em seu continente) não nos fará jamais nenhum mal.




Infelizmente, é impossível fazer um elogio semelhante ao Domestikator. Pela reação furiosa à decisão do diretor do Louvre, pelo gênero das acusações que lhe foram feitas, pelo desdém em relação ao possível impacto da obra nos miúdos, pela tentativa de descrevê-la como se ela significasse "tudo e mais um pouco" e, claro, por sua escala monumental, eu não consigo ver nessa instalação mais do que um imenso painel publicitário.

Na escala em que foi produzido (nunca é demais insistir nesse ponto), Domestikator não passa de uma imensa peça de marketing: um outdoor destinado a dar o máximo de visibilidade ao seu autor. A meu ver, é por isso que ele ficou tão zangado com a recusa do Louvre, onde uma exposição não é somente uma consagração artística, mas a conquista de uma valorização financeira definitiva. E por mais que o artista cinicamente denuncie essa recusa como um atentado à liberdade de expressão, sabemos que, no fundo, o único prejuízo foi do seu próprio branding.

Se alguém me perguntasse se Domestikator pode ser considerado tão tóxico quanto o refrigerante que compromete o futuro das crianças da etnia warao (21), eu não saberia responder. Eu realmente não sei. Tudo o que sei é que, nos dois casos, é o Mercado (muito mais do que a Arte ou a Ciência da Nutrição) que está fabricando os corpos e as subjetividades das crianças.

Salò, o último filme de Pasolini, é uma obra de arte pungente, dolorosa e sem dúvida chocante, muito embora não tenha sido feita com a infantil intenção de épater le bourgeois. Domestikator, ao contrário, me parece ser apenas mais um avatar dessa mesma violência tacanha e gratuita que Salò denuncia. Ninguém pode condenar Joep van Lieshout por querer "explicar suas idéias para um público mais amplo"; ainda que sejam idéias medíocres. Mas, ao tentar impor a visão de sua obra por um simples truque de escala, ele se  mostra perigosamente próximo do publicitário que não mede esforços para anunciar seu produto.

* * *

Embora tirando bem menos conclusões do que gostaria, encerro aqui esta série. Não posso, claro, deixar de mencionar outro artigo das organizações Globo, que, mais uma vez, descreve Domestikator como uma "escultura" (sic) que "mostra figura geométrica humana vermelha que aparenta estar fazendo sexo com outra pessoa.(22)"

A imprensa brasileira está num nível sub-rasteiro.



FIM



(18) Até o crime organizado se beneficia com a ampliação do mercado de arte, que multiplica as oportunidades de lavagem de dinheiro.
(19) Como grandes empresas deixaram o Brasil viciado em junk food (The New York Times/Folha de SP)
(20)  Piero Manzoni: Artist’s Shit (1961) (Tate)
(21) Mamadeiras de refrigerante: 'vício' em bebida agrava desnutrição em indígenas (BBC Brasil)
(22)
Excêntrica demais para o Louvre, escultura erótica é exibida no Centro Pompidou (O Globo)



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Arte e liberdade de expressão (terceira parte)
Arte e liberdade de expressão (quarta parte)

18.10.17

Arte e liberdade de expressão (quarta parte)

A rigor, o único problema da instalação Domestikator é um problema de escala. Apenas os mais puritanos condenariam a obra se ela tivesse metro e meio de altura e fosse exibida no interior de um museu. Do mesmo modo, respeitada a classificação indicativa, qualquer cinema pode exibir Salò.

O problema é que Domestikator mal caberia no interior de um museu. A instalação, que pesa 30 toneladas, tem 12 metros de altura, mais ou menos o equivalente a um prédio de quatro andares. Por isso afirmei que se trata de um problema de escala. A obra do coletivo de Joep van Lieshout se impõe ao olhar de quem passa.


Devemos supor que Jean-Luc Martinez, diretor do Museu do Louvre com formação em arqueologia e história da arte, recusou a exposição da instalação holandesa no Jardim das Tulherias porque é um burocrata e um censor imundo? É mais ou menos o que sugere Joep van Lieshout ao dizer que a decisão foi "hipócrita" e que os museus são administrados por "juntas de advogados e gente de marketing".

Vejamos alguns dos argumentos do artista em defesa de sua obra.

[A]. Uma vez instalada no Jardim das Tulherias, a obra ficaria ao lado de um parque infantil. Joep van Lieshout afirma que, se as crianças porventura entenderem de que se trata, é porque já são grandes o bastante para entender... Contudo, ao dizer isso, van Lieshout parece ignorar a existência de uma singela realidade chamada linguagem. Bastará que uma única criança compreenda o que a obra representa para que todas as outras, e isso inclui crianças bem menores que a primeira, sejam informadas a respeito. Não faltará tempo para que a informação se espalhe. A obra estará lá, à vista de todos, dia após dia.

[B]. Numa entrevista ao site dezeen, Joep van Lieshout afirmou que a obra "não é sobre sexo, é sobre a ética da inovação tecnológica. Ela convida as pessoas a pensar sobre um assunto muito importante: o que fazemos com nosso avanço tecnológico? O que fazemos com o big data, com a inteligência artificial, com os robôs?".(14) Ao The Guardian, ele disse que sua obra aborda a domesticação de animais para a agricultura e a indústria, bem como sublinha os problemas éticos decorrentes da domesticação.(15)

Um adulto esclarecido poderá levar algum tempo até extrair da imagem em questão tudo o que nela está contido, e é bem possível que alguns adultos sequer consigam enxergar todas as coisas e matizes que o artista, tão habilmente, conseguiu sintetizar numa única imagem. Mas pode-se dar como certo que raríssimas crianças serão capazes de entender toda essa conversa. Elas provavelmente entenderão a obra apenas em seu nível mais raso, doggy style.

[C]. Um tanto previsivelmente, o artista holandês chama de censura a decisão do diretor do Louvre. Ao fazê-lo, no entanto, ele abusa do sentido do termo: M. Martinez não "proibiu" ou "baniu" sua obra, e nem teria poder para isso; ele apenas recusou sua exposição no museu pelo qual é responsável. Tanto é assim que, pouco tempo depois, Domestikator foi calorosamente acolhido pelo Centro Georges Pompidou, cujo diretor o qualificou como "espiritual"(15) e "uma utopia magnífica em sintonia com o espaço público".(16)

Aliás, por falar em "censura", não custa lembrar que o Museu d’Orsay, tão incensado pela bela exposição Emmenez vos enfants voir des gens tout nus, não hesitou em chamar a polícia e apresentar queixa contra a artista que resolveu expor no museu (já que de gente nua se tratava) sua própria origem do mundo.(17) Ora, assim como roubar a cena dos artistas em exposição não é nem um pouco elegante, impedir que tal coisa aconteça não é "censura".

[D]. Ainda na entrevista para o site dezeen, van Lieshout fez uma afirmação com a qual todos concordamos: "Penso que a arte deve ser um lugar onde há pouquíssimos limites." Ora, um desses limites é justamente o da classificação indicativa por faixas etárias. Raras pessoas teriam maturidade suficiente para compreender, antes de completarem 18 anos, a dura mensagem de Salò. Há, portanto, boas razões para que esse filme não seja exibido em colégios. Do mesmo modo, há boas razões para não exibir em praça pública uma obra que retrata, em escala monumental, uma cena de bestialidade. A não ser que o coletivo holandês acredite seriamente que sua obra é mais importante do que a de Pasolini, não há por que reivindicar um privilégio que a obra do italiano jamais teve (e provavelmente jamais terá).

* * *

Mas, afinal, o que significa tudo isso? Até aqui, procurei me manter no plano da mera análise e tentei esclarecer alguns aspectos em jogo na obra Domestikator e no discurso de seu autor. Na próxima (e última) parte, tentarei esclarecer a partir de uma perspectiva inteiramente diferente a atitude de um artista como Joep van Lieshout.

Duas últimas observações se fazem necessárias. Não custa insistir que minha crítica à instalação Domestikator refere-se ao seu caráter monumental. Não fosse por essa monumentalidade, eu não enxergaria o menor problema na obra do coletivo holandês. É, como eu deixei claro desde o início, um problema de escala. Veremos na próxima parte o que, a meu ver, esse problema de escala revela.

Por fim, é bom deixar claro para o leitor que eu não estou tentando fazer uma espécie de "análise indireta" ou "referência velada" aos recentes acontecimentos no Brasil. Ao menos até aqui, o que eu disse a propósito da obra Domestikator foi pensado "sob medida" para ela e não serve para pensar outra coisa.

Mas já que acabei me referindo aos casos brasileiros, gostaria de fazer uma pequena observação sobre eles. Todos os meios de comunicação que tenho consultado falam sistematicamente das ocorrências em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Parece-me incompreensível que o caso de Mato Grosso do Sul, apenas por não se adequar a esta ou aquela agenda, ou quiçá atrapalhá-las, esteja merecendo uma atenção menor (ou praticamente inexistente) da imprensa. Deveria ser precisamente o contrário, pois apenas nesse caso houve uma intervenção explícita do poder público e um ato que merece, com todas as letras, o nome de censura. O silêncio a esse respeito é vergonhoso e desprezível.


(continua)



(14) Louvre cancels Atelier Van Lieshout installation amid concerns over "explicit or sexual" content (dezeen Magazine)
(15) 'Obscene? Pornographic?' – Louvre deems sexually explicit sculpture too risqué (The Guardian)
(16) Le Domestikator : le Louvre lui dit non, le Centre Pompidou lui ouvre les bras (Le Figaro)
(17) L’artiste qui s’est déshabillée au musée d’Orsay explique son geste (exponaute)




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Arte e liberdade de expressão (terceira parte)

17.10.17

Arte e liberdade de expressão (terceira parte)

Não basta dizer que os recentes conflitos a propósito de obras e exposições de arte no Brasil estão contaminados por uma polarização ideológica que não beneficia em nada o esforço de compreensão. É muito pior do que isso: quem não se alinha automaticamente a um dos lados será acusado (também automaticamente) de favorecer o discurso do outro lado. Ao que parece, a liberdade de pensamento foi reduzida a isto: estamos autorizados a "ter uma opinião" (a "escolher um dos lados"), mas não a pensar.

É por isso que eu já havia definido, desde que comecei a escrever as primeiras linhas este artigo, que iria buscar na Europa, e não no Brasil, o objeto de minha análise. Refiro-me à instalação "Domestikator", realizada por um coletivo holandês chamado Atelier Van Lieshout.


A análise da forma dessa instalação não oferece maiores dificuldades. Há duas figuras fazendo sexo. A figura bípede que segura a outra pela cintura (provavelmente) representa um homem. A outra figura, por sua vez, não é humana. Seu tronco é uniformemente mais grosso; o conjunto formado pela cabeça e pelo pescoço é mais alongado; inexiste a flexão dos membros inferiores que seria de esperar num ser humano. O próprio nome da instalação confirma a análise da forma, já que a domesticação é (usualmente) uma relação entre homens e animais: Domestikator representa um homem fazendo sexo com um quadrúpede.

Pois bem. O diretor do Museu do Louvre, Jean-Luc Martinez, embora reconhecendo que o Domestikator denuncia "de maneira lúdica e artística a dominação [humana] sobre o planeta Terra"(7), cancelou a exposição da obra na Feira Internacional de Arte Contemporânea (FIAC) e foi duramente criticado por Joep Van Lieshout, fundador do coletivo holandês.

Antes de passar à análise do caso Domestikator, que encerrará este artigo, gostaria de chamar a atenção para um aspecto que seria cômico se não fosse trágico: o despreparo (ou a desonestidade) da imprensa (em várias partes do mundo) para simplesmente descrever de maneira adequada uma obra de arte contemporânea. Alguns meios, é bom ressaltar, fizeram exceção: o já citado Libération, por exemplo, e a revista Le Point (8) fizeram uma leitura correta da obra e ressaltaram (ou ao menos sugeriram, no caso do Libération) que o Domestikator descreve um ato sexual entre um homem e um animal. Mas inúmeros outros grandes veículos de comunicação, seja por pudor, ignorância ou má-fé, suavizaram a leitura da obra. Vejamos uns poucos exemplos.

Embora tenha reproduzido as palavras de Van Lieshout, segundo o qual "o trabalho simboliza o poder da humanidade sobre o mundo e sua abordagem hipócrita da natureza", o The New York Times diz, singelamente, que a obra representa "uma cópula".(9) O Le Monde afirma que a instalação foi rejeitada por fazer uma "evocação explícita de um ato sexual".(10) Veículos ingleses menos cotados como o The Sun (11) e o Daily Mail (12) preferiram não se comprometer e descreveram a obra como "dois prédios fazendo sexo". O jornal O Globo, por sua vez, conseguiu superar todos os seus concorrentes ao afirmar que "a escultura (sic) por um lado lembra um prédio com janelas, mas também mostra um homem em forma de caixas durante o ato sexual com outra pessoa."(13)

Vejamos se a análise desse caso nos permitirá avançar, por pouco que seja, no nosso tema.



(continua)



(7) Une œuvre retirée du parcours hors-les-murs de la Fiac pour sa connotation sexuelle (Libération)
(8) "Domestikator": un viol allégorique qui a fait peur au Louvre (Le Point)
(9) Louvre Pulls Sculpture, Saying It Was Sexually Explicit (The New York Times)
(10) FIAC : l’œuvre « Domestikator », du Néerlandais Van Lieshout, retoquée pour sa connotation sexuelle (Le Monde)
(11) Bonkers artwork of two buildings ‘having SEX’ axed from top show because it would be seen from a school playground (The Sun)
(12) Did the roof move for you? 'Sexually explicit' art installation that looks like two buildings having SEX is scrapped by the Louvre (Daily Mail)
(13) Louvre cancela exposição de escultura considerada sexualmente explícita (O Globo)


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Arte e liberdade de expressão (primeira parte)
Arte e liberdade de expressão (segunda parte)

8.10.17

Arte e liberdade de expressão (segunda parte)

A adoção de uma classificação indicativa seria uma solução para os recentes conflitos a propósito de exposições de arte no Brasil? Tudo leva a crer que sim: afinal, a classificação indicativa permite preservar integralmente a liberdade de expressão sem expor crianças e adolescentes a afecções e afetos que elas talvez não sejam capazes de digerir.

Infelizmente, não é assim tão simples. É bom ter em mente que tal solução resolveria o problema do mesmo modo que a demarcação de uma fronteira resolve o problema de duas nações que estão ávidas para guerrear entre si.

A metáfora é pertinente, pois se trata, efetivamente, do estabelecimento de fronteiras que nenhum tratado de paz define de antemão. Onde traçar a linha divisória? Como definir a idade mínima para esta ou aquela exposição?

E, no entanto, a classificação indicativa é feita rotineiramente com as obras audiovisuais e os jogos. O problema é que, no caso das artes plásticas, os critérios teriam de ser inteiramente diferentes. Não se pode equiparar o nu nas artes plásticas ao nu do audiovisual. Corpos nus são corriqueiros nas artes plásticas, seja na formação do artista (modelos vivos), seja nas obras de arte. Para dar um único exemplo, se as estátuas de Rodin deixassem de receber a classificação "livre para todas as idades", estaríamos privando nossas crianças de entrar em contato com algumas das mais altas realizações do espírito humano. Embora seja uma boa solução, e talvez a única possível, a classificação indicativa não é uma panacéia, pois errar a mão é humano, e isso já aconteceu inúmeras vezes na classificação de obras cinematográficas. Teríamos de ter muito cuidado ao estendê-la às artes plásticas.

Além disso, é preciso levar em conta que o Brasil apresenta fortes diferenças regionais. A mesma obra ou exposição que seria acolhida sem problemas num determinado lugar pode gerar uma forte reação, inclusive do poder público, em outro. (5) E, ao contrário do que acontece com o audiovisual e os jogos, exposições de arte não podem ser avaliadas em qualquer lugar. Sem dúvida é possível avaliar um quadro por uma foto ou uma escultura por uma filmagem, mas nesses casos a avaliação padeceria de um vício fundamental, pois o contato com as obras teria sido de segunda mão. Em resumo, tudo aponta para um sistema no qual as obras teriam de ser classificadas localmente, dando oportunidades desiguais a crianças e adolescentes de diferentes localidades e aprofundando as diferenças regionais. (6)

Até onde posso ver, estas são as principais limitações da proposta de classificação indicativa em exposições de arte, que eu e boa parte dos brasileiros apresentamos como uma solução viável para os recentes conflitos envolvendo arte e liberdade de expressão. Apesar dessas limitações e da parcela de arbitrariedade que a multiplicidade de avaliadores irá suscitar, a proposta de classificação indicativa para as artes plásticas é infinitamente melhor do que o conflito aberto entre duas posições aparentemente inconciliáveis.

Se os próprios artistas propusessem uma classificação indicativa para suas obras, como fiz para minha tradução, praticamente todos os problemas estariam resolvidos. No entanto, como veremos adiante, a possibilidade de que um movimento como esse ocorra é bastante improvável.

(continua)


NOTAS

(5) Deputados pressionam, e polícia apreende quadro em exposição no MS (Folha de SP)
(6) Infelizmente, eu ignoro como se dá a classificação indicativa nas artes cênicas, o que me impede de levá-la em conta. Tudo o que sei é que certos encenadores estabelecem, eles mesmos, os limites etários que acham apropriados para seus espetáculos.

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Arte e liberdade de expressão (primeira parte)

7.10.17

Arte e liberdade de expressão (primeira parte)

Latin America, however, has a distinct identity which differ­entiates it from the West. Although an offspring of European civilization, Latin America has evolved along every different path from Europe and North America. It has had a corporatist, authoritarian culture, which Europe had to a much lesser degree and North America not at all. (1)

Não é surpreendente que, numa sociedade autoritária como a nossa (2), os debates sobre a liberdade de expressão (e seus limites) sejam freqüentes. Por óbvio, o autoritarismo não é apenas brasileiro. O que é brasileiro por excelência (é o que se tem dito, acertadamente ou não, ao longo de décadas) é a valorização do "jeitinho" e da "malandragem". Se esse diagnóstico estiver correto, estaria explicado o fato de que, no Brasil, a honestidade (ou mesmo a coerência) intelectual não chega, por assim dizer, a constituir um problema: pois mesmo os nossos artistas, que supostamente teriam de defender intransigentemente a liberdade de expressão, a atacam quando julgam conveniente fazê-lo. (3)

Não há nada mais fácil do que defender a liberdade de expressão. É bem verdade que teremos de fazer algum esforço para encontrar quem defenda a liberdade de expressão alheia; mas sempre que a nossa liberdade é ameaçada, fazemos manifestos e discursos inflamados com aquele ardor que apenas a boa consciência dos justos inflama.

E, no entanto, mesmo os mais ardorosos defensores da liberdade de expressão reconhecem que ela não pode vigorar absolutamente sem limites. Seu mau uso (calúnia, difamação) é punido pela lei. Ideologias que pregam a submissão e/ou o extermínio de uma parcela da humanidade são passíveis de banimento. Doutrinas que pregam a revogação (e não a mera limitação) da liberdade de expressão tendem a não ser toleradas, sobretudo porque as sociedade modernas possuem meios de controle que possibilitariam abolir de fato (e talvez para sempre) a liberdade de expressão. (4)

Longe de enfraquecê-la, a imposição de certos limites fortalece a liberdade de expressão. Nesse sentido, a proibição ou censura das ideologias totalitárias que gostariam de conformar toda a humanidade a uma única doutrina e a um único modelo de "homem", embora possa parecer paradoxal, é totalmente coerente: a liberdade não pode preservar-se senão abolindo aquilo que exterminaria a própria liberdade.

Como entender, nesse contexto, a chamada classificação indicativa? A meu ver, ela é uma das mais benignas formas de impor limites à liberdade de expressão. Antes de mais nada, ela não interfere no processo de criação. Eu faço aquilo que bem entendo, e é apenas no momento de publicar (de tornar pública) minha criação que irei me preocupar se ela é inadequada para alguma faixa etária. Ela tampouco interfere na fruição da obra, que é livre desde que os limites mínimos de idade sejam respeitados.

Estou falando de algo que conheço, pois eu mesmo já fiz classificação indicativa quando traduzi e legendei, em 10 abril de 2015, o vídeo "Housewife 25". Além de solicitar a restrição de idade no YouTube, eu ainda lhe dei um título que disfarça seu conteúdo; pois, como sabemos, qualquer um pode burlar facilmente as restrições do Google. Fiz tudo isso porque o tema não é de fácil compreensão nem mesmo para um adulto, muito menos para uma criança ou adolescente. Esse vídeo teve, nestes dois anos e meio, apenas 39 acessos; mas esse é um preço que eu pago alegremente para me assegurar de que fiz todo o possível para ocultá-lo de quem poderia acabar entendendo tudo errado.

Não custa notar que eu não chamaria esses cuidados de "autocensura", pois só haveria autocensura se eu deixasse de traduzir ou "suavizasse" algum diálogo do vídeo. Nada disso houve. Houve apenas, quando da publicação, um certo cuidado que todos os pais e mães entenderão. Só para que fique bem claro, eu já não tenho esse mesmo cuidado ao publicar um poema neste blogue, ainda que o referido poema seja, nas palavras de uma leitora, "tão direto que nem chega a doer". O meio, a linguagem, a plataforma, tudo é diferente. Ser responsável e ser carola são duas coisas inteiramente distintas.

(continua)


Vídeo: Housewife 25

NOTAS

(1) HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. Simon and Schuster, New York, 1996, p. 46.
(2) Tendência para o autoritarismo é alta no Brasil, diz estudo (Folha de SP)
(3) A privacidade e as biografias não autorizadas.
(4) Filmes como "V de Vingança" induzem à crença ingênua de que um regime totalitário plenamente estabelecido poderia ser derrotado pela mera ação heróica de forças internas. Um totalitarismo em escala planetária só poderia ser derrotado por sua própria inépcia ou estupidez, mas essa é uma hipótese com a qual não podemos nos dar ao luxo de contar.

3.10.17

A (comprovada) ineficácia do não

Ao ficar sabendo que o programa de prevenção a drogas do governo federal elevou o uso de álcool entre estudantes (é isso mesmo: elevou, ao invés de diminuir), o último sentimento que eu poderia ter experimentado é o de surpresa: venho falando desse tema há pelo menos dez anos. Quem porventura leu o texto "A ineficácia do não", de 2014, sabe a que me refiro. Voltarei ao assunto apenas para destacar alguns pontos mencionados nas fontes que consultei.

O primeiro deles diz respeito ao caráter "importado" do programa. É claro que os resultados desse tipo de iniciativa teriam de ser diferentes na Europa e no Brasil. Lá as crianças têm com que se ocupar: elas lêem, desenham, tocam instrumentos musicais. Aqui elas mal conseguem alfabetizar-se, mas isso não as impedirá de encontrar algo que preencha esse formidável vazio.(1)

Outro ponto que chama a atenção nos textos publicados pela imprensa pode ser resumido nesta declaração: "Não dá para destruir essa história sem colocar nada no lugar. O modelo original era bom. Algo aconteceu na implantação."

Onde é que eu já ouvi um argumento semelhante? Por que "não daria" para destruir uma "história" que custou (em 16 cidades) 9,4 milhões de reais e acabou aumentando em 30% o número de jovens que tomaram álcool pela primeira vez? Porque a idéia é... "boa"? Porque deu certo na Europa? Porque se mudarmos certos detalhes em sua "implantação", finalmente dará certo?

Por último, mas não menos importante, "os pesquisadores afirmam que, no Brasil, o consumo de álcool por adolescentes é considerado aceitável, porque normalmente a substância não é considerada uma droga."

Ora, esse dado, por si só, mostra que os adultos é que deveriam ser educados a respeito dos perigos do consumo de álcool por adolescentes. Afinal, se pesquisas oficiais do governo já revelaram que o álcool é que é a verdadeira "porta de entrada" da garotada para as drogas, e se a ciência revela que o consumo precoce de álcool é altamente prejudicial, que estamos esperando para fazer uma campanha dirigida para os adultos? Pois os adultos que são vítimas da guerra de desinformação (e acreditam que a maconha é a "porta de entrada" para as drogas) são os mesmos que fazem vista grossa ao consumo de álcool pelos jovens.

* * *
Diante desse quadro (a qualidade de nosso ensino é uma catástrofe, as campanhas "educativas" são contraproducentes), a proposta de proibição da publicidade de qualquer tipo de bebida alcoólica (inclusive a cerveja) é muito mais pertinente do que supõem algumas vãs filosofias. Mas eu admito que essa proibição teria de ser acompanhada, preferencialmente, por uma campanha de esclarecimento dirigida ao público adulto.

Por fim, depois de banir a propaganda dos estados alterados de consciência, poderíamos tranqüilamente liberar a maconha e aplicar os impostos arrecadados com ela em saúde e educação.

* * *
E agora, leitor? Serei eu um liberal, ou talvez um esquerdista, já que defendo a liberação da maconha? Ou serei, talvez, um antiliberal, e mesmo um conservador, já que proponho o fim da publicidade do álcool?

Na verdade, sou apenas alguém tentando equacionar um problema complexo com os dados de que disponho. Meus seis ou sete leitores neste fim de mundo virtual não precisam se preocupar: nada do que estou dizendo irá acontecer. Os lobbies do tráfico, da publicidade e da educação não permitirão.

A propósito: não sou e nunca fui "contra" sexo, drogas e música fácil. Sou simplesmente a favor de aventuras mais difíceis, mais sutis e mais perigosas.

______________

(1) Na verdade, não há vazio: há, isso sim, um formidável poder de afetar e de ser afetado que será (necessariamente) preenchido por afecções e afetos. Se não somos, nós mesmos, suficientemente artistas, filósofos e cientistas para encantar nossas crianças com as aventuras do pensamento (e da vida potente que o pensamento suscita), quem poderá condená-las por trilhar os mesmos caminhos já trilhados pelas gerações anteriores: sexo, drogas e música fácil?


Fontes

A ineficácia do não (2014)

Programa de prevenção a drogas do governo federal elevou uso de álcool entre estudantes (O Globo)

‘Não dá para apenas importar um programa’, diz Zila Sanchez (O Globo)

Programa tenta reduzir drogas entre jovens, mas consumo de álcool cresce (Folha de SP)

Programa preventivo #tamojunto e os desafios da educação no Brasil (documento PDF)
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