29.11.15

tagarelice e genocídio

Ser objeto da atenção de apenas três quatro leitores e meio tem lá suas vantagens. Uma vez que o alcance de minhas palavras é muito limitado, eventuais erros que eu possa cometer terão conseqüências igualmente limitadas. Continuo a ser, no entanto, responsável pelo que digo diante desses quatro e meio, e me esforço para não errar; mas ainda que falasse somente para mim mesmo, continuaria esforçando-me para não errar, pois, afinal de contas, sou ouvinte de mim mesmo.

Por essa e por várias outras razões, a vaporosa existência dos tagarelas jamais deixará de fascinar-me. Eles mal sabem do que estão falando, mas pouco se importam com isso ou com as possíveis conseqüências de suas palavras. Por vezes, os resultados são tragicamente visíveis, como ocorreu em 2014 com Fabiane Maria de Jesus. Mas, na maior parte das vezes, o dano é difuso e difícil de mensurar.

Quanto mais amplo é o alcance de um comunicador ou de um meio de comunicação, maior é sua responsabilidade em relação à mensagem que veicula e aos afetos que estimula. Mas os meios de comunicação em geral, e a TV em particular, renegam essa responsabilidade e se comportam, muitas vezes, como autênticos criminosos de guerra (ou genocidas, como diria o professor e artista plástico Kazuo Iha). Parece exagero, eu sei. Mas bastaria examinar uns tantos casos com suficiente profundidade para demonstrar que a tagarelice e o genocídio andam de mãos dadas.

* * *

Só não me confundam com esses que falam (ou escrevem, ou gravam vídeos) para... pedir silêncio aos demais. Talvez eles sejam os piores, pois juntam à sua tagarelice a vocação autoritária de quem não tolera ouvir o outro: a palavra é de prata, o silêncio é de ouro...

Não é silêncio o que eu peço.

26.11.15

grandes artistas






19.11.15

Soy loco por ti

Não apenas esse populismo latino-americano de esquerda não pode ser exportado, como ele não funciona nem na América Latina. Não é a resposta para os problemas do capitalismo global.
Somos uns boçais
Caetano Veloso


18.11.15

querido diário


Quanto você finalmente alcança a raiz do problema, percebe imediatamente que 99% daquilo que é discutido como "importante" ou "fundamental" nos tempos atuais não passa de um enorme emaranhado de falsos problemas.

E uma vez que você puxe o fio correto desse emaranhado, todos (ou quase todos) os falsos problemas irão se desfazer por si mesmos e tudo irá fazer sentido. Bom, não? Bom para seus leitores, bom para os amigos deles.

Para você, entretanto, talvez não seja tão bom. Afinal, todas as pessoas que tiram seu sustento e seu prestígio desses falsos problemas que você está prestes a liquidar (sim, a palavra é bem essa) ficarão, por assim dizer, "no ar", sem sustentação. E eles provavelmente sairão em defesa de seus ameaçados sustento e prestígio. Você estará prestes a entrar em guerra contra tudo e contra todos e, o que é ainda pior, estará prestes a vencer essa guerra impiedosamente, ao menos no plano que interessa, o plano dos argumentos. Pior, claro está, porque ninguém o perdoará por isso.

Mas aqui vem a parte boa da coisa: o cenário acima não passa de uma possibilidade bastante remota. Justamente porque não serve a nenhuma agenda política, seja de direita, seja de esquerda, seu discurso irá, muito provavelmente, passar vários anos na "geladeira"; afinal, hoje só ouvimos o que interessa diretamente à nossa "causa", ao nosso "projeto", ao nosso "objetivo", e ignoramos inteiramente todo o resto. Por isso, você, que para cúmulo da sorte não passa de um "ninguém" aos olhos da massa, terá todos esses anos para trabalhar em paz, seja para desenvolver ainda mais esse pensamento, seja para arriscar-se em novos vôos.


14.11.15

one more cup of coffee

No supermercado, uma moça diante de uma bancada oferecia aos clientes, de graça, café expresso. Como eu nem mesmo estava ali para comprar alguma coisa, mas para encontrar-me com minha mulher, resolvi tomar um café para matar o tempo. Um homem mais ou menos da minha idade, porém de barriga três ou quatro vezes mais proeminente, puxou assunto.

— Veja que vergonha, disse, apontando para a lata de lixo cheia de copinhos e cápsulas. Quanto lixo inútil!
— É verdade, respondi. Minha mulher e eu conversamos sobre isso ontem mesmo...
— Culpa das corporações.
— De fato, elas não se responsabilizam pelo lixo que produzem...

Enquanto falava, eu estava estudando uma maneira de dizer ao sujeito que a responsabilidade (a responsabilidade, e não a culpa) por essa situação não era apenas das corporações, mas também nossa, que compramos todo tipo de porcaria embalada em plástico. Mas o homem não parecia estar interessado no que eu poderia ter a dizer. As corporações, repetia, mencionando desta vez o rompimento das barragens em Minas Gerais.

No fundo, ele não estava realmente falando comigo; estava apenas tentando aliviar sua culpa. Ele se achava (ou queria desesperadamente considerar-se) uma vítima indefesa das corporações, e não um agente capaz de fazer escolhas. A seus próprios olhos, ele, ao tomar um café de graça, era tão vítima das corporações quanto as verdadeiras vítimas da mineradoras, seja as que morreram, seja as que viram sua vida inteira ser submergida na lama, seja as que moram ao longo da rota dos dejetos e estão enfrentando todo tipo de dificuldades.

Tendo já mitigado sua má-consciência, o homem despediu-se. Fiquei ainda ali, saboreando meu café (sem açúcar) e divagando sobre minhas próprias escolhas, que considero razoáveis. Eu jamais compraria uma máquina de café expresso, pois jogar fora um copinho plástico a cada café tomado está absolutamente fora de questão. Na verdade, eu até viveria muito bem sem café, que bebo uma ou duas vezes ao dia, mas apenas porque minha mulher mo oferece. Minha bebida predileta é o mate, que, assim como o chimarrão, vem embalado em papel. E como uma única embalagem de mate solúvel (de 250g) dura por volta de cinco meses, posso afirmar que meu consumo pessoal de cafeína está longe de ser a pior causa de poluição do planeta.

Nisso, o homem das corporações voltou e... pediu mais um café.


9.11.15

a famigerada nuvem

As crianças acabam levando algum tempo para descobrir que o leite não "dá" em latas, caixas ou saquinhos. Do mesmo modo, adultos pouco familiarizados com a informática e a Internet podem chegar a pensar que a tão badalada "nuvem" realmente existe. Hummmm... Não. O que chamamos de "nuvem" nada mais é do que o computador (ou a rede de computadores) de outra pessoa (ou de uma corporação qualquer).

É uma bobagem, uma ninharia, uma nota de pé de página no seio do grande turbilhão cósmico, mas alguém tinha de dizê-lo e prestar esse serviço à sociedade. Aí está.


"Não há nuvem; é apenas o computador de outra pessoa"


7.11.15

gente lesa




"Eu tinha 18 anos e passava todos os dias pela praça Quinze para pegar a barca que me levava à faculdade em Niterói. E era ali que se dava o nosso drama. Gentileza nos avistava – a nós, mocinhas, geralmente de jeans ou minissaia – e surgia aos berros à nossa frente. Não suportava ver mulheres de calça comprida ("Tira as calças do papai!", gritava, possesso) e de batom. Espumava: "São ofensas a Deus!". Nós corríamos, ele atrás. Nunca nos alcançou, mas, de tão agressivo, sabíamos que, se pudesse, nos daria uma surra ali, no meio da rua. Era humilhante e constrangedor. Tínhamos-lhe horror, e aquele apelido, Gentileza, era uma ironia. (...) Não se entende como a 'história' o absolveu."

4.11.15

O Projeto de Lei 5069/2013

O Projeto de Lei 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha "e outros", pode ser consultado integralmente neste arquivo PDF. Eis aqui seu miolo:
Art. 127-A. Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, induzir ou instigar gestante a usar substância ou objeto abortivo, instruir ou orientar gestante sobre como praticar aborto, ou prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique, ainda que sob o pretexto de redução de danos:

Pena: detenção, de quatro a oito anos.

§ 1º. Se o agente é funcionário da saúde pública, ou exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro:

Pena: prisão, de cinco a dez anos.

2º. As penas aumentam-se de um terço, se é menor de idade a gestante a que se induziu ou instigou o uso de substância ou objeto abortivo, ou que recebeu instrução, orientação ou auxílio para a prática de aborto."
Muito bem. Vou destacar (e, se necessário, grifar) alguns pontos que me chamaram a atenção.

"Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto..."

A divulgação das substâncias potencialmente abortivas não interessa apenas a uma minoria de mulheres que escolheu abortar. Também as mulheres que escolheram dar à luz precisam dessa informação. Além de ferir diretamente o direito à liberdade de expressão, este trecho é contraproducente, pois coloca em risco aqueles que gostaria de proteger; e além de contraproducente, ele é inaplicável. A indústria farmacêutica simplesmente não pode deixar de advertir sobre os eventuais efeitos abortivos dos medicamentos que vende. O mesmo se aplica ao mais humilde vendedor de ervas.

"ou  prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique, ainda que sob o pretexto de redução de danos..."

Este trecho é, a meu ver, a grande pérola do projeto: ele transforma a omissão de socorro, que é um crime, numa obrigação legal.

"Se o agente é funcionário da saúde pública, ou exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro..."

Este trecho, que aumenta a pena de profissionais de saúde, produz o seguinte paradoxo: o simples curioso, que pode não saber muito bem o que está fazendo e que supostamente está praticando medicina ilegal, receberá uma pena menor do que um profissional qualificado que fez o juramento de defender a vida.

"As penas aumentam-se de um terço, se é menor de idade a gestante a que se induziu ou instigou o uso de substância ou objeto abortivo, ou que recebeu instrução, orientação ou auxílio para a prática de aborto."

As gestantes menores de idade são as mais vulneráveis, sobretudo se são pobres: além de não disporem de dinheiro para pagar os serviços de uma clínica clandestina, elas, por via de regra, são as mais desinformadas e as mais dispostas a correr o risco de realizar um aborto por conta própria. Não obstante, a julgar pelo considerável endurecimento da pena nesses casos (um terço), elas merecem, ainda mais do que as maiores de idade, a omissão de todos.

Duas características chamam a atenção no Projeto de Lei 5069/2013. Uma delas é a absoluta ausência de compaixão pelas mulheres (e meninas) que abortam e por qualquer um que esteja disposto a lhes prestar até mesmo um eventual conselho ou advertência. A julgar pelo que li, parece-me que o alvo do projeto de Cunha não é o dono da clínica de abortos clandestina, mas o indivíduo qualquer que ouse mencionar para uma mulher ou adolescente desesperada que não se deve engolir Cytotec.

A outra é a ambigüidade e/ou falta de precisão da linguagem. Vejamos alguns exemplos. "Anunciar" significa divulgar, noticiar, promover o conhecimento. Ao usar a palavra "anunciar" em vez de uma locução talvez mais precisa como "fazer propaganda", Cunha acaba favorecendo - deliberadamente ou não - interpretações da lei que poderiam levar a uma censura generalizada de informações que devem estar amplamente disponíveis para todas as mulheres. E isso, como demonstrei acima, é inteiramente absurdo. Por falar nisso, agradeço a Cunha por haver anunciado (na justificativa de seu projeto) o nome (que eu ignorava) da substância vendida como "Citotec" (sic): misoprostol.

Outro exemplo: ao usar a locução "menor de idade", o texto da lei a todas equipara e confunde, crianças e adolescentes. No entanto, se uma menina com menos de 14 anos está grávida, é porque (segundo a própria lei) ela foi estuprada; e se ela foi estuprada, ela tem direito legal ao aborto. Ora, se meninas menores de 14 anos possuem um direito específico que as menores de 18 não possuem, o uso de uma locução imprecisa como "menor de idade" parece destinado a confundir, e não a esclarecer.

Vale a pena ler a "justificativa" do projeto de Cunha. Nela aprendemos que a realização de um aborto não é a decisão dramática de uma mulher que hesita em trazer mais uma criança, seu próprio filho, a este mundo. Não. A referida mulher, coitada, nem mesmo pode reivindicar a responsabilidade que lhe cabe em sua decisão. Afinal, ela não passa de um joguete num tabuleiro administrado por
"organizações internacionais inspiradas por uma ideologia neo-maltusiana de controle populacional, e financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses super-capitalistas".
Já se adivinha: esses são os verdadeiros atores da história. De um lado, as organizações internacionais; de outro, os valentes congressistas que nos defendem com penas cada vez mais severas. E tudo o que nós, reles coadjuvantes, podemos fazer é contemplar com maravilha no olhar esse portentoso embate de titãs.


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