1.5.11

O massacre de Realengo (3)

"A rebelião dos escravos na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e engendra valores: o ressentimento daqueles seres aos quais está vedada a autêntica reação, a reação da ação, e que se contentam com uma vingança imaginária. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante sim dito a si mesmo, a moral dos escravos diz não, previamente, a um "fora", a um "outro", a um "não-eu"; e é esse não que constitui sua ação criadora." (Nietzsche, A genealogía da moral, parte I, 10)

Todos vocês já tevem ter visto os cinco vídeos - realizados pelo próprio atirador de Realengo - que foram liberados no dia 14, um dia depois da postagem anterior. Todos são esclarecedores, sobretudo o mais longo, de seis minutos e meio. Também surgiram algumas anotações do atirador.

Como pretendo encerrar este assunto em apenas duas postagens, não vou me deter numa análise desses documentos. É hora de tentar uma síntese, mesmo que provisória, encaminhando o tema para uma síntese ainda mais abrangente - que será realizada, claro, na postagem final. E como me parece que uma (boa) síntese só pode ser concebida e realizada a partir de um problema, vou iniciar a minha a partir de uma pergunta bastante singela: por que, logo depois da comoção inicial com o massacre - e mesmo durante essa comoção - a maior parte das pessoas parecia querer livrar-se desse tema incômodo e, por assim dizer, varrê-lo para debaixo do tapete?

Creio que a pertinência do próprio problema dificilmente poderia ser questionada. O poder executivo, instado por uma autoridade católica, arrogou-se o direito de rapidamente decretar o fim de um luto que, afinal de contas, não lhe pertencia. Sintomático, eu diria. Permitir que o luto e as homenagens se prolongassem (por exemplo) até o domingo seguinte não faria mal a ninguém.

O poder legislativo, por sua vez, apressou-se a discutir o tema do controle das armas de fogo, como se a mera disponibilidade de armas de fogo fosse uma variável essencial da tragédia. O que eles fariam se o massacre fosse perpetrado com facas, como aconteceu várias vezes na China? Passaríamos a cortar o pão com cartões de crédito? Em seu afã de serem lembrados de maneira positiva pelos seus eleitores num momento tão grave (e tão fartamente televisionado), nossos congressistas parecem não ter compreendido que levantar o problema das armas numa hora como essa só ajudaria a escamotear os verdadeiros problemas; a não ser que fosse precisamente essa a sua intenção, mesmo que inconsciente.

A mídia, por sua vez, apressou-se a chamar especialistas - sobretudo psiquiatras forenses - capazes de diagnosticar a doença mental de Wellington; o que, se pensarmos bem, era simplesmente a obtenção de um aval científico para o que o senso comum já dizia desde o primeiro momento: o atirador só podia ser um louco. Por fim, vários cidadãos, sobretudo jovens, identificaram no bullying ou assédio escolar o principal fator da tragédia, ao passo que outros, em número bem menor, identificaram como decisivas as supostas vinculações do atirador com terroristas islâmicos.

Hoje, pouco mais de três semanas depois da chacina, não é exatamente esse o quadro que temos do massacre de Realengo? (1) Um portador de esquizofrenia paranóide, (2) vítima pretérita de bullying, (3) possivelmente manipulado ou influenciado por religiosos fanáticos que querem dominar o mundo (aqui, é claro, temos apenas uma suposição), (4) não encontrou dificuldades para armar-se até os dentes e assassinar doze crianças a sangue frio. Em resumo, era um pobre louco que se levava demasiadamente a sério e que, aproveitando-se da facilidade de acesso a armas ilegais, resolveu vingar-se de seu sofrimento em pessoas que nada tinham a ver com ele. Fato lamentável, porém único neste país, e cuja repetição é extremamente improvável. Caso encerrado.

Encerrado? Mas por que tanta pressa? Será que já fizemos os nossos melhores esforços para compreender tudo que está envolvido nesse massacre? Eu estou convencido que não, e vou fazer meu próprio esforço na próxima postagem.
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