É muito comum pensar-se que a cultura é algo que se sobrepõe à natureza: como se o indivíduo exprimisse uma natureza primeira que a cultura viesse moldar, reprimir e mesmo distorcer, e como se o produto da cultura, ou seja, o próprio homem transformado em animal social, fosse
menos do que esse suposto indivíduo pré-social. Em poucas palavras, ao socializar-se o homem renunciaria à sua "individualidade" livre e selvagem e se tornaria um animal de rebanho.
Há tantos contra-sensos nessa concepção, no entanto tão difundida, que é impossível dar conta deles sem fazer correr muita tinta (ou muitos pixels). Por ora vou me contentar em dizer que, ali onde se produz o animal de rebanho, ali onde se produz uma homogeneidade real ou ideal ancorada em valores, vivencia-se não a cultura nela mesma, mas sua apropriação por forças ou poderes de outra natureza: Estado, Religião, Moral, etc. A cultura, ação do homem sobre o homem para produzir o homem, prescinde de valores para afirmar-se. O homem da cultura é o homem que deixou de
cultuar valores, sejam eles quais forem, e passou a produzir-se a si mesmo e aos demais homens para além de todos os valores ou, como dizia o filósofo, para além do bem e do mal. Isso só parecerá confuso para aqueles que ainda não perceberam que produzir a si mesmo e ao outro é imediatamente
produzir valor, valorar, valorizar, intensificar a vida para além de qualquer tábua de valores. "Não matarás" não significa absolutamente nada para o homem da cultura: não porque ele tenha se outorgado uma licença para matar, mas porque no conjunto de estratégias possíveis de produção de si e do outro simplesmente não há lugar para o assassinato. O homem da cultura não é nada ingênuo e sabe que cada palavra e cada gesto seu está produzindo a si mesmo e aos demais; mas se ele não é ingênuo, pode-se dizer que, ao dedicar sua vida à criação, ele reconquistou a inocência perdida.
É aqui que os contra-sensos apontados mais acima encontram sua solução. Nós não conhecemos a cultura, apenas suas apropriações e contrafações. Na cultura como tal não existe panteão de valores ou ideal de homogeneidade; ao contrário, é apenas na cultura e pela cultura que cada homem é levado a tornar-se
mais, ou seja, a conquistar sua singularidade extrema, que se exprime no gozo de si como diferença pura (alteração, diferença de si para consigo mesmo) e no gozo coletivo desse repertório de diferenças, cada uma passando por todas as demais numa festa produtiva sem fim.