5.9.08

coração

3.9.08

a cultura e a morte - nova série (10)

1. O grau máximo da diferença

Entre todas as perguntas terríveis que se pode formular para si mesmo, há uma que se apresenta, possivelmente, como a mais terrível de todas: aquilo que eu faço é aquilo que apenas eu poderia fazer? Se eu faço algo que muitos, senão todos, poderiam fazer, não passo de uma peça facilmente intercambiável nas engrenagens da máquina social, e vejo-me condenado a uma existência de animal de rebanho. Se, por outro lado, eu faço algo que poucos poderiam fazer, ou se faço algo "melhor do que a média", pouca coisa muda; não deixo de ser, por isso, um animal de rebanho; continuo sendo intercambiável, ainda que com um pouco mais de dificuldade, e minha única distinção é a de ter me tornado, por assim dizer, uma cabeça premiada, gado de valor. Se um único homem puder fazer em meu lugar aquilo que eu faço, é porque eu ainda não descobri aquilo que apenas eu posso fazer. Evidentemente, a resposta a essa pergunta fatal - o que somente eu poderia fazer? - não pode ser abstrata ou genérica, e se confunde concretamente com a invenção de realidade da qual sou capaz aqui e agora; realidade essa na qual eu terei que envolver ou implicar a mim mesmo num grau extremo. Em outros termos, essa pergunta me confronta diretamente com os problemas da criação e da diferença: qual é o grau máximo de diferença de que sou capaz?

2. A cultura e a diferença

A cultura, ação do homem sobre o homem para produzir o homem (e, quem sabe, o além-do-homem), só visa produzir animais de rebanho quando é apropriada ou conduzida por forças reativas que a mutilam e desfiguram. Tomado a partir de uma perspectiva ativa, o movimento da cultura se confunde com um devir-revolucionário cuja tarefa é a de criar criadores. Nesse sentido, a pergunta "o que somente eu poderia fazer?" não é um mandamento, uma lei, um preceito moral, mas tão somente um estimulante da própria cultura, tal como o chá e o café são estimulantes do corpo. Aqui a "pergunta fatal" deixa de apresentar-se sob seu aspecto mais "terrível" - quase uma maldição que evidencia a que ponto somos substituíveis - e passa a mostrar-se sob uma forma mais benigna: como um desafio, ao menos para aqueles que souberem lhe dar ouvidos.

Por fim, note-se de passagem que, desde o início, eu coloquei o problema em termos de ação: o que está em questão é aquilo que eu faço, aquilo que eu crio, aquilo que eu produzo. Juntamente com as mercadorias e serviços que anuncia, a publicidade vende a idéia de que um homem pode distinguir-se por aquilo que consome. Basta examinar essa idéia por um momento para compreender que é impossível abordar o tema da cultura sem ao mesmo tempo abordar o tema da morte da cultura.
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