Leonardo Boff: Limites da liberdade de expressão
Fonte:
Jornal do Brasil
1.
"Os atentados terroristas no início deste ano em Paris e em Copenhague (...) trouxeram à baila a liberdade de
expressão."
É verdade. Em casos de estupro, não é raro que alguém inicie um debate sobre o tipo e o tamanho das roupas usadas pela vítima. Analogamente, quando massacres como esses acontecem, nada mais "natural" do que perguntar o que as vítimas fizeram para merecer essa brutalidade. No
caso dos cartunistas, nós sabemos o que eles fizeram: vários desenhos de caráter humorístico. É batata: "Ah, mas esses caras falaram (ou
desenharam) demais..."
Logo, o problema a ser discutido é,
de fato, a liberdade de expressão.
Cherchez la victime.
2.
"Na França há uma verdadeira obsessão, quase histeria, na afirmação ilimitada da liberdade de expressão, legado sagrado, como dizem, do iluminismo e da natureza laica do Estado. É algo absoluto."
Se a afirmação da
liberdade de expressão na França é "ilimitada" e "algo de absoluto", como explicar que os franceses proíbam,
entre outras coisas, o racismo, o negacionismo e a difamação?
3.
"A ideia francesa da liberdade de expressão supõe uma ilimitada tolerância: há que se tolerar tudo."
Por que será que Leonardo Boff insiste nessa tese insustentável? Por que ele reduz seu adversário a uma caricatura de si mesmo? Talvez para "derrotá-lo" mais facilmente?
4.
"Todo exercício da liberdade que implica ofender o outro (...) e violar o que é tido como sagrado, não deve ter lugar numa sociedade
que se quer minimamente humana."
Já vimos que a liberdade de expressão possui limites, e que a lei nos protege (por exemplo) da difamação. Para Boff, no entanto,
aquilo que antes era uma exceção à regra torna-se uma regra geral (com esse mesmo tom de "algo absoluto" que ele acabou de criticar.) Assim, a proibição da
ofensa e da
violação do sagrado torna-se o parâmetro que define a própria humanidade de uma sociedade humana.
O problema é que, ao passo que a liberdade de expressão pode ser definida de maneira
cristalina (e o mesmo se aplica aos seus limites legais), tudo começa a ficar
nebuloso quando começamos a usar os conceitos de "ofensa" e de
"sagrado", que são inteiramente subjetivos.
Façamos uma experiência imaginária: um aluno que tirou zero em matemática queixa-se ao diretor da escola: para ele, a nota recebida é profundamente
ofensiva. Tirar
zero, argumenta o aluno, torna-o equivalente a uma
nulidade. O diretor lhe pergunta se ele estudou para a prova. O aluno responde que não estudou, e que tampouco assistiu às aulas, mas que isso não justifica uma ofensa como aquela de que ele foi vítima. O diretor reflete e rapidamente descobre que, se chamar aquele aluno de preguiçoso, acabará sendo processado. Na verdade, ele poderá ser processado até mesmo se lhe oferecer uma cadeira: "O que é isso, diretor? Por acaso você está sugerindo que eu, o
zero ambulante, não consigo nem mesmo ficar em pé por minha própria conta?"
Mas as experiências imaginárias não são, aqui, realmente necessárias. Deixadas ao sabor das subjetividades, a
capacidade de ofender-se e a capacidade de perceber os atos alheios como uma
violação do sagrado estão fazendo história neste exato momento. Relíquias milenares (em bibliotecas, museus e sítios arqueológicos iraquianos) estão sendo destruídos pelo Estado Islâmico,
e todo esse patrimônio da humanidade está sendo obliterado justamente porque, no entendimento dos membros do EI, ele é "ofensivo" e "viola o sagrado".
Até onde eu sei, também o massacre na sede do Charlie Hebdo aconteceu para vingar supostas ofensas e violações ao sagrado cometidas pelos cartunistas.
Mas não para Leonardo Boff; para este, o massacre foi cometido ("certamente")
em nome da liberdade:
5.
"...se a liberdade é total então deve valer para todos e em todas as
circunstâncias. É o que pensaram, certamente, (não eu) aqueles
terroristas que assassinaram os cartunistas do Charlie Hebdo e outras
pessoas em Copenhague. Em nome desta mesma liberdade ilimitada."
Os cartunistas do Charlie Hebdo devem ser censurados porque teriam passado dos limites da liberdade de expressão; mas se quisermos censurar os terroristas assassinos, não poderemos fazê-lo porque eles mataram em nome das ofensas e das violações ao sagrado. Nada disso! Afinal, ao menos no entendimento de Boff, também eles mataram em nome da liberdade. Boff parece não se importar com a singela diferença entre a simples liberdade de expressão e a liberdade de cometer assassinatos premeditados e sem chance de defesa para as vítimas. Pelo que se pode depreender de seu texto ("é o que pensaram,
certamente, aqueles terroristas..."), ele crê que os próprios terroristas são incapazes de traçar essa distinção. E como ele próprio não a menciona, é como se ela passasse a não existir. Assim, se todos são culpados, cartunistas e terroristas, é porque todos abusaram, cada um a seu modo,
"desta mesma liberdade ilimitada". Há que ter cuidado com a afirmação acima, no entanto, já que em nenhum momento Leonardo Boff discutiu a suposta culpa dos terroristas. Para ele, a culpa é sempre da liberdade e de sua falta de limites.
Será legítimo comparar esse ponto de vista com aquele que, perante cada estupro, investiga, antes de mais nada, o comprimento das roupas e o comportamento da vítima? A
ofensa do cartunista não seria similar à
provocação da mulher? Se é tão necessário limitar a liberdade de expressão dos cartunistas, não será preciso também impor limites à liberdade de expressão (no que concerne ao vestuário) das mulheres? Se formos obrigados a relativizar os assassinatos dos terroristas em função da suposta ofensa que sofreram, não seremos forçados igualmente a relativizar os crimes dos estupradores em função da suposta provocação a que foram expostos?
Já insisti no fato de que a liberdade não é (e nunca foi) "ilimitada" ou "absoluta" como Boff ardilosamente afirmou no início de seu artigo. E o que temos para limitar os excessos? A lei. Pois bem; essa objeção é óbvia e, a certa altura, Boff vislumbrou-a; mas ela não parece tê-lo preocupado muito, já que tentou liquidá-la com apenas duas frases:
6.
"Pouco vale alegar que há o recurso à lei. Mas um mal uma vez feito, nem sempre é reparável e deixa marcas indeléveis."
Será que esse argumento funciona? É possível desqualificar a lei (como guardiã dos limites da liberdade de expressão) com base no argumento de que o mal, uma vez feito, "nem sempre é reparável e deixa marcas indeléveis"?
Seria ignorar que a "irreparabilidade" do mal não concerne apenas aos crimes ligados à liberdade de expressão (como calúnia e difamação), mas aplica-se (ou pode aplicar-se) a todos ou quase todos os crimes imagináveis. Numa palavra,
o tempo não volta atrás, e entre os propósitos da lei (certamente) não está o de fazer o tempo voltar atrás. Reparação legal não é ressurreição dos mortos ou cura de cicatrizes existenciais. Ela é somente reparação legal e não pretende ser outra coisa.
7.
"A liberdade sem limite é absurda e não há como defendê-la filosoficamente."
Bem, esse é que é o ponto.
O que é liberdade? Até aqui, Boff usou uma definição vulgar de liberdade que assimila liberdade e
capricho (ou, em linguagem teológica, "livre-arbítrio"). Essa, de fato, é indefensável.
Mas a noção de liberdade que Boff propõe em seguida (se é que podemos realmente dizer que ele propõe uma noção positiva de liberdade) faz algum sentido? Essa resposta é mais complexa do que parece e tudo o que posso fazer agora é passar um telegrama: (1) Sim, a liberdade individual se entrelaça com a liberdade coletiva; (2) no entanto, o fundamento da liberdade coletiva é a liberdade individual e
jamais existirá sem ela. Não custa anotar que esse tema também foi abordado rapidamente
nesta postagem.
Para finalizar, examinemos as causalidades imaginárias de Leonardo Boff.
8.
"Com a derrocada do socialismo realmente existente se perderam algumas virtudes que ele, bem ou mal, havia suscitado, como, certa feita, o reconheceu o Papa João Paulo II: o sentido do internacionalismo, a importância da solidariedade e a prevalência do social sobre o individual. (...) Com a ascensão ao poder de Thatcher e de Reagan voltaram furiosamente os ideais liberais e a cultura capitalista sem o contraponto socialista: a exaltação do indivíduo, a supremacia da propriedade privada..."
É muito provável que
Gabriel Tarde não esteja entre os autores prediletos de Leonardo Boff. Este realmente parece acreditar que a eleição de dois chefes de Estado ou a derrocada de uma burocracia totalitária (ainda que tenham importância nos livros de história) sejam capazes de provocar efeitos massivos nas mentalidades (crenças e desejos) das pessoas. Boff "explica" o micro pelo macro, quando seria preciso fazer exatamente o contrário.