Sou filho dos anos sessenta, durante os quais vivi minha infância, e
(talvez erroneamente) atribuo a essa circunstância minha repulsa em
relação a qualquer tipo de autoritarismo. É por isso que o único Deus em
que eu poderia acreditar é o spinozista, um Deus que produz (dança?)
mas não "governa".
No entanto, mesmo quem detesta o
autoritarismo é forçado a
consentir com o exercício (em diversos níveis) da
autoridade; e até os punks deveriam admitir que adoram a polícia quando
esta intervém para impedir que sejam assassinados pelos membros de
outras tribos (nada) urbanas. Como diria Spinoza, quem é incapaz de
compreender precisa obedecer. Sem o uso da autoridade (da coerção),
nenhum crime seria punido e pouquíssimas crianças fariam o dever de casa
(se é que chegariam a freqüentar uma escola).
Todo o
problema, portanto, reside em usar com sabedoria aquela imprescindível
dose de autoridade sem a qual seria impossível administrar um campo
social.
E é nesse ponto que nós, brasileiros, falhamos
sistematicamente. Somos talvez o único povo do mundo (sim, esta frase é
um puro golpe de retórica, mas periga conter alguma verdade) capaz de
combinar, a um só tempo, o autoritarismo mais jeca e a mais lassa falta
de autoridade.
Deixarei que o leitor decida por si
mesmo os casos particulares de "autoritarismo jeca" e de "falta de
autoridade" que seriam capazes de ilustrar a frase acima.
* * *
Acabou.
Esta postagem acabou. As coisas que poderão ser lidas a seguir são
apenas anotações à margem, feitas a lápis, em torno do que acabou de ser dito.
* * *
Vivemos
numa democracia e uma simples classificação indicativa seria suficiente
para calar qualquer polêmica relativa à exposição "Queermuseu". Essa
será, por sinal, a
linha de defesa da HBO no episódio da exibição diurna de "
A festa da salsicha":
a de que a classificação etária foi devidamente estabelecida. Os
direitos dos artistas terminam onde começam os direitos dos pais e
vice-versa. Nem os artistas têm o direito de propor "qualquer obra" para
"qualquer faixa etária", nem os pais têm o direito de impor censura à
obra de qualquer artista – desde que este não faça uma apologia ao
nazismo, não é mesmo? Isso não é difícil de entender. Infelizmente, o
autoritarismo, nestas bandas, é a coisa mais bem distribuída do mundo.
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E
por falar em nazismo... Chega a ser cômico: todo mundo resolveu
mencionar a exposição de "arte degenerada", realizada sob o regime
comandado por Hitler, mas ninguém, ninguém mesmo, parece lembrar-se (ou
tem coragem de lembrar-se) das perseguições realizadas pelo
realismo socialista. Um bom antídoto ao esquecimento é o sóbrio e comovente
Afterimage, testamento cinematográfico do diretor polonês Andrzej Wajda.
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Se a rede de TV mais poderosa do país pode homenagear traficantes em horário nobre, por que
estudantes do Pedro II são passíveis de punição por se referirem ao tema na escola?
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Eu
bem que gostaria de saber se aqueles que são tão ferrenhamente contra a
proibição da publicidade de cerveja não seriam, por acaso, os mesmos
que são a favor da proibição da maconha. Pois a cultura dos estados
alterados de consciência é uma só, meus amores.
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Diante
da intensificação dos violentos ataques e ameaças às religiões
afro-brasileiras, todos deveriam estar urrando de indignação. Como
explicar, em meio a uma tagarelice incessante, esse silêncio criminoso?
Como? Será que o silêncio se explica... pela própria tagarelice?
No me lo puedo creer.