26.8.14

Evolução e seleção natural

A biologia moderna depende, como todos sabem, da hipótese de uma gradual transformação de todas as formas vivas –– a hipótese da origem das espécies por um lento processo de evolução, e não por um repentino ato de criação. Ademais, a maior parte das pessoas sabe que a ciência biológica sustenta que o agente principal dessa transformação é o princípio de seleção natural, descoberto por Charles Darwin e Alfred Russel Wallace. 

WEISMANN, August. Thoughts upon the musical sense in animals and man, IN Essays upon heredity and kindred biological problems, Volume II, Oxford, Clarendon Press, 1892, p. 33.
À primeira vista, esse pequeno trecho de Weismann, um dos grandes nomes da biologia moderna, não oferece grande coisa ao leitor. Seja; mas o pouco que ele oferece é de enorme importância. Afinal, em apenas duas frases, o biólogo alemão estabelece uma distinção muito clara entre a evolução das espécies, ou transformismo, e a seleção natural.

Essa distinção é decisiva para a compreensão de um dos mais interessantes debates contemporâneos – e não estou me referindo aqui ao debate entre evolucionismo e criacionismo. Se você não domina essa distinção, não há razão para envergonhar-se: mesmo o grande Étienne Gilson já se confundiu nessa matéria e você está, portanto, em ótima companhia.

Estou me recuperando de uma angina instável e, por ora, não poderei me estender sobre esse tema. Mas não custa lembrar que eu já escrevi sobre ele, há 18 anos, em A noção de virtualidade em Bergson. Se estiver curioso, dê uma olhada, sobretudo na introdução e no quarto capítulo.

21.8.14

A Folha de São Paulo e o Flamengo

Não que isso tenha importância, mas vale o registro. Não é sobre futebol: é sobre jornalismo. Vejam a manchete de hoje na edição digital do jornal O Globo, do Rio:

O Estadão, como era de se esperar, também registrou o resultado do jogo. Agora vejam a lista de notícias de hoje a respeito do Campeonato Brasileiro de 2014 na Folha de São Paulo:

Notem que o jogo de ontem (Flamengo 2 x 1 Atlético Mineiro) sequer foi noticiado pelo jornal paulista. Nada. Zero. Nem mesmo uma mísera notinha. É espantoso. É quase inacreditável.

Ou seja, quem lê exclusivamente a Folha de São Paulo simplesmente não ficará sabendo que, diante de um público de 40.892 torcedores e em jogo válido pelo Campeonato Brasileiro, o time de maior torcida no Brasil (e o único carioca campeão do mundo) derrotou o campeão da Libertadores de 2013 no único estádio brasileiro que sediou duas finais de Copa do Mundo.

É inútil objetar que a Folha, afinal de contas, registrou a notícia. O leitor só terá acesso a ela usando o mecanismo de pesquisa do jornal. Não tendo sido objeto de uma mísera chamada, nem mesmo na página dedicada ao Brasileirão, ela se vê condenada ao limbo das notícias que ninguém leu. Não é um erro, um simples esquecimento. É política deliberada da Folha. 

Não é a primeira vez que eu noto esse comportamento, digamos, subtrativo, por parte da Folha de São Paulo. O Flamengo só aparece no noticiário quando perde... Só que desta vez a Folha foi longe demais, e além de ignorar solenemente o mais querido, também ignorou, ao mesmo tempo, outro grande clube de expressão nacional que ontem mesmo sagrou-se campeão continental. Para que não fique nenhuma dúvida, não custa recordar: o nome da competição é Campeonato Brasileiro. Paulistanos, paulistas e brasileiros em geral não merecem essa manifestação explícita de provincianismo.

19.8.14

Zuenir e a Wikipédia

Zuenir Ventura escreveu n'O Globo, no dia 13 de agosto, um texto sobre a edição maliciosa de artigos da Wikipédia a partir de computadores que utilizavam a rede do Palácio do Planalto. Estas são as palavras finais do artigo:
Para quem é do tempo em que dicionários como o “Aurélio” (Buarque de Holanda Ferreira) e o “Houaiss” (de Antônio) eram feitos por equipes especializadas que pesquisavam, checavam, comparavam palavras e verbetes, paciente e criteriosamente, durante anos de trabalho conjunto, orientado e supervisionado por dois mestres da língua, como acreditar numa obra em que qualquer um pode dar um pitaco, “democraticamente”, como se não houvesse uma hierarquia no saber, como se umas pessoas não fossem mais credenciadas do que outras para as tarefas do conhecimento?
É um texto curioso. Em primeiro lugar, a Wikipédia não deve ser comparada a dicionários. A Wikipédia não é um dicionário, mas uma enciclopédia.

Em segundo lugar, sim, a Wikipédia pode ser editada por "qualquer um"; mas isso não autoriza ninguém a dizer que quem contribui para editar um artigo da Wikipédia é necessariamente ignorante a respeito do tema em pauta. Afinal, aquilo que vale para a Wikipédia também vale para outros tipos de obra. Qualquer um pode escrever um livro; basta encontrar quem o publique. Qualquer um pode escrever em um jornal; basta encontrar quem lhe dê o emprego. A Wikipédia não funciona de maneira tão diferente assim. Quem conhece a Wikipédia sabe que ali existem regras e todo um trabalho editorial. Não é casa da Mãe Joana.

Em terceiro lugar, e este é o ponto que realmente importa, o texto de Zuenir Ventura é de uma ambigüidade realmente admirável. Ele estabelece a questão supostamente central de seu artigo com estas palavras:
O que é pior, gravar conversas telefônicas para bisbilhotar o que se diz ou interferir clandestinamente em textos de uma autoproclamada enciclopédia, adulterando-os e deturpando-os com falsas informações para difamar a reputação de jornalistas, como fizeram com Míriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg, a partir de computador que se utiliza da rede do Palácio do Planalto?
Só que ele não responde essa questão (que, convenhamos, não chega a ser exatamente uma boa questão, posto que compara duas práticas inteiramente distintas) de maneira inequívoca. Podemos, é claro, tomar o próprio título do artigo (Pior do que bisbilhotar) como uma resposta. Mas ainda que tomemos o título do artigo como resposta (fornecida, aliás, sem nenhuma argumentação), trata-se de uma resposta que as palavras finais do artigo de Zuenir relativizam e, no limite, contradizem.

Parece-me que o texto de Zuenir pode ser resumido da seguinte maneira:

(1) A edição maliciosa de artigos da Wikipédia seria "pior" do que espionagem.
(2) A Wikipédia pode ser editada por "qualquer um" e, portanto, não é confiável.
(3) Logo, o verdadeiro problema consiste no crédito que se possa dar aos artigos da Wikipédia, e não no fato de que alguém os tenha editado, com fins escusos, a partir de um computador conectado ao centro do poder executivo federal.

Para terminar com uma comparação contestável, mas não inteiramente fora de propósito, é mais ou menos como se uma pessoa fosse flagrada roubando uma lojinha de R$1,99 e alguém dissesse o seguinte: furtar é pior do que espionar; mas ninguém deveria mesmo comprar na tal lojinha, pois todos os produtos vendidos ali são de qualidade duvidosa.

Zuenir Ventura se tornará, muito em breve, um imortal da Academia Brasileira de Letras.

15.8.14

papo de eleição

Esta conversa foi ouvida por minha mulher, em março deste ano, no ônibus Charitas-Gávea (Rio de Janeiro). O ônibus estava indo para Niterói por volta de seis da tarde. Nesse horário há sempre muitas trabalhadoras domésticas voltando para casa. Minha mulher sabe disso porque, volta e meia, conversa com uma delas. Mas não dessa vez; dessa vez ela apenas ouviu a conversa entre duas mulheres. Uma delas tinha seus quarenta e poucos anos e era parda; a outra, branca, aparentava ter uns trinta e poucos. Elas não estavam sussurrando. Conversavam, normalmente, em voz alta.

– Esse ano tem eleição!
– Eleição é bom. Onde eu moro sempre dão dinheiro.
– Lá onde eu moro eles dão muito cimento e tijolo. E eu estou mesmo precisando terminar minha casa.
– Eu mudei meu voto pra São Gonçalo porque lá dão mais coisas. Aqui
[Niterói] eles não dão muita coisa não.
– Não faz diferença quem vai ganhar. Não muda nada pra gente.

Achei que seria apropriado compartilhar essa conversa com os leitores neste dia 15 de agosto, a exatos três meses de comemorarmos, mais uma vez, a proclamação da República. Se é que temos algo a comemorar.

14.8.14

E agora?

Milhões de brasileiros perderam ontem seu candidato à presidência. E, de acordo com a Folha de São Paulo, eles só não perderam sua candidata à vice-presidência por causa de uma decisão de "última hora". De tão triste que estava, Lula nem quis mostrar-se na televisão. 

Eu ainda não havia decidido, mas estava inclinado a votar em Eduardo Campos. E agora?

11.8.14

Uma história de mistério e suspense no reino da criptografia (segunda parte)

As circunstâncias estranhas nas quais o programa TrueCrypt foi retirado do ar, juntamente com a página original, e teve seu desenvolvimento encerrado, deram margem a interpretações díspares e a toda sorte de teorias conspiratórias. Vejamos, antes de mais nada, aquilo que pode chegar a ser estabelecido como um fato.

(1) O sítio www.truecrypt.org já não funciona. Quem tenta acessá-lo é redirecionado para outro endereço (truecrypt.sourceforge.net).
(2) O sítio sourceforge.net é bem conhecido por hospedar projetos de código aberto. No entanto, o TrueCrypt jamais esteve hospedado no sourceforge.
(3) As antigas versões (funcionais) do programa deixaram de ser oferecidas. Na página truecrypt.sourceforge.net apenas a versão 7.2 – incapaz de fazer outra coisa além de ler os antigos arquivos e discos criptografados – é fornecida.
(4) Essa nova versão mutilada do programa está digitalmente assinada pelo autor do TrueCrypt, que sempre manteve o anonimato.
(5) Na nova página hospedada no sourceforge há claras advertências a respeito do caráter inseguro do programa.
(6) Nessa página há também uma espécie de tutorial para usuários que queiram passar a usar o Bitlocker, programa de criptografia da Microsoft fornecido em algumas versões do Windows.
(7) O TrueCrypt estava (e ainda está) passando, com sucesso, por uma auditoria de software. O programa tem uma ou outra falha, mas nenhuma dessas falhas é crítica. Ou seja, ele cumpre o que promete.
(8) Até aqui, não se descobriu no TrueCrypt nenhum backdoor, ou seja, nenhum canal oculto pelo qual seria possível recuperar uma senha. Isso equivale a dizer que nenhuma empresa, nenhum governo e nenhum dos programadores do TrueCrypt seria capaz de quebrar a segurança do programa utilizando uma "porta" incluída no programa especialmente para esse fim. E é precisamente isso que o torna seguro.
(9) O nome de domínio (e, muito provavelmente, a hospedagem do sítio) truecrypt.org está pago até 22 de novembro de 2023.
(10) O fim do suporte da Microsoft ao Windows XP é mencionado explicitamente na nova página como sendo a razão para o fim do desenvolvimento do TrueCrypt.

Passemos agora a enumerar as circunstâncias estranhas envolvidas nos fatos acima.

(A) Se o desenvolvedor do TrueCrypt desejava encerrar o desenvolvimento do programa, o mais provável é que ele o fizesse no próprio sítio onde o programa sempre esteve hospedado. E mesmo que a hospedagem do sítio não esteja paga até 2023 (como está pago o domínio), bastaria ter anunciado lá mesmo o endereço da nova página. Haveria tempo suficiente para que a notícia se espalhasse.
(B) Quem passou 8 anos (de 2004 a 2012, data do lançamento da última versão funcional) desenvolvendo um programa que se tornou extremamente popular provavelmente escreveria uma nota de despedida ao seus milhões de usuários.
(C) Os desenvolvedores não tinham razão para declarar inseguro um programa que sempre se provou seguro, algo que uma auditoria independente (e não apenas ela) estava demonstrando.
(D) É difícil explicar por que o fim do suporte ao Windows XP seja mencionado logo no início do texto, dando a entender que essa seja a causa do fim do TrueCrypt. Se é verdade que o usuário do XP não tinha nenhuma opção de criptografia integrada ao sistema operacional, também é verdade que várias versões do Windows 7 e do Windows 8 continuam não tendo essa opção. Além disso, o TrueCrypt não era oferecido apenas para Windows, mas também para Linux e Mac. Não faz nenhum sentido.
(D) Por fim, e este é o ponto mais comentado, jamais o desenvolvedor de um programa independente e seguro como o TrueCrypt teria recomendado justamente um software da Microsoft, que não pode ser auditado (pois seu código não é aberto) e que, muito provavelmente, possui um backdoor qualquer à disposição do governo americano.

Entremos agora no terreno da pura fantasia e vejamos algumas das possíveis explicações para o fim do desenvolvimento do TrueCrypt. Nenhuma delas é de minha autoria. Estou apenas fazendo uma compilação pessoal, bastante resumida, do que já foi escrito a respeito.

(a) O desenvolvedor do TrueCrypt simplesmente desistiu da tarefa e passou a dedicar-se a outros projetos. Objeção: Nesse caso, por que teria ele agido de forma tão inusitada? Não teria sido suficiente comunicar sua decisão na página oficial e, possivelmente, lançar o código numa licença GPL para que continuasse sendo desenvolvido por outros programadores? Além disso, por que teria ele, de maneira tão intempestiva, declarado que seu programa é inseguro? Não bastaria afirmar que o programa poderia vir a tornar-se inseguro, já que seu desenvolvimento havia cessado?
(b) O programador recebeu uma proposta de trabalho (para escrever um programa semelhante) sob a condição de retirar um forte concorrente (o programa original) de circulação. Essa hipótese seria ao menos capaz de explicar por que ele declarou que o programa é inseguro. Objeção: Nesse caso, mesmo que o autor não quisesse revelar ao público o porquê de sua decisão, teria sido suficiente editar o sítio original.
(c) O autor do programa estava gravemente doente e acabou falecendo. A serviço de alguém, hackers exploraram uma determinada falha de segurança no servidor Apache que hospedava o sítio e fizeram a única coisa que essa falha permitia:  redirecionaram a página para outro servidor. Objeção: esses hackers também tiveram acesso à chave privada do autor, com a qual assinaram a nova versão do programa? Será que ele mesmo não usava o TrueCrypt para guardar um arquivo importante como esse? Por outro lado, se os supostos hackers tivessem conseguido acesso a todas as senhas e arquivos do autor, não teriam eles agido da forma mais discreta possível, modificando o sítio original do programa? Vale notar que Steve Gibson não crê nessa hipótese.
(d) Talvez a serviço de alguma potência oculta, o autor (ou um dos autores) do TrueCrypt teria, ele mesmo, introduzido um backdoor no programa. E uma vez que essa "porta dos fundos" acabaria sendo descoberta na auditoria do software, o autor (ou um dos autores, que poderia ter descoberto a trama) resolveu acabar com a brincadeira e sair de cena. Objeção: se realmente houvesse um backdoor no programa, é muito improvável que ocorressem os vários casos em que as ações do FBI foram frustradas. O governo americano ficaria mais do que feliz se pudesse demonstrar que a proteção oferecida pelo TrueCrypt pode ser "quebrada". Isso acabaria de vez com a credibilidade do programa.
(e) Uma força poderosa (possivelmente uma agência de segurança do governo americano) deu um ultimato ao autor do programa. Este, vendo-se forçado a encerrar seu desenvolvimento e estando proibido de comunicar o que havia acontecido, fez a única coisa que podia: comportou-se de maneira discretamente incoerente, deixando, de forma deliberada, algumas pistas que indicassem o que realmente havia acontecido.

Steve Gibson, embora em nenhum momento tenha endossado essa última hipótese, declarou que a versão 7.1a do TrueCrypt ainda pode ser considerada segura. Essa afirmação contradiz frontalmente a advertência publicada na nova página do programa e já seria, por si mesma, um forte indício de que algo muito estranho aconteceu.

A verdade sobre esse caso misterioso provavelmente jamais virá à tona. Resta aguardar a segunda fase da auditoria para eliminar de vez algumas das hipóteses mencionadas. Já foram lançadas várias iniciativas para prosseguir o desenvolvimento do TrueCrypt. A mais visível delas chama-se TCnext e está localizada na Suíça.

É importante que se entenda que a privacidade dos indivíduos não é negociável. O indivíduo não pode ficar à mercê de criminosos, e tampouco à mercê de governos. Os indivíduos é que têm de fiscalizar e manter sob vigilância os governos, e não o contrário. Até porque o poder de Estado, desproporcional em relação ao poder dos indivíduos, sempre será um alvo preferencial para a infiltração de criminosos.

* * *
De acordo com o Houaiss, "encriptar" é um verbo datado de 1899 que significa "colocar em cripta ou em túmulo; sepultar". Faça um favor à língua portuguesa e jamais use esse termo como sinônimo da palavra (derivada do grego) "criptografar". Se quiser usar algo mais simples, use "cifrar" e "decifrar", ou mesmo os termos menos precisos "codificar" e "decodificar".

Os horrorosos termos "encriptar" e "decriptar", decalcados mecanicamente dos verbos ingleses encrypt e decrypt, não passam de neologismos preguiçosos. O mesmo vale para "encriptação", derivado de encryption. Dê a essas aberrações o mesmo destino merecido por verbos esdrúxulos como "escanear" ou "customizar": encripte-os numa cova bem funda.

9.8.14

Entreato: o TrueCrypt na imprensa brasileira

Antes de apresentar a segunda parte desta reportagem, farei um pequeno interlúdio. Quantas vezes o programa TrueCrypt foi mencionado na grande imprensa brasileira? Fiz uma pesquisa muito sumária, mas a amostra pode ser considerada significativa, já que os seis jornais de maior circulação no país encabeçam a lista. Eis os resultados.

Termo buscado: truecrypt

Super Notícia: uma referência
Folha de São Paulo: nenhum resultado
O Globo: uma referência
Estadão: uma referência
Extra: uma referência
Zero Hora: nenhum resultado
Correio Brasiliense: nenhum resultado

A grafia correta do programa é TrueCrypt, mas a pesquisa foi repetida com uma grafia incorreta (separando as duas partes que compõe o nome do software). Esse recurso permitiu que mais dois resultados fossem encontrados.

Termos buscados: true crypt

Super Notícia: nenhum resultado
Folha de São Paulo: uma referência
O Globo: nenhum resultado
Estadão: nenhum resultado
Extra: uma referência
Zero Hora: nenhum resultado
Correio Brasiliense: nenhum resultado

Durante anos o TrueCrypt foi (e, de acordo com Steve Gibson, continua sendo) uma das mais importantes ferramentas de proteção da privacidade. As principais razões desse sucesso são as seguintes: ele funciona nos mais usados sistemas operacionais (Windows, Linux e Mac); ele oferece criptografia robusta baseada em código aberto; e está acessível a qualquer um, pois é gratuito. Pode-se ter uma idéia da credibilidade conquistada por esse programa em artigos de revistas conceituadas como a PCWorld e em tutoriais da EFF (Electronic Frontier Foundation); e pode-se ter uma amostra de sua enorme popularidade observando os resultados da pesquisa abaixo.

Fonte: lifehacker

Entretanto, apesar da importância e popularidade do TrueCrypt no exterior, somente seis textos mencionam o software nas versões digitais dos cinco jornais de maior circulação no Brasil. Esse resultado demonstra, a meu ver, a que ponto a preocupação com a privacidade ainda é incipiente em nosso país. Entre nós ainda é prevalente aquela mentalidade provinciana de acordo com a qual quem tira uma foto mais íntima merece ser exposto aos olhos de todos; ou a visão obtusa segundo a qual apenas criminosos têm algo a "esconder". Mas as pessoas que dizem semelhantes sandices jamais publicariam na Internet seu imposto de renda, seu endereço ou a senha de seu cartão de crédito... Sim, os criminosos sempre têm algo (no caso, seus crimes) a esconder. Mas todos nós temos algo a esconder, e temos algo a esconder precisamente desses mesmos criminosos.

Obviamente, a defesa da privacidade não passa apenas pelo uso de ferramentas apropriadas. Em primeiro lugar é preciso trazer o problema à luz e começar a educar as pessoas para a era digital. Mais de uma adolescente brasileira já perdeu a vida apenas porque não pensou nas conseqüências da simples divulgação de um arquivo digital. Essas questões não podem ficar encerradas em fóruns especializados. É preciso que a discussão se estenda à grande imprensa. Mas se a imprensa não divulga e não ensina o uso das ferramentas apropriadas, ela não está cumprindo esse papel como deveria.

O quadro é ainda mais assustador quando pensamos que as ditas nações livres e democráticas estão, cada vez mais, adotando práticas totalitárias. Precisamos descobrir de que lado estamos – e elas também.


8.8.14

Uma história de mistério e suspense no reino da criptografia (primeira parte)

Há pouco mais de dois meses aconteceu um dos mais estranhos episódios na história do mundo digital. Apesar de seu evidente interesse, ela não foi divulgada pela grande imprensa. Entretanto, como veremos, além de apresentar todos os elementos de uma história de mistério, ela possui implicações sérias e deveria, mesmo com atraso, ser amplamente divulgada.

TrueCrypt é um software de criptografia desenvolvido desde 2004 a partir de um outro programa chamado E4M. Gratuito e de código aberto, ele pode ser usado para criptografar discos inteiros ou para criar um arquivo criptografado que pode ser "montado" na máquina e usado como um disco regular.

E o programa é bom. É dos melhores. Para citar apenas um caso, ele era usado pelo banqueiro Daniel Dantas, detido em 2008 na operação Satyagraha. Durante cinco meses a polícia brasileira tentou em vão quebrar a senha dos cinco discos criptografados apreendidos com o banqueiro; por fim, ela pediu ajuda ao FBI, que passou um ano realizando os chamados "ataques de dicionário". Nada feito. Até hoje não se sabe o que havia naqueles discos.

 Daniel Dantas
Assim como facas não servem apenas para cometer assassinatos, programas de criptografia não servem apenas para burlar a lei. Em primeiro lugar, a criptografia serve para proteger a privacidade das pessoas. Documentos pessoais, trabalhos inéditos, senhas, contratos, segredos comerciais, fotos íntimas da pessoa amada... Tudo isso pode e deve ser protegido por uma senha; e quanto mais robusta for a proteção criptográfica, melhor.

Pois bem. No dia 28 de maio de 2014, o sítio truecrypt.org, que até então ostentava uma bela, sóbria e profissionalmente concebida apresentação em azul e branco, passou a redirecionar seu tráfego para uma página realizada de forma bastante amadora no sítio sourceforge.net. Nessa página, o visitante é informado do seguinte:

1. Que o uso do TrueCrypt não é seguro;
2. Que seu desenvolvimento foi encerrado em virtude do fim do suporte da Microsoft para o Windows XP;
3. Que os antigos usuários devem migrar para o programa Bitlocker, da Microsoft.

Nessa mesma página é oferecida a última versão do programa (7.2), que já não serve para criptografar discos ou arquivos. Ela somente oferece a possibilidade de abrir e ler os discos já existentes, de modo que o usuário possa migrar seus dados para outro disco. E essa é, a partir de agora, a única versão disponível. Juntamente com o sítio truecrypt.org, todas as versões anteriores do programa desapareceram.

Obviamente, essa versão 7.2 não serve para absolutamente nada e deve ser inteiramente ignorada pelos usuários. Felizmente, um programador (cujo trabalho eu acompanho há pelo menos 15 anos) chamado Steve Gibson resolveu hospedar em seu sítio todos os arquivos da versão (funcional) mais recente do programa (7.1a). Nessa página, Gibson, do alto dos seus 44 anos de experiência em programação (e que escreve seus programas em linguagem assembly), afirma que o TrueCrypt 7.1a continua sendo um programa seguro.

Apenas há algumas horas fiquei sabendo que o TrueCrypt foi "descontinuado". A história é tão estranha e tem tantos meandros que não será possível elaborar, ainda hoje, um quadro coerente. Fica para uma segunda parte, que será escrita no fim de semana. Como aperitivo, e para que o leitor compreenda as possíveis implicações desse caso, vou apresentar a notícia de uma forma diferente. O programa de criptografia que Edward Snowden recomendava foi declarado inseguro e retirado do ar sob circunstâncias pouco usuais.

4.8.14

As camisas na gaveta

Depois de trinta anos de vida sedentária e de uns tantos milhares de cigarros, decidiu que era hora de se mexer novamente. Nadar lhe parecia chato, andar de skate, extemporâneo; os bondes, infelizmente, já não tinham estribo; e como o futebol de botão dificilmente o faria entrar em forma novamente, só lhe restava mesmo, dentre as antigas paixões infantis, a alternativa de voltar a jogar tênis de mesa. Ou pingue-pongue mesmo, o que calhasse.

Montou sua raquete no bom e velho estilo japonês, comprou algumas bolinhas e, por que não, duas camisetas escuras da Yasaka. Estava pronto para voltar aos embates, e assim fez. Animou-se, cogitou até inscrever-se num treinamento sério para não perder o élan. Enfim, tendo recuperado um quinto da forma que ostentara aos quatorze anos, animou-se a estrear uma das camisetas Yasaka. Ao voltar da jogatina para casa, no entanto, foi abordado por um dos olheiros do tráfico.

– Tira essa camisa, maluco! Tá vendo alguém aqui de olho rasgado? Aqui não é Yakuza não! Aqui é Comando, mané!

Ele tinha bolas, mas o pessoal lá de cima tinha balas. Não era briga que valesse a pena. Continua praticando até hoje, e seu jogo cresce a cada dia; mas seu figurino tornou-se mais sóbrio e apropriado aos novos tempos.
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